NATO

O antifascismo e a queda do liberalismo atlântico

18 de agosto 2024 - 11:51

A máscara liberal da ideologia atlantista caiu finalmente para sempre em resultado da conivência dos seus dirigentes com um Estado israelita dirigido por facções neofascistas. Um Estado que está a cometer na Faixa de Gaza a mais hedionda guerra genocida deliberada levada a cabo por um Estado industrializado desde o genocídio nazi.

por

Gilbert Achcar

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Cimeira da NATO 2024.
Cimeira da NATO 2024. Foto: NATO/Flickr.

O historiador francês François Furet, que foi comunista na sua juventude mas que depois se tornou anticomunista, é o autor de uma célebre explicação da popularidade do comunismo após a Segunda Guerra Mundial, em particular entre os intelectuais, atribuindo-a ao antifascismo realçado pelo importante papel desempenhado pela União Soviética na derrota do nazismo durante a guerra. O estalinismo teria passado assim de um gémeo do nazismo, na sua filiação comum ao totalitarismo, estádio supremo da ditadura, a seu inimigo declarado – uma mudança de imagem que permitiu ao estalinismo atingir o auge da sua influência ideológica na década que se seguiu à derrota completa do eixo fascista. O antifascismo continuou a desempenhar um papel central na ideologia soviética, mas com uma influência cada vez menor devido à relativa marginalização do fascismo nas décadas imediatamente a seguir à Guerra Mundial, até que o sistema soviético entrou em agonia.

Esta interpretação do destino da ideologia soviética é, sem dúvida, correta, pois o papel da União Soviética na derrota do nazismo foi, de facto, o argumento ideológico mais forte do movimento comunista após a Segunda Guerra Mundial, ultrapassando largamente a referência ao legado bolchevique da Revolução Russa. No entanto, o que Furet e outros anticomunistas negligenciaram foi que o liberalismo a que afirmavam pertencer, tal como os estalinistas afirmavam pertencer ao marxismo, também se baseava no antifascismo, com a diferença de que combinava o fascismo com o estalinismo na categoria do totalitarismo. Esta foi e continua a ser a reivindicação central do liberalismo de tipo atlantista, inaugurado pela Carta do Atlântico que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha concluíram em 1941 para cimentar a sua aliança durante a Segunda Guerra Mundial, e que se tornou a base da Aliança Atlântica (NATO) estabelecida contra a União Soviética durante a Guerra Fria.

Esta ideologia atlantista tem, no entanto, fechado os olhos às raízes coloniais imperialistas do fascismo, tal como analisadas pela grande pensadora judia germano-americana Hannah Arendt, pela razão óbvia de que a NATO foi criada enquanto os seus Estados membros ainda governavam impérios coloniais em todo o Sul global. Tanto assim é que o regime colonial fascista português do pós-guerra foi, ele próprio, um dos fundadores da NATO. Quando o mundo entrou na era da descolonização, a ideologia atlantista concentrou-se na oposição ao comunismo soviético sem abandonar a sua oposição ao fascismo, mas limitando este último ao nazismo e ao genocídio dos judeus europeus que perpetrou. Desta forma, a ideologia atlantista pôde reivindicar o monopólio da representação dos valores da liberdade política e da democracia defendidos pelo liberalismo histórico, enquanto espezinhava e continua a espezinhar esses mesmos valores nos países do Sul global.

Chegámos agora a um ponto de viragem histórico em que a pretensão liberal que a NATO usava como uma máscara caiu, no momento em que tinha atingido um novo auge com a oposição da Aliança à invasão russa da Ucrânia e a sua pretensão de representar os valores liberais contra o regime neofascista de Vladimir Putin. Esta última afirmação tem persistido apesar da ascensão do neofascismo nas fileiras da própria NATO e da sua subida ao poder em alguns dos seus Estados membros, incluindo os Estados Unidos sob a presidência de Donald Trump. Os liberais atlantistas têm continuado a utilizar o anti-totalitarismo, incluindo a oposição ao fascismo e ao neo-fascismo, como base da sua própria ideologia, retratando a sua luta como uma versão moderna da luta do liberalismo (imperialista) contra o fascismo na década de 1930, que também teve lugar em vários países do Norte global.

Hoje, a máscara liberal da ideologia atlantista caiu finalmente para sempre, em resultado da solidariedade e conivência demonstradas pelos seus dirigentes com um Estado israelita dirigido por facções neofascistas e neonazis do movimento colonial sionista – um Estado que está a cometer na Faixa de Gaza a mais odiosa guerra genocida deliberada levada a cabo por um Estado industrializado desde o genocídio nazi, bem como contínuos abusos criminosos contra o povo palestiniano na Cisjordânia e nas prisões israelitas, que revelam uma violenta hostilidade racista contra os palestinianos, relegados para o estatuto de seres sub-humanos (Untermenschen), tal como os judeus foram pelos nazis.

À luz desta posição dos atlantistas, a sua pretensão liberal de se oporem à invasão russa da Ucrânia perde toda a credibilidade, tal como a sua pretensão liberal de se oporem ao fascismo e ao genocídio, e de aderirem a outros pilares da ideologia formulada pelos seus antecessores após a Segunda Guerra Mundial e consagrada na Carta das Nações Unidas de 1945, se revelou sem valor. O grande paradoxo desta viragem histórica é que os atlantistas utilizam a preocupação com as vítimas judias do nazismo como pretexto para justificar a sua posição. Retiram da história da luta contra o nazismo uma lição impregnada de lógica colonial racista, preferindo a solidariedade com aqueles que pretendem representar todos os judeus, e que os atlantistas passaram a considerar como fazendo parte do seu mundo “branco”, mesmo quando eles próprios se tornaram criminosos genocidas, à solidariedade com as suas vítimas não “brancas”.

A teoria de Hannah Arendt sobre as origens do totalitarismo foi assim confirmada, pois um anti-totalitarismo que vê apenas a hostilidade antissemita contra os judeus como a raiz do mal, ignorando o legado colonial que não é menos horrível do que os crimes cometidos pelo nazismo, um anti-totalitarismo tão incompleto está condenado ao colapso, viciado pela incapacidade de ultrapassar o complexo de supremacia branca que presidiu aos maiores crimes da era moderna – incluindo o extermínio nazi dos judeus europeus, que os nazis consideravam intrusos não-brancos no seu “espaço vital” (Lebensraum) da Europa branca do Norte.


Publicado originalmente no blogue do autor.