As origens do fascismo na Europa, antes e agora

01 de junho 2014 - 23:23

Hoje, uma das opções políticas, que canalizam mais o descontentamento popular e, muito em particular, o da classe trabalhadora, é a da ultradireita, tal como estamos a ver em vários países. O caso da França é claro. Artigo de Vicenç Navarro.

porVicenç Navarro

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Marine Le Pen da Frente Nacional, ao centro, Geert Wilders do Partido da Liberdade holandês, à direita, e Harald Vilimsky do Partido da Liberdade austríaco juntos numa conferência de imprensa em Bruxelas após as eleições europeias.

Uma das interpretações da História europeia mais erróneas e que teve piores consequências na vida política e económica deste continente é a explicação que se tem dado das causas da subida ao poder de Hitler e do nazismo, na Alemanha. Um dos argumentos que se têm avançado para justificar as enormes políticas de austeridade (com cortes na despesa pública, incluindo a despesa pública social e a baixa de salários), promovidas e impostas pelo governo alemão aos países da União Europeia e, muito em especial, aos países periféricos da Zona Euro, como a Espanha, tem sido o suposto temor (na realidade, pânico) que o povo alemão tem, historicamente, à hiperinflação, pois, na sua memória colectiva, considera-se que a dita hiperinflação foi a causa do aparecimento e vitória eleitoral do nazismo, na Alemanha. Daí dizerem-nos que as políticas de austeridade de agora são necessárias, para evitar uma inflação que poderia levar-nos à eclosão de um novo fascismo. Se estivermos a par da literatura científica económica, leremos este argumento milhares de vezes.

Esta interpretação do que ocorreu na Alemanha está, contudo, profundamente equivocada, não só na sua totalidade, mas também em cada um dos seus pressupostos. Comecemos pela explicação que atribui a vitória de Hitler à hiperinflação. Desta explicação haveria a deduzir que, quando Hitler foi eleito, a inflação era muito alta, tão alta que as pessoas, como protesto, votaram nele. Pois bem, vejamos os factos: Hitler foi eleito no ano de 1933. E, agora, vejamos os dados da inflação naquele ano. O leitor espantar-se-á, pois verá que não havia nem vestígio de inflação. Na realidade, a elevada inflação tinha já desaparecido há tempos. E os dados estão aí. Repito, não havia inflação. Não se pode, portanto, dizer que a elevada inflação levara Hitler ao poder.

O que se passava, então? É fácil de ver e entender. Se repararmos na evolução da inflação, veremos que a elevada inflação teve lugar antes de 1933, na verdade, dez anos antes, nos anos vinte. Em 1923, dez anos antes da eleição de Hitler, a Alemanha escontrava-se imersa numa inflação insustentável; em Julho desse ano, 1 dólar equivalia a 1,1 milhão de marcos. Dois meses mais tarde, a 109 milhões. Repito, uma situação que não podia continuar. Isto forçou o governo a tomar uma série de medidas, hoje chamar-se-iam austeridade, que tiveram enormes consequências, como também têm enormes consequências as políticas de austeridade de agora. Uma delas foi o enorme crescimento do desemprego, que passou de um milhão para seis milhões de alemães, em apenas três anos, o que representava uma taxa de desemprego de 30%. Foi esta situação de desemprego e a grande descida do nível de bem-estar da população que conduziu aos movimentos de protesto, incluindo o nazismo. É isto que não se diz e deveria dizer-se, porque, hoje, estamos vendo, na Europa, uma situação muito semelhante, onde as políticas de austeridade estão a gerar o crescimento de movimentos fascistas (chamados chauvinistas ou o que for), por todo o território europeu. Não foi a inflação, mas o tipo de resposta que o governo escolheu – as políticas de austeridade, com uma grande redução da despesa pública e dos salários - para resolver essa elevada inflação, que gerou o enorme descontentamento popular e a desafeição pelo regime democrático, tal como está agora a acontecer.

O segundo ponto erróneo, nesta interpretação histórica de atribuir à elevada inflação a subida de Hitler ao poder, está na interpretação das causas da inflação. Não há dúvida de que o nível de inflação, em 1923, era insustentável. Mas, o que é que causou a inflação? E a resposta, de novo, é fácil de ver: foram as enormes políticas de austeridade que os aliados impuseram à Alemanha, derrotada na 1ª Guerra Mundial. Quem melhor previu as consequências destas políticas foi John Maynard Keynes, representante do governo britânico em Versalhes, na reunião que definiu as políticas a seguir por parte do vencido Estado alemão, ao terminar a 1ª Guerra Mundial, políticas tão punitivas que não permitiam a recuperação da economia alemã, mediante políticas expansivas, com aumento da despesa pública, entre outras. Keynes abandonou a reunião, em sinal de profundo desacordo. Tais medidas não deixavam nenhuma outra alternativa ao governo alemão, senão tentar crescer à base de imprimir dinheiro, o que fez em abundância, criando a inflação. E aí está o problema e, também, a semelhança com a actual situação.

A maneira como se construiu a Zona Euro e a sua governação dificulta enormemente o estímulo económico através da expansão da despesa pública e do aumento dos salários. Na realidade, o crescimento económico desceu, na União Europeia, desde que se estabeleceu o euro. O Tratado de Maastricht e, ainda pior, o Pacto Orçamental, imposto pela Alemanha, impossibilita que os Estados tenham défice público, forçando a que a estrutura de poder da Zona Euro e, muito particularmente, do Banco Central Europeu recorressem a políticas de expansão monetária (isto é, imprimir dinheiro, como fez o governo alemão, depois da 1ª  Guerra Mundial), com o perigo de gerar inflação. E, para evitar que isso aconteça, está-se a levar a cabo políticas de austeridade, que estão a destruir o bem-estar da população e a causar o ressurgimento do fascismo. A História repete-se.

