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O “jornalismo de guerra” contra a Catalunha

Num debate organizado esta quarta-feira na Casa da Imprensa sobre os media e a "questão catalã", o jornalista Enric Marin considerou que a forma como os media espanholistas abordam a Catalunha só tem paralelo com o "jornalismo de guerra" franquista dos anos 1930, algo que isolou os media espanhóis do resto do mundo. 
Jornal franquista "España", de 20 de janeiro de 1939, anunciando uma ofensiva vitoriosa contra a Catalunha.
Jornal franquista "España", de 20 de janeiro de 1939, anunciando uma ofensiva vitoriosa contra a Catalunha.

A Associação de Estudos, Comunicação e Jornalismo, organizou esta quarta-feira um debate na Casa da Imprensa sobre a forma como os media abordaram a “questão catalã”, com Cesário Borga - correspondente da RTP em Madrid entre 1998 e 2005 - Enric Marin - colunista do El Periódico, jornalista catalão e independentista assumido, e Manuel Campo Vidal - jornalista e presidente da Academia de las Ciencias y las Artes de Televisión de España

Se para Cesário Borga, a leitura política e não judicial do artigo 155.º feita pelo PSOE é a janela de saída para um diálogo “inevitável” entre as partes, já para Enric Marin o problema é estrutural e tem na raíz a reestruturação da direita nacionalista espanhola operada por José María Aznar a partir de 1995, e que recuperou o “jornalismo de guerra” com que o franquismo atacou a autonomia catalã nos anos 1930. 

Cesário Borga começou por dar uma perspetiva histórica do republicanismo espanhol dos anos 1930, nomeadamente a revolta dos mineiros das Astúrias, uma revolta reprimida por forças do exército lideradas por um general na altura ainda desconhecido - Francisco Franco. 

A 6 de outubro de 1934, foi proclamado o Estado da Catalunha, e dia 7 de manhã, o exército tinha tomado conta do poder catalão. Luís Companis é condenado a 30 anos de prisão mas libertado pouco tempo depois, porque, em 1936, era já um dos coordenadores da resistência às forças franquistas, razão pela qual foi fuzilado em 1940. 

O jornalista relembra que, “no meio da agitação, o govenro de Companís tinha conseguido instituir uma reforma agrária a que chamaram a Lei dos Cultivos, para proteger os agricultores catalães”, uma lei que a direita “combateu” e, “em consonância com os partidos da direita espanhola consegue que o Tribunal Constitucional anule esta lei”, razõa pela qual, explica, os independentistas catalães adotaram a canção dos ceifeiros como hino nacional. 

A decisão do Tribunal Constitucional é lida por Companís como “a destruição da autonomia catalã”, razão que o leva a declarar o “Estado Catalão dentro da República Federal de Espanha”, uma República Federal que não existia à altura, o que a tornava uma declaração de independência. 

Sei só que não será fácil mas é necessário fazer alguma coisa. Sempre se falou de duas Espanhas. Uma, conservadora, olha para Espanha como um todo unificado, e outra é aberta à diversifidade cultural preservando a integridade territorial. Um acordo acabará por ser alcançado em Madrid, mas será suficiente para acabar ou pelo menos adormecer a Catalunha e reforçar a integração do País Basco? Veremos”, conclui. 

Sobre a relação de forças atual, Cesário Borga abordou essencialmente a posição do PSOE face à aplicação do artigo 155º, que apoia, mas, o jornalista realça a diferença de leitura de Felipe Gonzáles, que “duvida que Rajoy tenha alguma estratégia para resolver estes problemas, e que os independentistas tentaram romper a unidade de Espanha”, defendendo por isso “a aplicação política e não judicial do artigo 155.º, porque esse artigo, considera, é "pura política, e foi a ausência de política que abriu espaço a uma dinâmica de caráter penal-judicial” e, por isso, a “única declaração de que a Catalunha precisa agora é concórdia e convivência”. 

Para Cesário Borga, esta diferença de entendimento do PSOE, permite “ver nestas frases um tímido nascimento de uma outra linguagem que poderá conduzir a outros caminhos”, defende. 

O jornalismo de guerra de Madrid face à Catalunha 

Enric Marin, colunista do El Periódico, um jornal catalão que, não defendendo uma posição contra ou a favor da independência, é definitivamente “catalanista”, começa por explicar, sendo o próprio um assumido independentista. 

Marin acompanhou a revolução de Abril em 1975 e, de volta à Catalunha em julho, foi preso e torturado até à morte de Franco, a 20 de novembro desse ano, sendo libertado depois na primeira amnistia geral para os presos políticos do franquismo. 

