Síria

O regime Assad: autoritário, neoliberal, clientelista e neo-patrimonial

13 de dezembro 2024 - 21:52

Nesta importante entrevista, Joseph Daher conta-nos a história de como os Assad tomaram o poder e o mantiveram, de como emergiu uma revolta popular contra o regime e depois uma guerra civil, para além de analisar os interesses das diferentes potências regionais e mundiais na Síria.

por

Clément Plaisant e Joseph Daher

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Assad, pai e filho.
Assad, pai e filho. Montagem: LVSL.

Esta entrevista foi realizada em maio de 2022. Revisitando a história da ditadura Assad, da revolta popular contra ela e da guerra civil que se seguiu, não perdeu entretanto atualidade. É uma peça importante para compreender a atual situação [nota do Esquerda.net]


Joseph Daher é professor do Instituto Europeu de Florença, onde participa no projeto Wartime and Post-Conflict in Syria, e ensina na Universidade de Lausanne. É autor de Hezbollah, un fondamentalisme religieux à l'épreuve du néolibéralisme (Syllepse 2019) e Syria after the Uprisings, the Political Economy of State Resilience (Pluto Press e Haymarket, 2019). Nesta entrevista alargada, faz uma retrospetiva da génese, das caraterísticas e da evolução do regime de Assad. Trata-se de um regime que, devido à sua posição estratégica no Médio Oriente, goza há muito do favor de grandes potências. Por fim, aborda a guerra que assolou a Síria desde 2011: o fracasso da revolução síria, a responsabilidade do regime em transformar a revolta numa guerra civil e depois internacional e a derrota da oposição e dos seus apoiantes estrangeiros.

 

Hafez al-Assad, o pai de Bashar al-Assad, chegou ao poder no início da década de 1970. Para alguns, na altura, tratava-se apenas de mais uma revolução palaciana e muitos não sabiam que um longo período de estabilidade se seguiria à sua ascensão ao poder. Poderia começar por recordar as circunstâncias e os antecedentes da tomada do poder por Hafez al-Assad, membro do Ba'th, o partido nacionalista e socialista pan-árabe?

Joseph Daher: Nessa altura, Hafez al-Assad era um dos mais importantes dirigentes da República Árabe da Síria, tendo ocupado o cargo de Ministro da Defesa desde 1966. Após 1967, assiste-se a um período de radicalização política no mundo árabe, nomeadamente à esquerda. Surgiram numerosos partidos socialistas e comunistas, inspirados nos acontecimentos de 1967 e nos protestos ligados à guerra do Vietname. Na Síria, esta dinâmica reflete-se na chegada ao poder de Salah Jadid, que representa a ala esquerda do Partido Ba'th. As políticas da ala radical do Partido Ba'th, tais como a reforma agrária, as nacionalizações e a criação de grandes sectores públicos, tiveram consequências sócio-económicas significativas a partir do final dos anos 60 e início dos anos 70, nomeadamente a favor dos sectores mais desfavorecidos, em detrimento das classes burguesas mercantis e industriais e dos grandes proprietários de terras.

No entanto, a derrota de 1967 enfraqueceu o novo governo sírio, com o início de uma batalha interna entre Salah Jadid e Hafez al-Assad. [Em junho de 1967, Israel derrotou os exércitos sírio, egípcio e jordano. Este conflito é conhecido como a Guerra dos Seis Dias]. Discordavam em três pontos principais: em primeiro lugar, a pertinência de uma guerra popular dos palestinianos contra Israel; em segundo lugar, a atitude a adotar em relação aos regimes árabes conservadores, como a Arábia Saudita; e, em terceiro lugar, as políticas sociais a seguir, nomeadamente as nacionalizações. Hafez al-Assad era favorável a uma aproximação às monarquias do Golfo e defendia uma certa moderação económica, opondo-se às opiniões de Salah Jadid.

Em 1970, Hafez al-Assad fez finalmente um golpe de Estado contra Salah Jadid. Alia-se então aos segmentos mais conservadores da sociedade, como a burguesia de Damasco. Este pacto teve repercussões tanto a nível interno, com uma tímida liberalização da economia, como a nível externo, como veremos mais adiante. Durante os primeiros anos, a sua prioridade não foi atacar os Irmãos Muçulmanos, mas sim a oposição democrática, de esquerda e laica, apoiada por amplos sectores dos sindicatos (operários e camponeses) e das associações profissionais.

 

Hafez al-Assad construiu um regime presidencialista com um toque de autoritarismo e personalismo, no qual o papel da família e do clã alauíta é fundamental para compreender o destino da Síria. Mais concretamente, na sua opinião, ele irá criar um Estado patrimonial. O que é que quer dizer com isto?

O regime instaurado por Hafez al-Assad será autoritário e neo-patrimonial. Por patrimonial, quero dizer que todos os centros de poder são controlados por uma única mão ou um único grupo. Consequentemente, toda a família Assad desempenha um papel importante, não só a nível político e económico, mas também nas forças armadas e nos serviços de segurança. É evidente que não podemos esquecer a importância no seio do regime de figuras como Abdel Halim Khaddam e Mustapha Tlass. Quanto ao resto, a variável familiar continua a ser central: quando se olha para a composição do corpo de oficiais, há certamente alauítas, mas há sobretudo indivíduos diretamente ligados quer a Hafez al-Assad quer à primeira-dama, Anissa Makhlouf. [Nota da edição: Os alauítas são um grupo religioso que representa cerca de 10% do total da população síria. A religião alawita é um sincretismo de crenças pré-islâmicas, do neoplatonismo e do islamismo xiita. São reconhecidos como muçulmanos, pertencentes ao xiismo].