O que é que está a acontecer, agora?

Hoje, uma das opções políticas, que canalizam mais o descontentamento popular e, muito em particular, o da classe trabalhadora, é a da ultradireita, tal como estamos a ver em vários países. O caso da França é claro. A Frente Nacional, dirigida por Le Pen, foi a que utilizou, durante a campanha das eleições para o Parlamento Europeu, um discurso mobilizador da classe trabalhadora, apresentando-se, a si mesma, sem nenhuma inibição, como o melhor instrumento para defender os interesses da classe trabalhadora, na luta de classes, frente à oligarquia nacional que atraiçoara a pátria, vendendo-se à Troika. É o nacional-socialismo, que, historicamente, teve uma base operária e que, agora, a recupera, com a cumplicidade da esquerda tradicional (muito especialmente a social-democracia), ao impor políticas que prejudicam os interesses das classes trabalhadoras, para aumentar os lucros do capital. Neste discurso, a luta de classes e a identidade nacional são idênticas, utilizando a bandeira e a defesa da identidade e da pátria como princípios mobilizadores. Foi uma mistura ideológica imbatível. Era lógico e predizível que o fascismo ocupasse o vazio criado pelo socialismo e comunismo. No domingo passado, Le Pen conseguiu o apoio de 30% dos jovens e 43% dos trabalhadores franceses.

O internacionalismo da esquerda, no seu compromisso com a Europa, mostrou-se impotente frente ao nacionalismo do nacional-socialismo. Por outro lado, a identificação da esquerda com a defesa dos imigrantes é o seu ponto vulnerável, pois parece não ser consciente de que quem paga os custos da integração dos imigrantes, num país, são os membros da classe trabalhadora. Escusado será dizer que a imigração enriquece um país. Mas, os custos inevitáveis que a sua integração implica, beneficiando toda a sociedade, não podem ser pagos por aqueles que são mais vulneráveis, absorvendo esses custos. A esquerda, em geral, não tem sido sensível a esta questão. Acrescente-se a isto que o seu internacionalismo, na aliança com os outros povos da Europa, carece de credibilidade, devido à sua cumplicidade com o mundo do capital. O distanciamento dos partidos de esquerda governamentais (e, muito em particular, os da social-democracia) em relação à classe trabalhadora tem sido a origem da sua deterioração eleitoral.

Em Espanha, o fascismo (que adquiriu a sua máxima expressão durante a ditadura, estabelecida com a ajuda do nazismo alemão e do fascismo italiano) caracterizou-se pelo nacional-catolicismo, que conjugou um nacionalismo uninacional extremo com um catolicismo enormemente reaccionário. O golpe militar de 1936 foi feito contra os vermelhos – socialistas e comunistas – e os separatistas, aqueles que tinham uma visão de Espanha distinta da do fascismo espanhol.

Esta ideologia nacional-católica continua muito alargada a sectores da população espanhola, o que explica a receptividade à mensagem do Partido Popular, ao apresentar-se como defensor da unidade de Espanha e dos valores cristãos. Isto explica que o partido político mais instrumentalizado pelos poderes financeiros e económicos, existentes na Europa e em Espanha, continue a ganhar as eleições, apesar do enorme dano que as suas políticas causaram às classes populares, inclusive aos seus votantes. O domínio, por parte do PP, da bandeira e do crucifixo explica a sua sobrevivência, fruto de uma Transição nada modelar.

O que a esquerda deveria fazer era criticar este nacional-catolicismo, muito hegemónico, ainda, no Estado espanhol, mostrando-o como ele é: o encobrimento que esconde o enorme domínio de uma minoria (servil e dócil com a Troika) frente à maioria dos diferentes povos de Espanha, que apresentam, como visão alternativa, outra Espanha, republicana, multinacional, poliédrica, laica, democrática e socialmente justa.

O Domingo passado mostrou, uma vez mais, o problema da esquerda, em Espanha. O voto na esquerda foi muito maior do que o voto na direita. Mas, a direita continuará a governar Espanha. E seis milhões mais continuarão desempregados, tendo a situação social das classes populares alcançado níveis desconhecidos de deterioração. Grande parte da responsabilidade tem-na os dirigentes do PSOE (o partido maioritário da esquerda), cujas políticas públicas foram responsáveis por esta deterioração, sendo cúmplices da direita espanhola e da direita europeia, no desenvolvimento da Europa do capital. A Espanha necessita de uma rebelião do eleitorado e das bases deste partido, para mudar profundamente a sua direcção e o seu aparelho partidário. E a esquerda não governante (cujo crescimento aplaudo e considero muito positivo) deveria transcender os seus interesses partidários e aliar-se em todo o território espanhol, para agitar o panorama político espanhol, com amplas mobilizações e exigências de mudança, a todos os níveis, com ampla participação cidadã, consciencializando a população de que os que governam a Espanha representam uma minoria muito exígua da população espanhola (11% do eleitorado), que defende interesses económicos e financeiros muito particulares, antepondo-os aos interesses das classes populares, que são a maioria da população.

Tradução de Maria José Santos (Blogueoqueelesescondem.blogspot.pt)

Sobre o/a autor(a)

Vicenç Navarro

Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).