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Onde começa a extrema-direita

"Com o levantar da cabeça de um racismo normalmente escondido por detrás do orgulho histórico, tudo pode mudar se o invisível, como parece estar acontecer, se der a ver." Texto de Luís Trindade publicado na revista Esquerda.
Código Casanatense
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Uma discussão é sempre bem-vinda e nos últimos dois anos tivemos alguns motivos de satisfação. Desde as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa na ilha de Gorée, em Abril de 2017, e passando depois pelo debate em torno da proposta da câmara de Lisboa para a criação de um Museu dos Descobrimentos, já em 2018, alguns dos tópicos mais familiares da historiografia e cultura portuguesas – a expansão ultramarina, o império português, a memória colonial – entraram no espaço público com uma frequência e intensidade pouco comuns. Numa entrevista recente ao Diário de Notícias, o historiador José Pedro Monteiro podia aliás fazer já um balanço disso mesmo, defendendo que a “batalha constante de argumentos, de reformulações, de proposta de novas revelações” ao longo destes dois anos de debate tinha gerado “novos conhecimentos, novos argumentos, novos testemunhos”(1).

Monteiro falava a propósito do lançamento do seu livro Portugal e a Questão do Trabalho Forçado, um retrato impiedoso da violência colonial no império português em pleno século XX, o que lhe permite revisitar e re-situar um aspeto importante de toda discussão: “o facto de a abolição da escravatura ter resultado na generalização do trabalho forçado faz com que nas discussões públicas a questão do trabalho forçado quase não apareça.” Quem acompanhou minimamente os termos do debate sabe a que se refere José Pedro Monteiro: a violência e exploração do expansionismo imperial foram objeto de um corte temporal que as remeteu para uma dimensão distante, estranha ao presente do próprio debate, como se uma descontinuidade radical nos separasse de todos os “aspectos negativos” ou “efeitos laterais” (como alguns, ingénua, ou mais cruelmente, se referiram à escravatura) do processo histórico.

Acusar de anacronismo os que procuraram assumir o olhar do presente sobre o passado, torna-se subitamente mais difícil perante o objecto de Portugal e a Questão do Trabalho Forçado, debruçado sobre o período entre 1944 e 1962, ou seja, num tempo que é ainda vivido como parte da nossa contemporaneidade. Mas ao envolver, desta forma, o presente do debate no passado histórico que lhe serviu de objecto, a entrevista a José Pedro Monteiro deixou mais claramente à mostra, retrospetivamente, o que de facto se tem andado a discutir nos últimos dois anos. A proximidade temporal, mas também o poder de choque da imensa violência sistematizada pelo historiador, dão a medida do quanto ainda temos de debater, enquanto comunidade, o colonialismo.

As tomadas de posição coletivas, que constituíram alguns dos momentos mais significativos da discussão, revelam todas esta motivação: as “cem pessoas negras” que, “excluídas do corpo nacional, assist[em] a uma disputa pela memória que reforça a glorificação da ideologia colonial”(2); os cientistas sociais ao reconhecer o aparecimento desses mesmos “grupos de afrodescendentes que querem uma história justa”(3); os “profissionais do sector cultural e científico” ao querer “aproveitar esta oportunidade para refletir sobre o passado colonial português e as suas ramificações no presente”(4); e até a ideia, de sentido oposto, apresentada numa petição encabeçada pelo presidente da Nova Portugalidade, de que o museu devia ser “um factor de união, compreensão e aproximação entre povos irmanados pelo grande projeto científico, tecnológico, logístico e cultural dos Descobrimentos” (5): todas estas posições apontam numa mesma direção: o colonialismo como horizonte epistémico do debate, mesmo quando surge – tal é o caso da petição nacionalista –, implicitamente, na forma de negação.

 

O tempo do debate

Na realidade, um dos aspectos mais decisivos de toda a discussão, vista agora em conjunto, foi precisamente sobre a definição do seu objeto. No verão de 2017, o historiador Paulo Pinto lançou um repto neste sentido a João Pedro Marques (JPM), especialista em história da escravatura e de longe o mais ativo interveniente no debate. O problema, para Pinto, era que “a memória dos portugueses enquanto povo permanece truncada no que diz respeito ao nosso passado colonial, ofuscada por ‘descobrimentos’, feitos, heróis, pioneirismo, brandos costumes e excecionalismo”, e que era portanto importante trazer a discussão “do plano académico ou histórico” para o “da opinião pública e da memória coletiva”, a fim de podermos confrontar “velhas questões enraizadas, como a existência de problemas raciais em Portugal.”(6) Ou seja, antes de ser uma questão historiográfica, esta seria uma discussão sobre as condições em que atualmente se olha para o passado na sociedade portuguesa.

