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Os retalhos da política do ajuste

Se, para compensar as derrapagens, o Governo persistir em implementar medidas de austeridade; canalizar para o financiamento do défice os fundos que poderiam estar a financiar a economia; apostar em medidas de efeito único, como as privatizações; então podemos esperar novos orçamentos retificativos.
A política orçamental implementada é uma corrida para o fundo. Foto de Paulete Matos

A necessidade de retificação do orçamento do estado, a escassos meses da sua entrada em vigor, é demonstrativa de uma tese, já óbvia para muitos – não há política de ajustamento orçamental possível num cenário de permanente degradação dos indicadores macroeconómicos. Paradoxalmente, não é possível reverter o cenário de degradação das variáveis macroeconomias enquanto o ajustamento durar. E desta forma o Governo estará condenado a sucessivos retificativos, que ajustam o défice às previsões para a economia, que sofreram um ajuste devido aos défices anteriormente ajustados. A política do ajuste é uma corrida para o fundo.

A recessão económica e o desemprego provocados pela austeridade (implementada para reduzir o défice) foram responsáveis pelo agravamento das contas públicas na ordem dos 630 milhões:

  • Apesar do aumento dos impostos, a redução do consumo foi tal que as receitas do IVA ficaram 239 milhões abaixo do previsto, e as do Imposto Sobre Veículos, 158 milhões abaixo do previsto;

  • O aumento do número de desempregados reduziu as receitas das contribuições para a segurança social em 183 milhões e aumentou as despesas com o subsídio de desemprego em 138 milhões.

Por outro lado, foi ainda necessário orçamentar uma transferência adicional para o subsector da segurança social, para compensar o pagamento de 522 milhões de euros relacionados com os fundos de pensões da banca.

Do lado do aumento da despesa são também contabilizados 1500 milhões, que decorrem da regularização de pagamentos em atraso do Serviço Nacional de Saúde e 300 milhões para cobrir insuficiências financeiras dos hospitais.

Estes impactes orçamentais negativos foram compensados com um aumento das receitas do Estado, ou por outras vias alternativas:

  • Aparte do capital dos fundos de pensões transferidos correspondente ao ano de 2012 (visto que o restante foi contabilizado para o défice de 2011), 2693 milhões, foi, na sua maioria, canalizada para os pagamentos do Serviço Nacional de Saúde acima referidos;

  • A venda da licença dos direitos de utilização de frequências de 4.ª geração da rede móvel permitiu um aumento das receitas na ordem dos 272 milhões;

  • A reduçãono pagamento de juros significou uma poupança de 684 milhões: 490 milhões que decorrem da revisão das condições e juros associados ao mecanismo de estabilidade e crescimento, 84 milhões relativos à diminuição dos juros dos bilhetes do tesouro, e 94 milhões correspondentes aos rendimentos de aplicações financeiras efetuadas;

  • Contribuem também para o aumento da receita a “descativação” de verbas do Orçamento do Estado e que dependiam do aval do Ministro, no valor de 139 milhões de euros.

Fazendo as contas, os impactes negativos relativamente ao Orçamento de 2012 são de 3255 milhões de euros, compensados pelos impactes positivos, no valor de 3885 milhões de euros. Ou seja, segundo as contas do Governo o défice reduziu-se em 629 milhões de euros, ou 0.4% do PIB. Mas será esta uma notícia que nos possa satisfazer?

A recessão e o desemprego continuam a afetar de forma determinante as contas públicas, reduzindo as receitas fiscais e aumentando as despesas sociais. Para compensar este efeito, o Governo é obrigado a recorrer sistematicamente a medidas extraordinárias, como a transferência dos fundos de pensões, com efeitos sobretudo em 2011, ou as receitas da venda das licenças de 4ª geração.

Foi apenas com as pensões da banca que cumprimos a meta da troika para 2011. Devido à desaceleração económica, sem esta medida o défice teria sido de 7.8% e não de 4,5%. Mas a estratégia traz problemas:

O primeiro é que as fontes de receitas extraordinárias, sejam fundos de pensões ou empresas públicas para privatizar, têm um limite, muito reduzido por sinal. Uma vez ultrapassado, novos cortes no défice só serão possíveis recorrendo aos mecanismos tradicionais: aumento das receitas por via dos impostos e redução das despesas do Estado (serviços públicos, salários, etc), ou seja, austeridade.

O segundo é que a negociação destas operações, num momento em que o Governo se encontra claramente numa situação desfavorável, implica maus contratos para o erário público. A transferência das pensões, por exemplo, para além do peso futuro no sistema de Segurança Social, implicou a transferência adicional de 522 milhões de euros. Ou seja, a forma encontrada para tapar o buraco do défice no anterior orçamento contribuiu para o buraco que justifica a apresentação de um documento retificativo.

No longo prazo, este tipo de operação, especialmente no caso das privatizações, implicará perdas adicionais para o Estado. Perdas que decorrem do controlo público sobre sectores estratégicos ou do recebimento de dividendos.

É sempre possível também argumentar que a redução dos juros permitiu o ajustamento do défice sem acrescentar mais austeridade. E é verdade. É, aliás, a consciência desse mesmo facto que nos leva a defender a reestruturação da dívida portuguesa. No entanto, esta redução é um acontecimento único decorrente apenas da boa vontade dos nossos credores.

Por outro lado, enquanto a prioridade política for a redução do défice, o alívio orçamental obtido pela redução dos juros não irá reverter para o financiamento da economia, mas para atingir as décimas exigidas no memorando. E enquanto não houver financiamento da economia, não podemos esperar mais que recessão.

A revisão em baixa de todos os indicadores macroeconómicos neste Orçamento retificativo (crescimento, consumo privado, investimento), e a expectativa de novos aumentos do desemprego, deixam antever dificuldades para as metas do défice no futuro. Se, para compensar as derrapagens, o Governo persistir em: 1) implementar medidas de austeridade; 2) canalizar para o financiamento do défice os fundos que poderiam estar a financiar a economia; 3) apostar em medidas de efeito único, como as privatizações; então podemos esperar novos orçamentos retificativos.

A política orçamental implementada é uma corrida para o fundo porque, para reduzir o défice, destrói a economia nacional, sem nunca atacar as verdadeiras causas do saldo negativo que são, precisamente, a destruição da economia nacional. Podem puxar a manta mais para a direita ou para a esquerda, mas ela será cada vez menor relativamente ao buraco que estão a criar.

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Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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