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"Os serviços técnicos florestais não têm nenhum pensamento, são meros executantes burocráticos"

Marco Marques (engenheiro florestal) entrevista Fernando Oliveira Baptista (engenheiro agrónomo, professor catedrático no Instituto Superior de Agronomia jubilado e político, que foi responsável pelo ministério da Agricultura e Pescas durante o período de reforma agrária no PREC).

Fernando Oliveira Batista é professor no Instituto Superior de Agronomia e tem vindo a estudar o rural nas ultimas décadas. Começaríamos esta entrevista por lhe fazer uma pergunta relacionada com este estudo, um dos principais da sua carreira académica. Queria perguntar-lhe como tem vindo a estudar as dinâmicas do rural português nas últimas décadas, como podemos olhar hoje para esse território e quais as dinâmicas que caracterizam o rural português.

Vou começar um bocadinho atrás. O rural português, ou o mundo rural português, atingiu a sua máxima expressão demográfica e de utilização do território nos anos 50, 60. Nessa primeira metade do século, o problema dos incultos, que é um problema grave no final do século XIX, princípio do século XX, praticamente acabou. A agricultura aumentou muito, para quase 5 milhões de hectares, a floresta também cresceu e os incultos diminuíram. Isto foi acompanhado pela manutenção das tecnologias tradicionais, com grande expansão da tração animal, que é muito responsável por isto e pelo relativo e estável aumento de população e aumento da produção contínua. Era um mundo rural tradicional, agrícola, em que o modo de vida da população rural era a agricultura, que necessitava, nos sistemas de produção agrícola, de se complementar com a floresta. Por exemplo, de cortar o mato para a cama dos animais, ou para os estrumes, para adubar. Foi neste quadro que a agricultura aumentou imenso, mas que a floresta também aumentou.

Este mundo, este quadro quebrou-se, ou começou a esboroar-se, com a grande emigração nos anos 60 e 70. As coisas foram completamente alteradas, a grande tecnologia tradicional foi substituída por sistemas químico-mecânicos: tração mecânica, tratores, motocultivadores, expansão dos adubos, herbicidas. E isso teve uma consequência na produção, que se tornou mais intensa. Os sistemas de produção agrícola intensificaram-se e aquilo a que assistimos, nesta segunda metade do século, foi que, a agricultura, que tinha quase 5 milhões, 4 700 mil [de hectares] nos anos 50 e 60, reduziu para cerca de 2 milhões no princípio do século XXI. E entretanto, a floresta cresceu também um pouco e os incultos, que eram cerca de meio milhão de hectares, mas que eram sobretudo em zonas inaproveitáveis, cresceram outra vez para dois milhões e novecentos mil hectares, a dinâmica foi essa. Tivemos uma dinâmica nos últimos 50-60 anos em que voltaram a aparecer os incultos, agora já não como futura terra de cultura, mas terra que sobra de cultura, uma redução da terra aproveitada agricolamente, mas uma tendência de aumento da produção, com sistemas de produção, e um aumento relativo da floresta. Neste novo quadro, queria destacar duas coisas. A primeira: a própria população agrícola, a população rural, e mesmo agrícola, deixou de viver da agricultura. Hoje em dia a população vive sobretudo das reformas e pensões, do trabalho fora, um bocado da agricultura, mas o grande componente são as pensões e a reforma. A população envelheceu e as reformas foram criadas para a população rural em 69, foram-se expandido do trabalho da indústria e dos serviços e na construção civil, etc. Por outro lado, a agricultura deixou de precisar da floresta para os seus sistemas de produção e as pessoas passaram a ter electricidade e botija de gás e prescindiam da madeira para utilização diária. A partir de 70, as casas são muito mais módulos industriais do que a construção tradicional em madeira e houve uma dissociação no mundo rural entre a população, e as suas economias e modos de vida, a floresta, a agricultura, e surgiram os incultos. No fundo, esta foi a grande dinâmica a que nós assistimos, de falar de uma unidade rural, em que o rural era agrícola e a agricultura hegemonizava o território, passámos a várias entidades, ou a várias realidades. De um lado, a população rural e os seus vários modos de vida, a agricultura em parte dissociada desta população e muito mais dissociada na agricultura competitiva e de grande dimensão, a floresta e os incultos.

Em termos de atividades, o que é que consideraria hoje o território e o que é que considera incultos?

Existe o problema dos pequenos povoados rurais, de dois mil habitantes ou menos. Paralelamente, as cidades fortaleceram-se, portanto não podemos falar de um interior, temos várias dinâmicas. E a dinâmica a que me vou referir é, sobretudo, a dinâmica do mundo agrícola e rural tradicional e a sua evolução. Hoje em dia há muito menos gente, hoje em dias as populações não vivem sobretudo disso e hoje em dia sabemos que não é possível reconstruir o passado, isto é, não é possível refazer uma agricultura que seja complementar com a floresta, a própria agricultura já não vai reaproveitar todo o território e já não vai voltar a alimentar as economias domésticas.

 

A solução para esses territórios não estará na agricultura?

Não estará só na agricultura. Esse rural tem de procurar o seu caminho, com várias componentes. Primeiro, é que não vai ser só agrícola ou não vai ser sequer sobretudo agrícola. Segundo, não vai deixar de ser de baixa densidade. As projeções de que dispomos para essa zona mostram que daqui até 2040 vai haver, nas projeções, um decréscimo razoável de população não agrícola. Por outro lado, nós vemos nascer nestas zonas pequenos negócios, pequenas aventuras, no bom sentido, tentativas, que têm ainda uma grande debilidade. Turismo rural, de que todos falamos muito. E isso não tem progredido mais, e não é por falta de iniciativa, é por falta de incentivos, por falta de apoio público decidido e, sobretudo, por falta de uma procura.

