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O pluriemprego quase generalizado dos médicos destrói o SNS

Um chefe de serviço de um hospital público trabalha também para um grande grupo privado e o seu horário no SNS chega a reduzir-se a quatro manhãs por semana. Este é o resultado da política de fim da exclusividade opcional dos médicos, que a proposta governamental de orçamento para 2022 mantém.
Foto de Paulete Matos.

O pluriemprego é a normalidade

No livro “O Negócio da Saúde”, Bruno Maia, médico neurologista e dirigente do Bloco de Esquerda, conta que estudou o horário de um médico especialista, chefe de serviço de um grande hospital público de Lisboa e também médico em várias clínicas da CUF e no hospital da Cruz Vermelha. Esse chefe de serviço tem apenas 4 manhãs para o hospital público. Será possível dirigir um serviço de um hospital estando disponível apenas quatro manhãs por semana para esse serviço, questiona o autor e a resposta negativa não parece levantar dúvidas.

 Horário de um chefe de serviço de um grande hospital público de Lisboa.

Bruno Maia levou a análise mais longe, nas áreas da Grande Lisboa e Grande Porto, e concluiu que, em geral, os chefes de serviço têm ligação a um grande grupo privado, geralmente os grupos CUF, Luz e Lusíadas. “O pluriemprego é a normalidade entre os médicos hospitalares do SNS”, conclui Bruno Maia.

Como se chegou a esta situação?

Desde 2009 que não há contratos em exclusividade

De 2009 até 2021 não há contratos de exclusividade. Em artigo publicado no jornal “Público”, em 21 de outubro de 2021, Isabel do Carmo diz que “a exclusividade permitia um salário suficiente e dava ao profissional a disponibilidade de estar com a cabeça ali, e não em dois lados”.

Os novos especialistas passaram a receber 1.200 a 1.500 euros, pelo que para viver e alimentar a família e os filhos “passaram a ter de ir fazer uns ‘ganchos’ no privado e, portanto, a ter a cabeça nos dois ou três lados”, refere Isabel do Carmo.

Os médicos e médicas tinham, até 2009, a possibilidade de ter um contrato de exclusividade e, dessa forma, tinham o salário majorado até 40%, passando a ter um horário de 42 horas e a dedicação exclusiva obrigatória. O fim desses contratos juntou-se aos cortes do tempo da troika, pelo que os rendimentos perdidos por estes profissionais não foram recuperados após o fim do período da troika. Entre 2009 e 2019, o poder de compra dos médicos reduziu-se 17%. Outros profissionais de saúde têm também perdido poder de compra nesse período: enfermeiros 11%, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica 12%, assistentes administrativos 13%, assistentes operacionais 4% (1).

Quem ganha com o pluriemprego?

É claro que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem perdido com o pluriemprego e com o fim da exclusividade: perdeu médicos formados, perdeu especialistas concentrados no seu trabalho, tem cada vez mais dificuldades com falta de profissionais, vive uma sangria de profissionais qualificados.

Já o setor privado não tem perdido, mas ganho, com o pluriemprego dos médicos do SNS: ganha profissionais formados e especializados e o seu trabalho; ganha serviços, porque muitas consultas, exames e cirurgias passam do público para o privado; ganha doentes, que, muitas vezes vão atrás do seu médico, pelas razões mais diversas.

Bruno Maia, no seu livro já citado, aponta: “Os profissionais têm sido usados como uma ponte entre o SNS e o hospital privado. Através dessa ponte, além de profissionais, doentes e serviços, circulam lucros.”

Na verdade, a luta pela exclusividade opcional é a luta pelo SNS, “trata-se de impedir o esvaziamento de especialistas do SNS”, como sublinha Isabel do Carmo no artigo citado.

Ao propor a exclusividade no Orçamento para 2022 o Bloco aponta o duplo objetivo de fixar mais profissionais, melhorando as carreiras, condições de trabalho e condições remuneratórias e garantir a separação entre público e privado, que a não acontecer desviará cada mais recursos do público para o privado.

O Governo veio a introduzir uma mudança no orçamento para 2022, para responder à proposta do Bloco, mas esvaziando-a de conteúdo. Introduziu um novo conceito de “dedicação plena”, que não é exclusividade, não apresenta incentivos e apenas aumenta o horário (com consequente aumento da remuneração).

Notas:

1 Fonte Rosa, Eugénio, “A situação do SNS e dos seus profissionais, a luta contra o covid-19, a necessidade de resolver os graves problemas que têm causado a destruição do SNS”, https://www.eugeniorosa.com/shared/docs/2020/04/17-2020-situacao-SNS-e-seus-profissionais.pdf?ts=1635286282, citado por Bruno Maia no seu livro “O Negócio da Saúde”.

Termos relacionados Orçamento do Estado 2022, Política
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