O Sonho de Abril tem umas traseiras, como todas as revoluções. Se o Sonho foi concretizado a partir de 1982 através de um cooperativa de habitação, só se tornaria completo por volta do ano 2000 com a construção dos prédios que realojaram os restantes moradores da Quinta dos Peixinhos e Alto da Eira.
A rua que une a Cooperativa ao Realojamento é a Henrique Barrilaro Ruas, até ontem desconhecida da maior parte dos Lisboetas. Só lá vai quem a conhece. Tem várias oficinas, cafés, uma churrasqueira muito frequentada e até um bar.
Apesar da oferta diversificada, o centro da rua e do Bairro era o Salão/Barbearia Granda Pente, propriedade de Carlos Pina. Durante todo o dia, mas em especial a seguir ao almoço, um conjunto de crianças, jovens e pares do Pina concentravam-se à sua porta. Uma boa amostra dos bairros populares desta cidade, gente de várias ascendências, pertenças, de rappers a fadistas.
Na ausência de infraestruturas públicas no Bairro, a barbearia tornou-se o seu centro, a que não é alheio o facto do Pina ser dali. A sua presença significava, para muitos, uma aspiração de oportunidade: é possível fazer o que gostamos e fazê-lo no nosso berço.
Os jovens entram e põem as suas músicas preferidas. Pais e filhos cortam o cabelo em conjunto como que a preparar memórias futuras. Avós a garantirem aos seus netos um corte customizado que vai fazer furor no dia seguinte numa das escolas da zona. Eu também cortava o cabelo no Pina.
Ainda me lembro de quando o Pina quis ser barbeiro. Dos cortes caseiros ao curso técnico-profissional da especialidade que tirou, cujo diploma podemos ver emoldurado na barbearia. Ganhou experiência em várias barbearias, nomeadamente com o Naf, até abrir a sua, há dez anos, no bairro onde mora.
2014 seria apenas mais uma fase do altruísmo do Pina. Nos últimos dez anos deu a mão a vários jovens para experimentar o ofício. Uns abriram os seus próprios salões, outros até podiam voltar para mais uma oportunidade de iniciar um projecto de vida.
Ontem, dia 2 de Outubro, cheguei à barbearia uns vinte e cinco minutos depois da tragédia. Lidei com as testemunhas ainda numa indecisão entre o choque, a adrenalina e a incredulidade.
E por isso: sim; pelo que viram e viveram, parece que foi mesmo alguém com questões de saúde mental e de adição, com uma embirração regular recente da falta de agenda para corte de cabelo que realizou os três homicídios. Não houve “tiroteio”, “ajuste de contas”, “malas de droga”, “guerra étnica”, “tráfico”. O Pina nunca foi condenado por tráfico ou posse de arma como afirmam alguns órgãos de comunicação social (um tal de “a sic sabe”, mas que é de fazer scroll em redes sociais).
Um homicídio é sempre uma tragédia. Três homicídios é quase inédito e tem uma escala e repercussão difíceis de imaginar. Nesse sentido o posicionamento dos media tem sido de uma total irresponsabilidade. Não se trata de apurar a verdade, mas de pôr o algoritmo da atenção a funcionar.
Mesmo perante os testemunhos no local, preferiram em muitos casos optar por outras vias, baseadas em preconceitos e lugares comuns. Irresponsável porque há todo um manancial de memória das vítimas que é subjugada a uma narrativa amplificada e errónea; irresponsável porque mexe com toda uma comunidade, alheando-os do essencial e de todo um luto.
Pensem comigo: Onde e como o apoio de emergência médica demora 40 minutos a chegar a um incidente desta natureza no centro de Lisboa? Onde e como imaginamos que a polícia abandona a cena de um triplo homicídio, cinco horas após o mesmo, quando o principal suspeito mora uns prédios à frente? Onde e como deixa-se um lugar do crime de cortinas abertas e luz acesa de modo a que todos possamos observar os seus vestígios: sangue, cobertor que cobriu o corpo e utensílios de emergência.
A suposta vingança das pessoas vem muito depois do abandono das instituições.
Neste marasmo, e articulado com o papel dos media e das instituições, vem a política, em que cada um quer que o homicídio decorra de acordo com a sua agenda, promovendo essencialmente ficções, transformando em real o irreal.
É evidente que isto é político mas na essência e substrato e não nos 280 caracteres de cada post na rede X. Político é dar apoio aos familiares das vítimas, muitas são crianças e jovens. Político é ajudar a comunidade a fazer o luto. Político é garantir o apoio incondicional às dezenas de jovens que socializam todos os dias no Pina e ajudá-los a não naturalizar este tipo de acções. Político é garantir a saúde mental de todos. Político é perguntar onde estão neste momento os projectos para jovens patrocinados pelo município e suas empresas. Político é garantir que isto não volte a suceder.
Os habitantes das zonas mais pobres desta cidade, aparentemente, nem na morte têm direito a dignidade.
Pina, o teu sonho foi lançado. Resta-nos continuá-lo.
António Brito Guterres é assistente social e investigador em estudos urbanos. Artigo publicado no seu site Traficante de Sonhos.