JPM recusou-se então a aceitar os termos da discussão, argumentando que é impossível estabelecer nexos de causalidade “a uma distância de 200, 300, 400 anos”, e acusando depois o seu interlocutor de querer manter a história refém da memória e a partir daí criar novas mitologias sobre o passado. Em termos muito claros (que Pinto, em réplica, acusaria de “compartimentos estanques” e “simplificações grosseiras”), a história surge aqui como “coisa séria”, que “não se faz em comícios”, e que “serve para dizer aos cidadãos o que é verdade e o que é mentira.”(7) Poder-se-ia dizer que a historiografia, para JPM, está epistemologicamente mais próxima do seu próprio objecto de estudo – o século XIX do positivismo, onde a ciência funciona como critério de verdade e a história como narrativa do que realmente aconteceu – do que do presente do debate, entretanto permeado por intervenções frequentes, da academia e fora dela, insistindo sobre o défice de memória do colonialismo e o racismo como persistência histórica na sociedade portuguesa(8).

É interessante perceber um pouco melhor – até pela posição central que foi ocupando no debate – esta recusa em “trazer para a praça pública algo que já foi profusamente debatido – repito: profusamente debatido – e que já não existe”(9), ou seja, a escravatura segundo JPM. A intervenção do historiador assenta sobretudo em duas teses (desenvolvidas em obras como Os Sons do Silêncio e, mais recentemente, Escravatura): em primeiro lugar, a de que os portugueses não só não foram pioneiros no tráfico de escravos (“antes já os muçulmanos o praticavam em larga escala através do Sara, do Índico e do mar Vermelho”(10)) como contaram sempre com a colaboração dos próprios africanos (o que tornaria injustificáveis quaisquer pedidos de desculpa por parte do Estado português); em segundo lugar, que o único papel original que Portugal, enquanto parte de uma mais vasta “cultura ocidental”, desempenhou em todo o processo, foi na abolição da escravatura: “o abolicionismo é uma ideologia (e uma prática política) emanada do mundo ocidental. Não houve abolicionismos asiáticos ou africanos, a não ser como reflexo do movimento desencadeado pelos ocidentais.”(11)

Em geral bem informado e estruturado, o argumento de JPM surpreende aqui pela ingenuidade com que reproduz a narrativa emancipatória da modernidade. Não há na sua história qualquer eco da crítica ao iluminismo como razão instrumental e governamentalidade, as fundações mentais da expansão do imperialismo e capitalismo europeus à escala global. O que há, no século de XIX de JPM, é um conjunto de “europeus e americanos” com um “sentimento muito agudo de arrependimento e de injustiça”, que, desconhecendo o “papel muito ativo no horrível negócio” por parte das “autoridades africanas”, “viam os africanos e o próprio continente como vítimas passivas e inocentes da cobiça europeia”, pelo que “cabia ao Ocidente, custasse o que custasse, pôr fim a tais horrores.”(12) Semelhante ingenuidade torna-se quase obtusa quando, em nova polémica já no final de 2017 – com o sociólogo Elísio Macamo, que reagira, precisamente, a esta narrativa branda da aventura iluminista europeia – JPM alarga o que antes mantivera firmemente no âmbito da historiografia (a escravatura como algo que já foi profusamente debatido e que já não existe) para mais próximo da nossa contemporaneidade.

Macamo, a dado passo, pergunta se não celebrar Hitler não seria uma forma de ‘presentismo’, de pensar ‘fora da história’(13), como JPM acusara os que insistem em projetar sobre o passado valores que pertencem, segundo ele, exclusivamente ao presente. A resposta interessa-nos, sobretudo, por nos trazer de volta à questão do colonialismo e do trabalho forçado no século XX e, mais especificamente, mostra-nos como a recusa em aceitar que todas as posições no debate estão igualmente implicadas no presente, mesmo as mais orgulhosas da sua autoridade académica, deixa estas vulneráveis perante as armadilhas do passado. Para JPM, “a rejeição da escravatura está interiorizada na cultura europeia” do século XX. Assim sendo, não só “Hitler não agiu de acordo com os padrões do seu tempo”, como a segregação racial na África do Sul e nos Estados Unidos foram “anomalias altamente contestadas no resto do mundo ocidental”(14).