No entanto, seria incorreto afirmar que foi estabelecido um "regime alauíta". Os alauítas não beneficiaram mais do que os outros das políticas económicas do regime e apenas uma minoria goza de uma posição económica confortável graças aos seus laços clientelistas. Consequentemente, muitas regiões de maioria alauíta caracterizam-se por elevados níveis de pobreza, como as zonas rurais de Latakia e Tartous. Existem, portanto, divisões políticas, sociais, económicas e de género entre os alauítas, tal como entre outras comunidades.

Família Assad
Família Assad.

 

A Síria de Assad é, acima de tudo, nas palavras da jornalista Caroline Donati, o "protótipo do Estado mukhabarat (o nome dos serviços secretos e de segurança)". Na década de 1970, contava com cerca de 60.000 membros dos serviços secretos. Este cenário ilustra a importância da repressão na gestão política e social de Hafez al-Assad. Pode desenvolver este aspeto? Que impacto teve uma política tão repressiva no pluralismo político?

Há o desenvolvimento maciço dos serviços de segurança e de tudo o que os rodeia, nomeadamente os informadores, que desempenham um papel central. Depois, as redes do regime, a que chamo rede de poder, que desempenharam um papel importante na repressão e no controlo social. Todas as associações profissionais foram dissolvidas em 1979 e depois recriadas pelos fiéis ao regime. Do mesmo modo, durante toda a década de 1970, as organizações sindicais foram objeto de uma forte purga que permitiu excluir os sindicalistas mais críticos. Rapidamente, foi fácil encontrar dirigentes sindicais que atuavam como braço armado do Estado e do partido no poder, já não defendendo os interesses da classe operária e tendo apenas um imperativo em mente: o aumento perpétuo da produção. Quanto ao nível político oficial, continua a ser a Frente Nacional Progressista (FNP), que reúne os partidos fiéis ao regime. No entanto, estes agrupamentos políticos não passam de meros invólucros vazios. No fim de contas, o único partido verdadeiramente autorizado era o Ba'th. Até 2000, foi um instrumento de controlo social e de mobilização do regime. Neste contexto, não é exagerado falar do fim do pluralismo, nomeadamente do pluralismo político.

 

Embora o Estado se tenha mostrado "extremamente brutal na erradicação de qualquer voz dissidente", nas palavras do historiador Matthieu Rey, a Síria não é necessariamente um país estável com uma ordem restaurada. A vitalidade dos Irmãos Muçulmanos sírios é disso testemunho. O final dos anos 70 e o início dos anos 80 foram marcados por um confronto entre a Irmandade e o regime, simbolizado pelo massacre de Hamah. O que caracteriza a Irmandade Muçulmana na Síria? Como é que este episódio trágico de Hamah aconteceu?

Embora denunciando a repressão contra os membros da Irmandade Muçulmana, é importante notar que a Irmandade nunca teve um programa democrático e sempre aspirou a um Estado islâmico autoritário com uma orientação económica liberal. A Irmandade Muçulmana síria tem também um discurso sectário, que veicula o ódio contra os alauítas. É evidente que beneficiarão de um apoio significativo, nomeadamente das antigas elites marginalizadas pelo Ba'th, incluindo os grandes proprietários agrícolas de Hama e Alepo.

Entrevista

A queda de Assad e o futuro da Síria

por

Israel Dutra e Joseph Daher

10 de dezembro 2024

A dicotomia entre os Irmãos Muçulmanos e o regime sírio conduziu rapidamente a um confronto confessional que, por sua vez, se transformou numa guerra militar, de milícias. Esta mesma viragem é simbolizada pelo assassinato dos cadetes alauítas da escola de Alepo, em 1979. [Foi reivindicado pela Vanguarda Combatente, um grupo jihadista composto por militantes dos Irmãos Muçulmanos]. O regime assumiu este confronto, utilizando um discurso religioso islâmico em total contradição com a imagem laica que pretendia representar.

Simultaneamente, a repressão intensificou-se contra os Irmãos Muçulmanos mas também contra civis acusados de estarem ligados a este movimento, com massacres cometidos no Norte, mas também nos subúrbios e no interior de Aleppo. Esta situação conduziu à catástrofe de Hamah, em 1982, quando as forças do regime responderam a uma insurreição geral contra as forças de segurança do regime, levada a cabo por combatentes da vanguarda e da Irmandade Muçulmana. Só que a reação foi maciça e sem precedentes: mais de 10.000 pessoas morreram e um terço da cidade foi destruído. Este acontecimento levará ao fim de toda a oposição, pelo que a Síria foi muitas vezes definida como um reino do silêncio.

 

Hafez al-Assad morreu em 2000. Pouco tempo antes, orquestrou a sua sucessão e fez com que Bashar al-Assad fosse adotado pelas potências europeias, incluindo a França. Para alguns, este facto marcou o início de uma era de abertura. Os comentadores destacaram o lado "ocidental" de Bashar, que foi enviado para Inglaterra durante dois anos, onde conheceu a sua mulher Asma, que trabalhava no banco de investimento J.P. Morgan. Os analistas mencionam o seu discurso de tomada de posse, em 17 de julho de 2000, no qual Bashar al-Assad se apresentou como um "reformador". Mas qual é a realidade? O sistema instaurado por Bashar é diferente do que foi construído pelo seu pai?

Bashar al-Assad foi muito rapidamente percecionado, erradamente, como moderno e reformista, bem como internacionalmente aberto. Mas o mais importante são as reconfigurações que ocorreram durante o seu mandato e que permitem identificar as mudanças no regime sírio.