O que nós temos em relação a essa população rural, a esses aglomerados rurais, é uma economia que se esboroou e uma economia que temos de refazer. Por outro lado, associada a essa crise, o próprio modelo de povoamento foi-se alterando, porque o povoamento que tínhamos era um povoamento que tinha sido moldado para uma economia agrícola, que tinha crescido com ela. Com esse declínio dessa hegemonia agrícola, o próprio modelo vai-se ajustando.

Como vê as várias dinâmicas deste espaço, da floresta, no território rural? Por um lado, temos uma floresta altamente produtiva, dominada essencialmente pelo eucalipto, ou outras espécies, e por outro temos uma manta de retalhos repartida por milhares de parcelas e também muito pouca propriedade pública onde o Estado possa ter efetivamente uma intervenção. Como olha para estes vários problemas e que respostas encontra para mediar este conflito entre os interesses privados e os interesses públicos?

O pinhal aumentou sensivelmente 950 mil hectares entre o princípio do século XX até meados do século XX. Desses, pelo menos 900 mil hectares são privados. Com a crise desse modelo, essa economia do pinhal, associada a essa população, declinou. O pinhal tem vindo a declinar desde os anos 80, mas o declínio dessa economia deve-se ao pinhal não ser rentável enquanto produção. No fundo, é uma gestão  de uma coisa que foi associada a um modelo económico, esse modelo económico esboroou-se e agora o pinhal não tem rentabilidade. Portanto, tem vindo a ser mantido por questões patrimoniais, associado à regeneração natural.

O eucalipto é uma história distinta. O eucalipto surgiu do novo modelo, dos incultos, do recuo da agricultura, foi nesses espaços que, com apoio público, aliás, inicial, desde 65, com uma entidade que é o Fundo de Fomento Florestal, 65-66, foi aparecendo o eucalipto, dada a sua rentabilidade para os proprietários e dada a sua procura elevada por parte da grande indústria.

Uma coisa que temos de aceitar e perceber é que a floresta em Portugal é privada. E, nas zonas de pequena propriedade, é dos pequenos proprietários, e eles não são seres atávicos e reacionários, têm a sua lógica, têm a sua própria lógica. Um homem que tem meio hectare na encosta de uma ribeira que é quase a pique, o que ele tem de fazer é esperar que não arda e vender depois, porque qualquer intervenção custa mais do que vários cortes de pinhal. Os proprietários têm a sua própria lógica. Sucede que essa lógica pode não coincidir com os interesses da sociedade, é um problema. Temos de ver como é que podemos conciliar isso. Nesta conciliação, que é a questão decisiva, porque enquanto os proprietários têm uma expectativa individual, a sociedade tem uma expectativa diferente, nomeadamente em termos ambientais, que englobam o ordenamento do território, incêndios, etc. A meu ver, o processo de resolver esta questão exige várias questões a analisar. Primeiro, em termos de política florestal, uma é a relação Estado-mercado, outra é haver uma definição clara de quem vão ser os agentes em quem se confia, a quem os políticos confiam a política florestal. A terceira questão é saber o que se quer fazer. Eu vou começar pela questão do meio. A política florestal estatal não tem sido clara em dizer assim “quem deve ser os agentes da floresta são os proprietários”, há uma indefinição sobre se é o Estado, ou se são os grandes interesses.

A segunda questão que me parece importante é saber o que se quer fazer. Nestes debates políticos, critica-se muito o pequeno proprietário e a propriedade abandonada. A meu ver, mal. Não se define o que é a propriedade abandonada. No fundo, é aquela que não tem um mínimo de cultivo qualquer, mas ninguém diz que cultivo deve ter, ou que aproveitamento deve ter, diz que está abandonada, mas nunca ouvi dizer “está abandonada e podia ter isto”. Não há propriedade abandonada, há é propriedade que, na lógica dos proprietário, não vale a pena cultivar.

A segunda grande crítica é sobre a pequena propriedade. É evidente que não há nenhuma evidência empírica entre o aparecimento de fogos e a dimensão da propriedade, não há. Ou entre a má gestão e a dimensão da propriedade. Veja-se o pinhal de Leiria, que acaba de arder. É gerido pelo Estado, mas podia dar muito mais exemplos privados e públicos.

O último ponto que não queria escamotear era o da relação Estado-mercado. Tudo o que tenho vindo aqui a dizer põe-se no quadro da relação da economia de mercado. Parece-me possível que o Estado ponha as condições que acha necessárias para a sociedade, através de uma contratualização. Isto é, “vocês, para serem apoiados, têm que obedecer a estes, aqueles e aqueloutros requisitos”. A questão é mais esta do que criar qualquer ideia de intervencionismo na pequena propriedade. Teria de ser saber bem o que se quer, ser bem definido e poder fazer isto. Isto é difícil de fazer hoje. Porque é que, por exemplo, o Estado não avança com estas questões? Porque deixou os serviços técnicos, a este nível, completamente decapitados. E não têm nenhum pensamento, são meramente executantes burocráticos. Era preciso desenvolver um pensamento técnico para termos ideias para avançar com esta política. Era necessário acreditar nos proprietários como os agentes possíveis da floresta, definir bem o que se pretende, apoiar financeiramente, e o Estado ter um papel interventivo ao nível da contratualização e definir os objetivos que a sociedade quer para a floresta: alterações climáticas, minimizarão dos riscos e contratualizá-los com estes proprietários florestais.

Termos relacionados Fórum Socialismo 2018, Sociedade
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