O mundo ocidental, na perspectiva de um positivismo particularmente pobre na sua linearidade, surge assim como uma entidade plana e unívoca, onde não é possível ver contradições nem fenómenos que a narrativa de JPM nos garante estarem interiorizados. Como corolário desta visão singular do nosso passado recente, “segregação e trabalho forçado não são escravatura”(15), uma vez que, recorde-se, a última era coisa do passado já completamente resolvida, insusceptível de qualquer traço no presente.

As posições ideológicas

De todas as potenciais formas de negacionismo a que a posição de JPM o deixa à mercê, não conseguir vislumbrar no racismo e exploração colonial contemporâneas uma interiorização mais funda do que a da rejeição da escravatura, parece-me apesar de tudo menos relevante do que o modo como outra forma de inconsciente político, a do viés nacionalista, permeia toda a sua intervenção no debate. Ou seja, mais do que discutir a história da escravatura enquanto tal – e menos ainda do que entrar na contabilidade da participação portuguesa no negócio, prática ligeiramente obscena (como se a questão fosse um lugar no ranking ou o número de milhões de escravos) a que se entregou tanto JPM como alguns dos seus oponentes – o que me parece interessante verificar é o modo como o nacionalismo se insinuou pelo debate com a sua eficácia habitual: enquanto senso comum, posição neutra, contra a qual todas as outras se tornaram necessariamente políticas e ideológicas – sobretudo a dos que assumiram que o aspeto mais importante da discussão era, é, o colonialismo, e não as descobertas.

A vantagem do nacionalismo é que, enquanto ideologia, passa menos pelo conteúdo do que pela performance com que se banaliza, como se não fosse, ele próprio, ideológico. Em JPM, a autoridade do historiador, como vimos, é o que serve para desqualificar todos aqueles que entram na discussão sob o efeito enganador da memória. Por um lado, “há aqueles que não têm tabus nem pedras no sapato relativamente a esse passado”, depois “há os que, pelo contrário, olham para ele (…) com vergonha e vocação penitente.”16 Mas não se trata apenas de ignorância e falta de frieza científica. Há também preconceito e má-fé. “As pessoas de que falo” – “por estranho que pareça, há muita gente a pensar assim”(17) – são os que quando se fala de escravatura, atribuem toda a culpa aos portugueses – “há muitas pessoas que se esfalfam e se esfolam para tentar demonstrar que a culpa dessa barbaridade foi toda dos brancos, e dos portugueses, em primeiro lugar” – mas quando se fala de descobrimentos, já dizem que houve “encontro de culturas.”(18) O último ponto é equívoco, pois para muitos dos críticos da ideia de descoberta, a questão é precisamente contar a história inteira – das viagens ao colonialismo – dentro de uma narrativa relacional (e invariavelmente marcada pela violência).

Mas o que aqui me parece mais interessante, é o modo como o outro da discussão é, senão exatamente o estrangeiro, pelo menos o antipatriota, o que entra na discussão para rebaixar Portugal. Isto serve, por um lado, para normalizar a nação como a premissa que já lá está mesmo antes da discussão começar: ‘os povos evocam e celebram os seus feitos, não os seus defeitos’.(19) Daqui, é depois fácil chegar à história nacionalista propriamente dita: desqualificando a pretensão de “dar aos descendentes dos militarmente mais fracos, dos vencidos, dos ocupados, o orgulho póstumo de terem tido uma participação ativa nos mais importantes acontecimentos da história do mundo”, primeiro; e reforçando, depois, a velha e familiar retórica da epopeia: “ora, é preciso que os que foram protagonistas não sejam retirados da imagem nem fiquem nas filas de trás. Os Descobrimentos e a subsequente expansão deram-se porque houve gente que se meteu em navios e foi procurar mundo.”(20)

A estrutura nacionalista da narrativa – porque é, insisto, acima de tudo uma questão formal e performativa – começa portanto por desqualificar o adversário. A posição que, no debate, criticou as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa ou o nome do projeto do Museu dos Descobrimentos foi, em diferentes momentos, identificada como a dos flagelantes – “pessoas bem-intencionadas, mas pouco ou mal informadas”(21) –, ativistas – “jornalistas de causas, ingénuos bem-intencionados, historiadores engagés”(22) – uma gente com “toneladas de preconceitos ideológicos”(23), de uma ideologia aliás particularmente perniciosa, de “certos sectores da nossa esquerda, em particular os mais ligados às Ciências Sociais e Humanas”(24) (a equivalência entre sociologia e socialismo como um tropo salazarista por excelência), em deriva radical a caminho da “extrema-esquerda”(25) ou, porventura pior, “na velha tradição marxista-leninista da autocrítica”.(26)