A sua primeira tarefa foi completar a renovação da velha guarda, simbolizada pela expulsão de Khaddam, próximo de Hafez al-Assad. A pouco e pouco, construiu uma nova guarda próxima de si, de modo a reforçar a patrimonialização do regime. Introduziu os seus fiéis no exército e nas forças de segurança e integrou tecnocratas reformistas no governo, com pouco peso político. O mais importante a reter é que todo o poder estará concentrado nas mãos de três figuras: Bashar al-Assad, a nível político; o seu irmão mais novo, Maher al-Assad, a nível militar, uma vez que dirige a 4ª divisão blindada, a mais moderna e mais bem equipada, ao mesmo tempo que opera nos círculos empresariais através de um homem de fachada, Mohamed Hamcho; e Rami Maklouf, a nível económico e financeiro, que é o banqueiro da família e o homem mais rico da Síria.

Bashar al-Assad começou então a implementar políticas neoliberais, liberalizando simultaneamente o comércio. Por exemplo, a responsabilidade pelos serviços sociais destinados a reduzir as desigualdades foi cada vez mais confiada a instituições de caridade privadas e, por conseguinte, às camadas burguesas e religiosas conservadoras da sociedade síria. Estas políticas acabam por beneficiar uma minoria, como os burgueses, a classe média alta ou os investidores estrangeiros da Turquia ou do Golfo. Entretanto, os sírios comuns não tiraram grande proveito destas novas políticas: em 2000, 14% das pessoas viviam abaixo do limiar da pobreza; em 2010, esse valor era superior a 30%.

O regime trabalha igualmente para enfraquecer as estruturas das organizações corporativas, como os sindicatos de trabalhadores e camponeses, e mesmo o Ba'th, considerando-as como obstáculos à reforma económica neoliberal. Estão a surgir novas redes de poder, baseadas em homens de negócios ligados ao regime, em notáveis tribais, confessionais e religiosos, e também nos serviços de segurança, que, no entanto, continuam a ser mal pagos, corruptos e laxistas. Em resultado desta reconfiguração, os laços entre o regime e os cidadãos estão a enfraquecer, sobretudo a nível local – bairros e aldeias.

A subida ao poder de Bashar al-Assad em 2000 reforçou consideravelmente o carácter patrimonial do Estado, com o peso crescente do capitalismo de compadrio. As políticas neoliberais extensivas do regime conduziram a uma mudança da base social do regime, que passou dos camponeses, funcionários públicos e sectores da burguesia para uma coligação de apoio ao regime com uma rede de capitalistas ligados ao governo (encabeçada pela família da mãe de Assad), com a burguesia e as classes médias altas a apoiarem o regime.

Os círculos de poder na Síria antes de 2011
Os círculos de poder na Síria antes de 2011. Por: Clément Plaisant/Le Vent Se Lève

 

A política externa é também uma alavanca para os Assad. Desde 1970, Damasco tem proposto vários objetivos, como a libertação dos territórios ocupados por Israel em detrimento da Palestina e a recuperação dos montes Golã ocupados. É claro que, quando Bashar al-Assad chegou ao poder, o contexto tinha mudado consideravelmente, como demonstra a arrogância da super-potência americana, que considerou Damasco um Estado pária. No entanto, as questões permanecem, como a questão libanesa. Além disso, o regime mantém uma "tradição de manipulação de redes violentas, de raptos e de assassinatos políticos", para citar os investigadores Adam Bazcko, Gilles Dorronsoro e Arthur Quesnay. Em suma, quais são os grandes desafios da política externa da Síria? Apesar do uso constante desta capacidade de incómodo, como explicar o apego do Ocidente à renovação dos laços com Damasco?

É evidente que, com a subida ao poder de Hafez al-Assad, assistimos a uma instrumentalização das questões internacionais. Esta instrumentalização é-lhe particularmente útil para reforçar a sua autoridade. No entanto, esta posição nunca será ideológica, no sentido de uma Grande Síria. O que é certo é que, com Hafez al-Assad, a Síria fará parte de uma luta pelo Médio Oriente, nas palavras de Patrick Seale.

Para o fazer, o regime basear-se-á na criação de redes e instrumentos para pressionar os actores regionais e internacionais e levá-los a negociar. O Líbano é um dos teatros onde esta estratégia está a ser posta em prática. Aqui, a Síria teme a instauração de uma democracia social e laica, resistente e pró-palestiniana. Uma tal evolução à sua esquerda, potencialmente um vetor de instabilidade, teria sido inconcebível para o regime. Finalmente, o exército sírio interveio em 1976, com a aprovação americana e israelita. É claro que Telavive mudaria mais tarde a sua posição, intervindo várias vezes no Líbano nos anos seguintes e chegando mesmo a ocupar o país. Em todo o caso, no contexto libanês, Damasco utilizou como instrumentos grupos fundamentalistas como o Hezbollah. O processo é semelhante com a questão da Palestina, que deveria permitir-lhe atingir os seus objectivos, daí o seu apoio a grupos como Abu Nidal e o Hamas. Mas a libertação da Palestina não é um objetivo de Damasco, longe disso.

Esta capacidade de causar danos será obviamente utilizada também contra Israel e os Estados Unidos. No que diz respeito aos Golã ocupados.[nota da redação: Golã é um planalto no sudoeste da Síria, ocupado por Israel desde a Guerra dos Seis Dias (1967)], a principal preocupação do regime é encontrar um modus vivendi com Israel. É significativo que, depois de 1973, a Síria não tenha tido qualquer conflito armado direto com Telavive sobre os Montes Golã. Quanto a Washington, é de notar que as relações nunca foram estáveis, apesar de, no início do seu reinado, Hafez al-Assad ter começado a estreitar os laços com os Estados Unidos, que saudaram, nomeadamente, a intervenção da Síria no Líbano, em 1976, contra as forças palestinianas e de esquerda libanesas. Damasco apoiou igualmente a intervenção internacional contra o Iraque em 1991, na qual os Estados Unidos desempenharam um papel preponderante. Após a guerra do Iraque de 2003, Bashar al-Assad teve uma vida difícil com os Estados Unidos, sendo a Síria o alvo dos neoconservadores. Para ganhar vantagem nas negociações com os americanos, o regime sírio utilizou redes jihadistas no Iraque, alimentando a contra-insurreição no Iraque durante anos.

