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O boicote parte o que falta

Osíris “Partiu telemóveis” nas últimas semanas em Portugal. Que tenha a sensibilidade e a coragem necessárias para “mandar a flecha” certeira ao coração da hipocrisia sionista. Artigo de Rui Ricardo.
Conan Osiris no Festival da Canção 2019, foto de Pedro Pina/Lusa
Conan Osiris no Festival da Canção 2019, foto de Pedro Pina/Lusa

O Festival da Canção voltou a ganhar uma projecção mediática inquestionável depois da vitória de Salvador Sobral em Kiev. Ainda que longe da importância como veículo para a difusão de mensagens políticas mais ou menos descaradas que teve nos anos que precederam e se sucederam à Revolução de Abril, o festival tem reconquistado o seu espaço junto do público que se desiludiu ao longo de anos e anos de pouca ou nenhuma objectividade do ponto de vista artístico e de paupérrima qualidade das composições musicais a concurso.

O ano de 2017 foi determinante para o volte-face na forma como o público português, no geral, e as gerações mais jovens, em particular, encaram o concurso interno que se propõe a levar um representante nacional à histórica competição europeia da música popular. Ainda assim, contam-me os mais velhos que o fervor em torno do certame é completamente diferente do que se sentia noutras épocas. Os intérpretes e os compositores já não têm de disputar o jogo do gato e do rato com a censura do Estado Novo e o país há muito que deixou de parar em frente ao televisor como acontecia nas décadas de 60 e 70 do século passado. São factos que não terei o pedantismo de contestar, mas não posso deixar de notar que o outrora fulgurante e entretanto desvitalizado Festival da Canção readquiriu relevância no panorama da cultura nacional e o seu espaço tem sido reconquistado de modo assinalável no último par de anos.

Se dúvidas do que aqui escrevo existem, atentemos no que se disse e escreveu acerca de um só concorrente da edição deste ano: Conan Osíris no mundo da música, Tiago Miranda nos documentos de identificação.

O visual com que se apresenta nos palcos e fora deles, o calão que usa de um jeito completamente descomplexado, o comportamento quase pueril quando abordado pela comunicação social são traços de uma personalidade que não deixa margem para a existência de outros géneros de sentimento em relação a si: ou amor genuíno ou ódio visceral. Se assim não é, como se explicam as discussões acaloradas, formais ou informais, acerca do agora vencedor do Festival da Canção, da sua aparência e da música que concebe?

Indiferente ao que sobre ele se diz e escreve, que ora o colocam num patamar de equiparação ao trabalho de António Variações, ora desdenham da sua suposta busca tresloucada pelo vanguardismo artístico, Conan Osíris segue o seu percurso sem olhar por cima do ombro por um momento que seja. É Lisboa e é Balcãs, é Península Arábica e é Alentejo, é bairro e é deserto, é fado e é kuduro, é canto cigano e é world music, é eurodance e é hip-hop, é abraço ao que é tradicional e é fuga para as margens. Tudo misturado de forma sublime e harmoniosa, conduzindo a uma explosão de alegria contagiante cujo impacto ganha dimensões avassaladoras a cada nota e a cada batida saídas da cabeça do cantor.

Mas se Osíris é tudo isto em termos estritamente artísticos, o que consegue fazer no campo social, ainda que o faça de uma forma despretensiosa e como efeito secundário do objectivo da sua arte, não é de menor relevância. A sua atitude descomprometida faz tanto, tanto pelo cimentar das liberdades individuais, pela aceitação da diversidade, pelo respeito pela multi-culturalidade que, mesmo sendo mais perspicaz do que o seu discurso faz parecer, não deverá ser da total compreensão de Osíris.

Osíris é a derradeira pedrada no charco do conservadorismo e, à sua maneira, dá muito de si para a tentativa de resgate do cinzentismo em que parte da sociedade portuguesa ainda se encontra. Sim, não nos enganemos: existem franjas sociais do Portugal de hoje que permanecem estacadas no tempo em que as censuras salazarista e marcelista decidiam quais as composições que tinham direito a estar debaixo dos holofotes do Festival.

Porém, tudo o que já atingiu em pouco mais de duas semanas de elevada exposição mediática não será nada comparado com o que pode alcançar dentro em breve. A letra de “Telemóveis” não se propôs a ser revolucionária como o foi, por exemplo, a “Tourada” cantada por Fernando Tordo e escrita por José Carlos Ary dos Santos, mas, assim queira Conan Osíris, a canção vencedora de 2019 pode ganhar uma envergadura política digna da época em que se planeava o derrube da ditadura fascista e se suspirava pelo despontar da democracia nacional.

Se o artista do momento é capaz de brilhar a grande altura em virtude das obras musicais complexas a que se dedica, para conquistar um lugar na História da música nacional terá de fazer algo muito menos exigente do ponto de vista criativo. Bastar-lhe-á juntar três letras e adicionar-lhes um sinal diacrítico. Na posse do vocábulo “não”, tem permissão para engrossar o pelotão de grandes vultos da cultura mundial que se recusa a entrar em Israel e a compactuar com o atropelo aos direitos humanos que aquele Estado leva a cabo há mais de 70 anos, oprimindo e massacrando o povo palestiniano. A operação de cosmética que Israel trouxe a Lisboa em Maio do ano passado, que culminou com a vitória de uma canção de gosto duvidoso em modo #MeToo, faz parte de uma estratégia de sedução à escala mundial tão notória quanto abjecta, integrando também uma cínica “vegan washing”.

Osíris “Partiu telemóveis” nas últimas semanas em Portugal. Que tenha a sensibilidade e a coragem necessárias para “mandar a flecha” certeira ao coração da hipocrisia sionista.

Artigo de Rui Ricardo para esquerda.net

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