Um ponto alto deste imaginário terá sido a comparação com os “talibãs afegãos”(27) (outro nacionalista, Renato Epifânio, falaria dos “talibans do politicamente correto”(28)), o que nos permite completar uma lista praticamente exaustiva de todos os espectros agitados enquanto ameaças ao ocidente desde a guerra fria e das lutas anticoloniais. Neste contexto, “o Ocidente está doente, minado por dentro. Há um processo revolucionário em curso de que muita gente ainda não se deu conta e que tenta levar a cabo uma transformação cultural.”(29) Dada a natureza cultural da transformação, “essa revolução em curso não está a ser feita de armas na mão, mas sim nas salas de aulas das escolas e universidades ocidentais.” Naturalmente, “Portugal não está imune a isso. Aliás, vários dos nossos académicos e dos nossos estudantes reproduzem os modelos e procedimentos que lhes chegam dos Estados Unidos.”(30) Aqui chegados, nada distingue a posição do historiador no debate – aquela posição que, como vimos, estaria acima de quaisquer preconceitos ideológicos – da retórica isolacionista do salazarismo, não por acaso a cultura política que sistematizou e normalizou o nacionalismo português contemporâneo.

A ideologia do nacionalismo

O caso de JPM é-nos útil por três razões: a sua intervenção foi contínua ao longo dos últimos dois anos, cobrindo todos os aspetos que a discussão foi tomando; não é, assumidamente, um nacionalista, mas um historiador de referência num tema particularmente sensível na história do império português; finalmente, precisamente por se tratar de um discurso desafiante para a análise do nacionalismo – que emerge, explícita mas quase inadvertidamente nas formas do argumento – ilustra o poder que este tem em se fazer passar pela natureza das coisas. É assim importante cotejar toda esta retórica com o que dizem aqueles que assumiram posições declaradamente nacionalistas. Quando Jaime Nogueira Pinto, por exemplo, fala de uma “doença cultural que atravessa o Ocidente” e divide o debate entre “pessoas descomplexadas, independentes, conscientes da sua própria identidade e subjectividade e pessoas obcecadas pela enfermidade do ‘politicamente correto’”(31), isto não é apenas uma coincidência entre coisas praticamente idênticas ditas por gente diferente, mas uma verdadeira cristalização do nacionalismo enquanto doxa.

É desta posição no debate que depende, não só a capacidade dos nacionalistas em falar de descobertas sem falar de colonialismo, mas de banalizar, depois, as versões mais apologéticas da história nacional: “dessa empresa tão sofrida resultou o orgulho de ter sido Portugal o iniciador da Era Gâmica, a que hoje chamamos globalização e pela qual o Norte encontrou o Sul, e o Sul o Norte”, pode ler-se na petição da Nova Portugalidade. Não é necessário um esforço interpretativo particularmente sofisticado para identificar o preconceito nacionalista – a petição nunca o esconde, de resto: “não se compreende (…) de que modo seria de desprezar o ‘ponto de vista português’ em acontecimentos de que foram os portugueses pioneiros e protagonistas” – ou a hipérbole com que se atribui a Portugal um protagonismo histórico.

Mas também não é isso o mais importante. O ponto aqui decisivo é o de um poder discursivo que, ao normalizar a excecionalidade das “descobertas” numa narrativa épica, corta relações diacrónicas, recalca memórias históricas e oculta sujeitos sociais. Percorrendo a página de Facebook da Nova Portugalidade, percebe-se que a ferramenta ideológica nem é tanto a da tolerância racial luso-tropicalista (esta serve, afinal, para mitigar o colonialismo, mas o problema do debate foi, como vimos, a tentativa de fazer parecer com que o colonialismo nunca tivesse existido) mas uma tradição cultural mais longa e insidiosa, a da Filosofia Portuguesa, corrente intelectual com largos pergaminhos no nacionalismo cultural português – sendo a lusofonia o seu mais visível avatar contemporâneo –, e que reclama para Portugal a personificação de um destino universal.