Análise

Para onde vai a Síria?

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No entanto, este comportamento não impede que alguns Estados ocidentais mantenham a cooperação com a Síria. Estão conscientes da centralidade da Síria em certas questões regionais. Sarkozy pôs fim à rutura iniciada por Chirac após o assassinato de Hariri, em 2005, e convidou Assad a vir a Paris para a cimeira da União para o Mediterrâneo. Paris tornou-se então o promotor de um relançamento das relações franco-sírias, mais uma vez para aumentar a sua influência na questão libanesa e tentar obter contratos económicos na Síria. Por fim, nas vésperas da revolta, foram os Estados Unidos que renovaram os seus laços com Bashar al-Assad: no final de 2010, Barack Obama nomeou Robert Ford embaixador na Síria, um lugar que estava vago desde 2005. Mais uma vez, com o objetivo de desempenhar um papel nas questões iranianas e libanesas.

 

Passemos agora à revolução síria. Pintou o quadro de uma Síria autoritária, muitas vezes injusta e altamente desigual, onde as políticas neoliberais desempenharam um papel importante ao longo da década de 2000. Foi para pôr em causa este sistema, em que uma clique monopoliza os recursos, que os sírios se manifestaram em massa em março de 2011?

Penso que há várias razões para isso, que variam consoante os estratos, os atores políticos e os indivíduos envolvidos. Mas há dois elementos que me parecem essenciais: por um lado, a ausência de democracia, ou seja, de poder participar nas decisões do país; por outro lado, os factores socioeconómicos, como o aumento da pobreza e do desemprego, bem como a degradação contínua dos serviços públicos, como as escolas e os hospitais, em resultado de uma privatização desenfreada e da falta de investimento do Estado.

A economia política da Síria criou assim uma situação pré-revolucionária. A ausência de democracia e o empobrecimento crescente das massas, num clima de corrupção e de desigualdade social acentuada, preparavam o terreno para a insurreição popular, que só precisava de uma faísca. Foi o que aconteceu com as revoltas populares na Tunísia e no Egito. Estas inspiraram as classes trabalhadoras na Síria e noutros locais. Na Síria, vastas camadas da população saíram à rua com as mesmas reivindicações que as de outras revoltas: liberdade, dignidade, democracia, justiça social e igualdade.

 

Alguns setores da comunicação social sempre viram a revolta como obra dos árabes sunitas contra um governo alauíta. Embora os sunitas estejam em maioria na Síria, sabemos que muitas minorias participaram na revolta. Além disso, como demonstraram os investigadores Adam Bazcko, Gilles Dorronsoro e Arthur Quesnay, a lógica comunitária não estava presente desde o início. Pode voltar a este fator comunitário na revolta de março de 2011?

Durante os dois primeiros anos da revolta, as palavras de ordem dominantes eram a favor da unidade e da liberdade do povo sírio e contra o sectarismo. Grupos relativamente pequenos com um discurso sectário estavam presentes no início da revolta e desenvolveram-se principalmente em resultado da repressão cada vez mais sangrenta do regime, da militarização, do desenvolvimento de forças islâmicas fundamentalistas e das intervenções estrangeiras.

Os espaços, símbolos e vocabulário religiosos também desempenharam um papel em alguns sectores do movimento de protesto. Nas manifestações, os slogans políticos que exigiam liberdade, justiça e o fim do regime de Assad foram por vezes combinados com cânticos de Allahu akbar (Deus é grande) e La ilah illa Allah (Não há Deus senão Allah). Este facto não impediu as organizações locais de estarem particularmente atentas à questão do confessionalismo e de transmitirem uma mensagem inclusiva a todos os sírios. Perante as tentativas do regime de dividir o movimento de protesto em linhas sectárias e étnicas, a grande maioria dos activistas no terreno reagiu com o lançamento de slogans e cânticos que promoviam a unidade do povo sírio e com a organização de campanhas com esta orientação.

 

A revolução síria militarizou-se rapidamente. Neste domínio, o regime tem uma grande responsabilidade. Pode rever a "política do pior" que o regime sírio pôs em prática, nas palavras de Charles Thépaut, que consiste em explorar as minorias, radicalizar a oposição e militarizar a repressão?

É evidente que o regime tem a maior responsabilidade. Foi o regime que primeiro destruiu a revolução síria e as suas aspirações democráticas e sociais. No início da guerra, ordenou a libertação de figuras jihadistas e outros membros de organizações salafistas através de amnistias. O objetivo era radicalizar a oposição. Seguindo esta lógica de sectarização da revolta, utilizou a repressão de forma estratégica, com uma distribuição seletiva. Em primeiro lugar, visa os bairros operários sunitas que participam na revolta. Quando as manifestações têm lugar em zonas mistas sunitas/cristãs/arabitas, como Latakia ou as zonas rurais em torno de Homs ou Hama, a violência militar será dirigida principalmente contra os bairros operários sunitas que participam na revolução. Desta forma, o regime pretende inflamar as tensões entre as comunidades.

Carlos Carujo
Carlos Carujo

O silêncio

10 de dezembro 2024

A população curda não foi inicialmente reprimida desta forma durante os primeiros meses. Numa tentativa de cooptar estas forças políticas para chegar a um acordo, o regime tornou-se mais complacente. A mesma atitude aplica-se às minorias. Por exemplo, o Estado não reprimirá diretamente as populações drusas e cristãs, recorrendo sobretudo a bandidos e a redes locais para controlar essas populações.