O jornalista entende que a Catalunha suscita várias questões cruzadas: nacionalidade; identidades; globalização; e da forma como os meios de comunicação jogam com a construção de identidades. 

Toda a discussão sobre a Catalunha está dependente de “duas perspetivas distintas”, considerou. Ou seja, “se aceitamos que a Catalunha é uma nação ou não. A origem do conflito é este essencialmente”. 

Para os catalães, explica, a relação com Espanha é estabelecida “entre dois sujeitos”. No entanto, Madrid olha para a Catalunha “como uma parte do seu corpo, como se fosse um braço”, o que, naturalmente provoca diálogos distintos: “uma é entre o cérebro que comanda o braço, a outra são entre dois sujeitos, de igual para igual”. 

Para Enric Marin, “o conceito de independência é muito claro: é o contrário de dependência”.

E realça que, segundo as sondagens, 45% dos catalães se identificam como “independentistas”, mas os que se identificam como “soberanistas”, ou seja, “gente que crê que a Catalunha é uma nação que deve negociar em igualdade de posições com qualquer outra nação”, esta posição é super-maioritária na Catalunha. 

Se esta identidade catalã sempre conviveu e foi aceite por Madrid através do “pacto de 1978”, explica o jornalista, esse pacto terminou por força do crescente “reforço do nacionalismo espanhol”, que Marin identifica pela criação, em 1995, de um think tank liderado por Aznar - o FIES, Fundación Institucional Española - que, até 2005, operou uma reestruturação da direita espanholista, conjugando o neoliberalismo económico com o conservadorismo patriótico. 

Esta organização iria definir aquilo que se tornou a política económica de Aznar, onde “Madrid é o núcleo, o cérebro, o coração, e o motor económico da Península Ibérica”, incluindo Portugal. Esta visão, diz, concretiza-se face ao aeroporto de Madrid, concebido como um hub peninsular, servido por redes de transportes rápidos que colocam todas as cidades a menos de três horas de Madrid. 

“À exceção do Podemos - que é republicano - toda a restante esquerda espanhola está cativa deste nacionalismo espanhol agressivo”, prosseguiu. E conseguiu, essencialmente, que a ideia de Espanha seja algo “que não se pode discutir”. 

Este sistema de pensamento definiu uma hegemonia de análise face à Catalunha a partir de Madrid, explica, de uma agressividade apenas identificável com os jornais espanhóis de 1932, algo a que Marin classifica como “jornalismo de guerra”. 

A primeira função do jornalismo de guerra, diz, é impôr “um sentido às palavras”, criando conceitos específicos. A partir do momento em que se impõem um sentido das palavras, “define-se uma narrativa” cujo objetivo é “desumanizar o outro”, neste caso a Catalunha. 

“Desafio”, “Ilegal”, “Constitucional”, “Golpe de Estado”, são os quatro conceitos principais com que a imprensa espanhola define a Catalunha. “Se os catalães reivindicam o Estatuto de 2010”, (estatuto que define a Catalunha como nação autónoma de Espanha e que o PP rejeitou), então os jornais de Madrid acusam-nos de “desafio”, por exemplo. 

O termo ilegal, amplamente divulgado e aplicado para adjetivar o referendo 1-O, “atira para uma ideia de delito”. Há uma razão para isso. Aznar, explica Marin, incluiu a realização de referendos como delitos no Código Penal de Espanha, algo que foi revertido depois por Zapatero. Ou seja, hoje, a realização de referendos não é “nem ilegal nem um delito”. 

A utilização do termo “constitucionalistas” serve para diabolizar como extremistas aqueles que não concordarem com a Constituição de 1978. Por fim, “golpe de Estado” é utilizado recorrentemente para retirar legitimidade a qualquer movimento pela auto-determinação catalã, e antecipa sempre uma ação de repressão posterior de Madrid face à Catalunha. Por fim, os catalães independentistas são consistentemente retratados como “zombies” incapazes de pensar. 

Para Enric Marin, a radicalização do discurso nacionalista espanhol criou uma situação nova de isolamento dos media madrilenos face ao resto do mundo. “Quando falamos de democracia, eles entendem uma coisa distinta” do resto do mundo. “Quando falamos liberdade, eles entendem algo diferente do resto. A linguagem foi desmembrada”. 

Este fenómeno comunicativo criou “três narrativas: a narrativa maioritária na Catalunha; a narrativa maioritária em Espanha; e a narrativa maioritária no resto do mundo”. Para Enric Marin,  ao longo do processo referendário, os media internacionais “foram-se separando da narrativa hegemónica em Espanha”, criando um crescente isolamento da perspetiva espanholista.

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