Não por acaso, entre os momentos do debate que chegaram à página de Facebook do grupo nacionalista, estão precisamente intervenções de historiadores que assentam nesta narrativa épica. Do que me pude aperceber, não há aí nenhuma referência a João Pedro Marques. Uma história baseada no tráfico de escravos, por mais arrumada que esteja lá longe no passado, provoca ainda assim um atrito aparentemente incompatível com a celebração de Portugal que percorre a página. Já o comunismo de António Borges Coelho provocou menos problemas – pelo contrário, aliás, as ideias do historiador foram salientadas para mostrar como a portugalidade está para além das diferenças políticas – quando se tratou de reconhecer a façanha de “um pequeno país, uma anedota de país, que são 89 mil quilómetros quadrados” e que “esteve na vanguarda do planeta”.(32)

Outras referências na página foram feitas a uma entrevista de João Paulo Oliveira e Costa – “se dermos aos Descobrimentos a imagem não de um processo português, mas de um processo mundial desencadeado pelos portugueses, passa a ser uma palavra mundial que reflete aquilo que aconteceu de facto”(33) – e a um artigo de Luís Filipe Thomaz – os portugueses “deram origem ao mundo moderno tal como o temos, com os defeitos e virtudes inerentes a toda a construção humana.”(34) Nenhum destes historiadores escamoteia a violência do processo – embora por vezes em forma de eufemismo, como quando Thomaz se refere à “intensificação da escravatura” ou “à difusão da sífilis americana no Velho Mundo”, como “efeitos laterais”(35) –, mas isso é, em última análise, um mero aspeto episódico, diluído numa narrativa global em que os portugueses epitomizam, com todas as suas “virtudes” e “defeitos”, nada menos que a própria humanidade.

Por outras palavras, e para concluir, enquanto percursor da modernidade, pioneiro da globalização, Portugal cumpre um papel messiânico na história universal. Tal messianismo, na desproporção histórica do seu argumento, é finalmente o que na mentalidade nacionalista ocupa o papel desempenhado pelo colonialismo para aqueles que, ao questionarem um nome de museu ou ao exigirem um pedido de desculpa, têm procurado revisitar mais criticamente a história de Portugal, descolonizando-a: o que aqui está em causa, afinal, é um desacordo sobre o próprio lugar do debate, como vimos no início. Por um lado, e pelo menos pelo que até aqui nos foi dado a ver, estão aqueles que continuarão a fazer história a partir do centro que julgam ocupar no mundo. Por outro, uma atitude intelectual disponível para um gesto teórico de desidentificação, que começa por reconhecer como o outro foi desde sempre sobre-identificado pelo Europeu, e que, através da abertura a perspetivas não eurocêntricas, nos permita relativizar, ou descentrar, os pontos de vista do debate – no fundo, um percurso que nos equipe com as ferramentas elementares da teoria pós-colonial, escondida por detrás do recurso ao politicamente correto como insulto, mas que foi na verdade o problema subjacente ao longo dos últimos dois anos.

Post-scriptum

No momento em que escrevo este texto, circulam pelas redes sociais dois vídeos onde forças policiais agridem cidadãos negros em subúrbios lisboetas. Pelos mesmos dias, um homem condenado por crimes de ódio racial foi entrevistado num canal de televisão generalista que o apresentou como “autor de umas declarações polémicas.” O estatuto destes dois conjuntos de imagens é diametralmente oposto. O segundo foi um acontecimento mediático, a projeção pública de uma figura que perfilha ideias até aqui sem grande expressão na sociedade portuguesa, em nome de uma guerra de audiências entre dois canais televisivos. O primeiro conjunto de imagens, pelo contrário, mostra o que suspeitamos ser prática corrente nesse imenso espaço invisível, os subúrbios, e devemo-lo a câmaras de telemóvel escondidas.

Nenhum destes acontecimentos se relaciona diretamente com a “era gâmica” de que se orgulha a Nova Portugalidade. E, no entanto, o próprio sucesso desse nacionalismo baseado na ideia de viagem e descoberta, em que Portugal teria aberto o caminho para a globalização, depende rigorosamente da invisibilidade doque são, hoje, os traços do colonialismo na sociedade portuguesa. Em certo sentido, pelomenos até aqui, a insignificância da extrema-direita declaradamente racista deve-se a essa invisibilidade, ou seja, a um outro tipo de racismo, mais sistemático, que marginaliza e deixa fora do espaço público uma parte da população, precisamente aquela que evoca, pela sua presença, o passado colonial. A performatividade ideológica do nacionalismo no seu ponto mais subtil e eficaz funciona então assim, mantendo invisível, em nome de uma certa ideia de Portugal, a própria sociedade portuguesa.