Neste contexto de repressão feroz, formaram-se grupos armados que deram origem ao Exército Sírio Livre (ESL). Neste último, não há, como se poderia pensar, apenas oficiais desertores, mas sim civis. Estes grupos têm raízes locais, o que significa que se empenham com base em redes de militância, de amizade ou familiares. Sem uma ideologia específica, o seu objetivo era defender um bairro, uma aldeia ou uma região concreta e permitir a continuação das manifestações.

Houve, portanto, uma militarização da revolução, encorajada e reforçada pela intervenção de países estrangeiros. Nesse preciso momento, as organizações fundamentalistas islâmicas vão passar a desempenhar um papel de importância crescente, graças à sua experiência, à sua disciplina e ao financiamento estrangeiro. Mas durante dois anos, de março de 2011 ao início de 2013, assistimos a manifestações populares e a campanhas civis, a par da luta armada. A militarização tomou conta da revolta depois de 2013.

 

Apesar da militarização da revolta, há também a criação de instituições civis alternativas por parte da oposição, que contam uma história diferente da revolução síria. Pode falar-nos mais sobre isso?

Os conselhos de coordenação local foram criados para coordenar as manifestações, com a ideia de que era essencial transmitir um certo tipo de mensagem todas as semanas, uma mensagem que fosse ouvida por todos e, acima de tudo, democrática. A sua tarefa consistia depois em tomar conta dos territórios libertados. Os conselhos locais foram criados no final de 2011. Um anarquista sírio, Omar Aziz, falou deles pela primeira vez, afirmando que as manifestações não eram suficientes: era necessário construir órgãos que permitissem às pessoas organizarem-se. Estas instituições vão assumir uma certa importância, embora o seu funcionamento não deva ser romantizado. Para além da falta de representação das minorias religiosas, a participação das mulheres era baixa e os conselhos eram muitas vezes escolhidos em vez de eleitos, dependendo da influência dos chefes militares locais, do clã e das estruturas familiares. Consequentemente, a maioria dos conselhos locais - mais de 55% - não foram criados através de eleições, mas sim por mecanismos de auto-seleção das elites. Apesar destas deficiências, estes conselhos puderam gerir os assuntos locais e, em particular, encarregar-se de serviços como escolas, hospitais, tribunais, sistemas de água e eletricidade. Em muitos aspectos, estas foram experiências fundadoras extremamente importantes. Como se sabe, nas revoluções, há sempre a instauração de um duplo poder, ou seja, de autoridades locais e nacionais.

Capa do livro: Síria depois dos levantamentos: A economia política da resiliência do Estado
Capa do livro: Síria depois dos levantamentos: A economia política da resiliência do Estado

 

Houve quem afirmasse que, desde o início, a oposição era constituída por islamistas, salafistas e jihadistas. No entanto, uma figura como Michel Duclos, antigo embaixador francês na Síria, fala desses "oficiais desertores imbuídos do ethos laico oficial" que nunca se quis apoiar. Não havia uma verdadeira corrente laica na oposição mas que não resistiu à jihadização da oposição? Para ser mais preciso, não foi a sectarização e a internacionalização que condenaram as oposições, nomeadamente as mais moderadas?

O papel dos actores estrangeiros é central. Antes de mais, os aliados do regime: o Irão, o Hezbollah e as milícias xiitas no Iraque. Eles ajudarão a fomentar o sectarismo. Em segundo lugar, na oposição: a Turquia e as monarquias do Golfo, do Qatar à Arábia Saudita. Estas últimas promoveram uma narrativa confessional da revolta, insistindo num discurso de divisão entre sunitas e xiitas. Para citar apenas um exemplo, o canal de televisão al-Arabiya deu a palavra a um salafista sírio, Adnan al-Arour, conhecido pelos seus apelos ao massacre da comunidade alauíta. Este apoio não se limitou a discursos e os governos no poder financiaram e armaram muitos grupos considerados salafistas ou jihadistas. A Arábia Saudita apoiará o Exército do Islão de Zahran Allouche, um grupo salafista/jihadista com uma visão nacional semelhante à dos talibãs, enquanto o Qatar apoiou vários grupos fundamentalistas islâmicos, desde os salafistas do Ahrar Sham até ao Jabhat al-Nostra, um grupo jihadista, antiga ramificação síria da Al-Qaeda, liderado por Abu Mohammed al-Joulani.

No entanto, este apoio militar total não estava presente nos primeiros meses da crise. A Turquia e as monarquias do Golfo mantinham boas relações com Damasco. É por isso que Ancara, Doha e Riade tentaram estabelecer contactos com o regime para facilitar uma solução pacífica e evitar uma resposta militar repressiva.

No entanto, as posições da Turquia e das monarquias do Golfo mudaram, uma vez que se tornou cada vez mais difícil chegar a um compromisso e as capitais do Golfo consideraram impossível manter Teerão afastado de Damasco. A partir desse momento, passaram a exigir a saída de Assad e a intervir indiretamente. Afastar Teerão da Síria seria, então, um meio de reforçar a influência regional no Levante e de restabelecer um equilíbrio de forças regional mais favorável, que perderam, sem dúvida, após a ocupação americana do Iraque, em 2003.

Ao mesmo tempo, a coligação no exílio está a ser instrumentalizada por esses mesmos países do Golfo e pela Turquia, enquanto o papel dos Irmãos Muçulmanos continua a crescer no seio desses organismos. Quanto às forças democráticas no seio dos órgãos da oposição apoiados pelas monarquias do Golfo, pela Turquia e pelos Estados ocidentais, aliaram-se de forma crítica aos grupos religiosos fundamentalistas. Muito rapidamente, a internacionalização e a sectarização fizeram com que a revolução perdesse qualquer carácter democrático.

 

O Ocidente também falhou, seguindo uma estratégia difícil de compreender. Apoiaram-se essencialmente na Turquia e na Arábia Saudita para apoiar a oposição, em detrimento da sua fação mais secularizada. Em 2013, os Estados Unidos não intervieram, apesar da pressão dos neoconservadores sobre Barack Obama. No final, parece que os Estados Unidos e os seus aliados estavam menos preocupados em derrubar o regime do que em lutar contra o terrorismo. Como vê a atitude e as ações do Ocidente?

Nas primeiras semanas da revolta, a Secretária de Estado Hillary Clinton descreveu Bashar al-Assad como diferente do seu pai. Ao mesmo tempo, declarou que os Estados Unidos não podiam atuar na Síria da mesma forma que na Líbia, argumentando que cada situação era única. A estratégia americana era clara desde o início: não repetir o cenário líbio. Washington nunca quis uma mudança de regime, mas sim uma transição, que poderia ter sido realizada por oficiais da seita alauíta, capazes de derrubar Assad. Um tal desejo nunca se concretizará: o carácter patrimonial do regime favoreceu a sua coesão, que se encontrava soldada atrás do exército e dos serviços de segurança. Este não foi o caso da Tunísia ou do Egito.

É certo que, à medida que a revolta se transformou numa guerra civil e depois numa guerra internacional, os Estados Unidos decidiram apoiar alguns grupos da oposição, mas numa base quase anedótica. Este baixo nível de apoio estava de acordo com a linha promovida por Washington, que não era a de derrubar Assad. As reconfigurações ocorreram com a expansão territorial do Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EIIL), com Washington a participar numa vasta coligação internacional para travar a sua ascensão. No mesmo contexto, os Estados Unidos vão apoiar as Forças Democráticas Sírias (FDS), um grupo cuidadosamente escolhido pelo seu envolvimento não contra o regime mas contra o Daech.

A França teria, sem dúvida, gostado de ir mais longe, mas sem o acordo dos Estados Unidos, essa posição era insustentável na prática. O ataque com armas químicas de 2013 fala por si: Obama devia atacar o regime por as ter utilizado, mas recuou no último momento. A França seguiu os Estados Unidos. No fim de contas, essa atitude foi uma luz verde para a Rússia, que interveio dois anos mais tarde. Uma intervenção que manteve Assad no poder.

Entretanto, há que salientar que os países ocidentais têm actuado sistematicamente em duas frentes muito específicas. A primeira consiste em prestar assistência a todos os sírios através da ajuda humanitária. O problema é que o regime está a manipular esta ajuda. É sabido que as ONG internacionais e as agências da ONU que operam em Damasco devem apoiar-se em parceiros locais e escolher os seus patrocinadores a partir de uma lista elaborada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros sírio, como o Syria Trust Fund, fundado pela primeira-dama, Asma al-Assad. A segunda são as "medidas restritivas", que não têm como objetivo a mudança de regime, mas sim a "mudança de comportamento", como dizem. As sanções americanas do tipo "César" têm consequências económicas nefastas nos mais diversos sectores, enfraquecendo os sírios. No entanto, essas medidas não são a causa dos problemas socioeconómicos do país, apesar de os terem agravado consideravelmente. No entanto, convém continuar a visar as instituições do regime e aqueles que lhe estão ligados, que têm as mãos sujas de sangue e se aproveitam dos seus abusos para acumular riqueza. Ao tomar essas medidas, a normalização com o regime torna-se mais complicada. [Nota da redação: As medidas restritivas da UE visarão 287 pessoas e 70 entidades no final de 2021].

 

Ao invés, a Rússia e o Irão vão apoiar o regime sírio, que ameaçou por duas vezes entrar em colapso: em 2012 e em 2015. Que interesses tinham o Irão e a Rússia em intervir na Síria? Qual é a sua avaliação dos compromissos russos e iranianos?

Em ambos os casos, as razões são geopolíticas. Para o Irão, a Síria é um país-chave, o canal para os seus fornecimentos de armas militares ao Hezbollah. O Hezbollah é um ator central para Teerão, com uma capacidade considerável de causar danos a nível regional, o que lhe permite desempenhar um papel de liderança no Líbano. Perder Damasco significa perder um ator central, a chave da influência regional do Irão. O apoio do Irão à Síria deve, portanto, ser visto no contexto da sua vontade de aumentar a sua influência, seja no Iraque, no Iémen ou nos territórios palestinianos ocupados.

A Rússia, por seu lado, é um aliado de longa data da Síria, nomeadamente a nível militar, com vendas recorrentes de armas, mas também a nível económico, com investimentos empresariais nas vésperas da revolta. Para Moscovo, o derrube de Assad iria contra os seus interesses regionais e aumentaria a influência de Washington, bem como dos movimentos fundamentalistas islâmicos. É certo que a intervenção militar ocidental para derrubar o ditador líbio Mu'ammar Kadhafi irritou muito Vladimir Putin e esse cenário estava fora de questão. Tal como no caso do Irão, há também o fator logístico, com o porto de Tartous a dar à Rússia acesso ao Mar Mediterrâneo. Desde 2008, foram efetuadas obras para acolher navios de maiores dimensões. Estas renovações destinavam-se a ancorar uma presença naval russa permanente no Mediterrâneo.