Mas como estes dias têm também sugerido, com o levantar da cabeça de um racismo normalmente escondido por detrás do orgulho histórico, tudo pode mudar se o invisível, como parece estar acontecer, se der a ver. Nesse caso, talvez já estejamos a viver, não uma, mas duas descobertas: a da irrupção da cidadania negra no espaço público, e a do racismo larvar, cuja violência – na velha tradição colonial portuguesa – não deixará de lhe responder. A vantagem destas descobertas será, precisamente, a sua visibilidade. Mais do que num museu sob o pretexto do passado, o colonialismo português passará a ver-se, politicamente, no presente.

Notas

1 Fernanda Câncio, entrevista a José Pedro Monteiro. “E manda ainda o senhor Deus pretos a este mundo?”, Diário de Notícias, 29-12-2018.

2 “Não a um museu contra nós!”, Público, 22-6-2018.

3 “A controvérsia sobre um Museu que ainda não existe. Descobertas ou Expansão?”, Expresso, 12-4-2018.

4 “Agentes culturais contra a designação e missão do “Museu da Descoberta” da Câmara Municipal de Lisboa”, Público, 22-5-2018.

5 “Lisboa precisa de um Museu dos Descobrimentos, da Expansão e da Portugalidade”, Petição Pública

6 Paulo Pinto, “Torres de marfim e poeira amnésica”, Público, 26-7-2017.

7 João Pedro Marques, “Memória não é História (e às vezes nem sequer é verdade)”, Público, 28-7-2017.

8 Ver, por exemplo, Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, “Portugal ainda resiste a olhar para o seu passado de forma desassombrada e crítica”, Público, 9-7-2018.

9 João Pedro Marques, “Porquê e para quê voltar à escravatura 150 anos depois?”, Público, 31-5-2017.

10 João Pedro Marques, “Pior é impossível. Portugal e a escravatura na lupa politicamente correcta”, Obsevador, 25-7-2018.

11 João Pedro Marques, “Marcelo e a Escravatura: 20 valores”, Público, 18-4-2017.

12 João Pedro Marques, “Quantas vezes terá Portugal de pedir desculpa?”, Público, 27-9-2017.

13 Elísio Macamo, “Só há um absoluto: não há absolutos”, Público, 30-11-2017.

14 João Pedro Marques, “Uma mão cheia de enganos”, Público, 5-12-2017.

15 Idem.

16 João Pedro Marques, “O passado de Portugal e os advogados do diabo”, Público, 26-6-2018.

17 João Pedro Marques, “Dois pesos e duas medidas”, Público, 1-6-2018.

18 Idem.

19 João Pedro Marques, “O passado de Portugal e os advogados do diabo”, Público, 26-6-2018.

20 João Pedro Marques, “Dois pesos e duas medidas”, Público, 1-6-2018.

21 João Pedro Marques, “Os flagelantes e a escravatura”, Público, 18-7-2017.

22 João Pedro Marques, “Porquê e para quê voltar à escravatura 150 anos depois?”, Público, 31-5-2017.

23 João Pedro Marques, “Portugal e a escravatura: dois mal-entendidos”, Observador, 6-7-2018.

24 João Pedro Marques, “Pedir desculpa pela escravatura? Três razões para não ir por aí”, Diário de Notícias, 18-5-2018.

25 João Pedro Marques, “Na foz do Dande há 174 anos”, Público, 8-2-2018.

26 João Pedro Marques, “Marcelo e a Escravatura: 20 valores”, Público, 18-4-2017.

27 João Pedro Marques, “Falinhas Mansas”, Diário de Notícias, 22-8-2017.

28 Renato Epifânio, “Bora lá derrubar mais umas estátuas?”, Público, 2-9-2017.

29 João Pedro Marques, “Estátuas caídas e outras aberrações politicamente correctas”, Observador, 31-8-2018.

30 Idem.

31 Alexandre R. Machado, “Museu das “Descobertas” ou da “Expansão”? Nome abre guerra entre historiadores”, Sábado, 15-5-2018.

32 Isabel Lucas, entrevista a António Borges Coelho, “Sem a prisão e a preocupação pelas minorias eu não teria ido para História”, Público, 16-12-2018.

33 José Cabrita Saraiva, entrevista a João Paulo Oliveira e Costa, “Antes dos descobrimentos nenhum ser humano sabia como era o planeta”, Sol, 14-8-2018.

34 Luís Filipe Thomaz, “Por um Museu dos Descobrimentos”, Observador, 6-8-2018.

35 Idem.

Publicado em fevereiro na revista Esquerda.

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