A ajuda da Rússia, do Irão e do Hezbollah ao regime tem sido essencial para a sua sobrevivência a todos os níveis: político, económico e militar. Estes atores investiram maciçamente as suas forças para proteger os seus próprios interesses (principalmente geopolíticos). A ajuda prestada por estes atores permitiu igualmente ao regime beneficiar de uma transferência de know-how autoritário, o que se traduziu em adaptações significativas na organização do aparelho coercivo do regime de Assad, melhorando a sua capacidade de fazer face a uma insurreição popular armada. Ao mesmo tempo, o papel económico e o investimento de Teerão e Moscovo na Síria continuarão a ser limitados, embora a dependência de Damasco em relação à Rússia e ao Irão se mantenha em certos aspectos. Os grandes desafios económicos que a Rússia e o Irão enfrentam, bem como a fraqueza dos sectores privados de ambos os países, irão muito provavelmente persistir e impedi-los de desempenhar um papel mais importante e decisivo na economia síria e, mais ainda, em qualquer fase eventual de reconstrução.

 

A internacionalização da crise síria é também marcada pela ação de dois movimentos transnacionais, o EIIL e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Como surgiram e quais eram os seus projectos para a Síria? Conseguiram atingir os seus objetivos?

O EIIL, tal como a al-Qaeda no passado, tem as suas raízes na ausência de democracia, de justiça social e de desenvolvimento económico, mas também nas intervenções dos Estados regionais e internacionais. No entanto, é evidente que existem dinâmicas internas no seio da matriz jihadista. O EIIL nasceu da dissensão entre al-Zarqawi, por um lado, e Osama bin Laden e Zawahir, por outro. Uma das dissensões consistia no facto de al-Zarqawi querer atacar os xiitas para recrutar sunitas, enquanto Zawahir queria concentrar-se na ocupação americana do Iraque. Alguns anos mais tarde, com a eclosão da guerra civil na Síria, o EIIL teve inicialmente algum sucesso e recuperou mesmo uma grande maioria dos combatentes estrangeiros da al Nostra. Ao mesmo tempo, como sabemos, criou também instituições para administrar burocraticamente o Califado.

A expansão territorial do EIIL fez certamente o jogo do regime de Assad. Transformou a narrativa deste conflito, que passou a ser lido apenas sob o prisma da ameaça terrorista. Depois de um período de adiamento, as grandes potências internacionais, lideradas pelos Estados Unidos, decidiram criar uma coligação que provocasse um revés significativo para o EIIL.

No entanto, as intervenções armadas não são sempre uma panaceia. A intervenção americana em 2003 reacendeu o sectarismo, tal como a intervenção iraniana alguns anos mais tarde. A coligação internacional na Síria destruiu cidades inteiras, como Raqqa. Se quisermos levar o jihadismo a sério, temos de atacar as suas raízes políticas, sociais e económicas.

Até ao final da década de 1990, o PKK manteve boas relações com o regime sírio, apesar da orientação nacionalista árabe deste último, que se traduziu em décadas de opressão estatal, através de políticas de discriminação e de repressão cultural contra a população curda da Síria. No entanto, as relações entre o regime e o PKK terminaram em 1998, quando a Síria e a Turquia começaram a estreitar os seus laços. Hafez al-Assad expulsou Abdullah Öcalan, que foi posteriormente detido pelas autoridades turcas.

Só alguns anos mais tarde é que o PKK se restabeleceu na Síria, através do Partido da União Democrática (PYD), fundado em 2003. No entanto, na véspera da revolta, o PYD não era o primeiro partido na Síria. Contudo, à medida que o regime se retirava de certos territórios, foi alcançado um acordo tácito entre as duas partes. Foi nessa altura que o PYD se estabeleceu nas três bolsas de população curda na fronteira com a Turquia – Afrin, Ain al-Arab e La Jazira. Isto não significa que o PYD seja um aliado do regime, longe disso. A autonomia estabelecida por este partido no Nordeste continua a ser ameaçada pelo regime, que também rejeita qualquer ideia de federalismo. A posição da oposição é semelhante. Chauvinistas, o Conselho Nacional Sírio (CNS) e a Coligação apoiaram as intervenções turcas em Afrin, que conduziram à ocupação e a grandes deslocações da população curda, e no nordeste da Síria.

No entanto, temos de ter o cuidado de não romantizar o PKK, como alguns na esquerda fazem. É verdade que o PYD fez muito para promover a participação das mulheres e tem uma visão secularista da sociedade. [Nota da redação: promoveu a paridade na administração]. No entanto, continua a ter caraterísticas autoritárias e muito hierárquicas: detém o poder de decisão global e os conselhos populares estão geralmente sujeitos à sua autoridade como último recurso; não hesita em visar a oposição curda alternativa, como o demonstram a repressão e a prisão de ativistas e opositores políticos; e tem sido criticado por certas formas de discriminação, em alguns casos contra certas populações árabes (mesmo que não seja generalizada). A nível socioeconómico, não houve muitas mudanças, e uma minoria de homens de negócios próximos do PKK fez fortuna graças à guerra. Isto não significa que devamos pôr de lado o direito das populações oprimidas à autodeterminação, mas devemos ter uma atitude crítica e apoiar os partidos que as lideram, como o PYD.

 

Atualmente, o regime reconquistou dois terços do seu território. No entanto, não é totalmente soberano, como o demonstra a presença de numerosos beligerantes no seu território: as FDS, o Hayet Tahrir al-Sham, anteriormente Jabhat al-Nostra, o Exército Nacional Sírio (SNA) e o EIIL. Por conseguinte, é atualmente impossível retomar o terço restante do território: o noroeste e o leste do Eufrates. Este mesmo regime é, portanto, fraco, desprovido de qualquer hegemonia, mas continua a utilizar as mesmas receitas: repressão total contra uma grande parte dos sírios e uma predação económica sem precedentes. Bashar al-Assad tem, de facto, alguma margem de manobra? E será que o regime que ajudou a construir ao longo dos anos 2000 foi reconfigurado na sequência desta guerra, tanto a nível político como económico?

A guerra fez emergir uma versão ainda mais brutal, sectária, patrimonial e militarizada do regime de Assad. A revolta que se transformou em guerra obrigou Damasco a reconfigurar a sua base popular e as suas relações internacionais, a ajustar os seus modos de governação económica e a reorganizar o seu aparelho militar e de segurança.

A economia política de Damasco, baseada numa grande parte do sector do comércio e dos serviços e acompanhada da gestão de recursos, incluindo recursos não naturais, e da corrupção de tipo rentista, foi também reforçada durante a guerra. Esta orientação económica reflecte a influência política e económica significativa das redes de empresas próximas dos círculos internos do regime, que operam principalmente nos sectores do comércio, do imobiliário e dos serviços e, evidentemente, no contrabando e no comércio ilegal (como as várias operações de tráfico de droga).

Consequentemente, a economia síria continuará a ser quase exclusivamente uma economia de consumo, com um nível de produção insuficiente para satisfazer as necessidades locais, nomeadamente devido ao abandono contínuo dos sectores produtivos da economia (agricultura e indústria transformadora). Estes sectores também não são geralmente alvo de investimentos estrangeiros na Síria e Damasco não apresentou qualquer plano sério para os desenvolver. Esta situação terá um efeito negativo na balança de pagamentos e, por conseguinte, a libra síria continuará a ser objeto de pressão. Além disso, é provável que as perspetivas de investimento estrangeiro significativo na Síria continuem a ser reduzidas se a falta de estabilidade económica e política do país se mantiver. A dependência da ajuda externa e das remessas de fundos continuará a ser uma caraterística, tal como os protestos locais e o terreno fértil para os movimentos extremistas. Além disso, a economia será também afetada pelo agravamento dos problemas ambientais e das alterações climáticas resultantes das políticas estatais e dos efeitos da guerra.

Mapa da situação militar na Síria em julho de 2021
Mapa da situação militar na Síria em julho de 2021. Por Ermanarich/Wikimedia.

 

Por fim, terminemos com os sírios e a sociedade síria. Foram eles que se revoltaram em massa há dez anos. No entanto, milhares deles morreram e outros tiveram de se exilar. Na Turquia ou na Jordânia, vivem em condições muito precárias. Na Síria, 90% deles vivem abaixo do limiar da pobreza, e estão a surgir protestos para contestar estas condições socioeconómicas. Além disso, a polarização confessional nunca foi tão grande. Neste contexto, e tendo em conta o domínio do regime e dos fundamentalistas islâmicos, será que ainda existe um desejo de construir uma resistência a partir de baixo, impulsionada por exigências de justiça e dignidade?

É importante recordar que os processos revolucionários, como o da Síria e, de um modo mais geral, o do Médio Oriente e do Norte de África, constituem um acontecimento que marca uma época. Podem passar por fases de revolução e de derrota, seguidas de novos levantamentos revolucionários. Na Síria, as condições que conduziram às revoltas populares continuam presentes e o regime não só não conseguiu resolvê-las como, pelo contrário, as agravou.

Damasco e outras capitais regionais acreditam que podem manter o seu domínio despótico recorrendo permanentemente à violência maciça contra as suas populações. Esta ideia está condenada ao fracasso, e podemos esperar novas explosões de protestos populares, como as que eclodiram no Sudão, na Argélia, no Iraque e no Líbano em 2019. Acima de tudo, apesar de todo o apoio dos seus aliados estrangeiros, o regime de Assad, apesar de toda a sua resiliência, enfrenta problemas intratáveis. A sua incapacidade de resolver os graves problemas socioeconómicos do país, combinada com a sua repressão implacável, provocou críticas e novos protestos.

No entanto, estas condições não se traduzem automaticamente em oportunidades políticas, especialmente após mais de dez anos de uma guerra destrutiva e assassina. A ausência de uma oposição política síria estruturada, independente, democrática, progressista e inclusiva, capaz de atrair as classes mais pobres, tem dificultado a união de vários sectores da população para desafiar novamente o regime e à escala nacional. Este é o principal desafio. Embora em condições difíceis de repressão, empobrecimento intenso e deslocação social, uma alternativa política progressista deve organizar-se na expressão local destas resistências. E deve inspirar-se em algumas das lições aprendidas em países estrangeiros como o Sudão e a Tunísia. A oposição síria não desenvolveu organizações de classe nem uma organização política progressista de massas. As revoltas populares na Tunísia e no Sudão demonstraram a importância da organização sindical de massas, como a UGTT tunisina e as associações profissionais e comités de resistência sudaneses, para o êxito das lutas de massas coordenadas. Do mesmo modo, as organizações feministas de massas desempenharam um papel particularmente importante na Tunísia e no Sudão na promoção dos direitos das mulheres e na garantia dos direitos democráticos e socioeconómicos, ainda que estes permaneçam frágeis e não tenham sido totalmente consolidados. Os revolucionários sírios não dispunham destas forças organizadas de massas nem do mesmo nível de organizações de massas, o que enfraqueceu o movimento, e elas serão essenciais para construir as lutas futuras. A esquerda deve participar na construção e no desenvolvimento de tais estruturas políticas, capazes de se constituírem como alternativas.

A última fraqueza fundamental que precisa de ser avaliada e ultrapassada é a fraqueza da esquerda regional e das suas redes de colaboração. Neste momento, a esquerda precisa de se unir para ajudar a forjar uma alternativa aos vários atores contra-revolucionários nos seus países, bem como a nível regional e internacional. Uma derrota num país da região é uma derrota para todos e uma vitória num país é uma vitória para os outros.


Entrevista originalmente publicada no Le vent se léve conduzida por Clément Plaisant. Traduzida por Carlos Carujo para o Esquerda.net.