Europa

No Dia da Vitória, o espetro do fascismo está a assombrar a Europa

08 de maio 2025 - 22:14

Há oitenta anos, a Europa festejava a derrota do fascismo após uma luta titânica. No entanto, como salienta o historiador Enzo Traverso, o 80º aniversário do Dia da Vitória acontece numa altura em que a extrema-direita está mais forte do que em qualquer outro momento desde 1945.

por

Enzo Traverso

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Giorgia Meloni e Viktor Órban
Giorgia Meloni e Viktor Órban. Foto Conselho Europeu.

As comemorações são espelhos interessantes para as narrativas hegemónicas do passado, que não correspondem necessariamente à consciência histórica popular. Isto é especialmente verdade no caso de aniversários globais como o 8 de Maio de 1945.

Durante décadas, o Ocidente celebrou o Dia da Vitória na Europa (VE) para mostrar o seu poder e afirmar os seus valores. Nesta perspetiva, o Ocidente não era apenas poderoso, mas também virtuoso. Esta liturgia da democracia liberal decorreu sem problemas e de forma consensual, com todos os participantes a reunirem-se em torno de recordações, símbolos e valores que forjaram a sua aliança.

Em 1985, quarenta anos após o fim do conflito, a República Federal da Alemanha (RFA) juntou-se a estas comemorações. Num célebre discurso no Bundestag, o Presidente da RFA, Richard von Weizsäcker, afirmou solenemente que a Alemanha não devia encarar esta data como um dia de derrota, mas sim como um dia de libertação.

Após o fim da Guerra Fria, o Dia da Vitória significou o triunfo do Ocidente: capitalismo, força militar, instituições sólidas, prosperidade económica e um modo de vida agradável. Alguns académicos falaram de uma espécie de fim hegeliano da história, enquanto outros evocaram um final feliz hollywoodesco.

Marcos não estabelecidos

Hoje, este ritual confortável parece anacrónico, um vestígio de uma época passada. Oitenta anos após a queda do Terceiro Reich, o fascismo está a regressar à Europa. Seis países da UE - Itália, Finlândia, Eslováquia, Hungria, Croácia e República Checa - têm partidos de extrema-direita no governo. Partidos semelhantes tornaram-se atores importantes em toda a União Europeia, da Alemanha à França e da Polónia à Espanha.

Neste contexto, talvez seja melhor evitar as comemorações internacionais. Afinal de contas, J. D. Vance, o omnipresente vice-presidente dos Estados Unidos, os libertadores de 1945, poderia celebrar a liberdade elogiando a Alternative für Deutschland, ou o igualmente omnipresente Elon Musk poderia fazê-lo fazendo uma saudação a Hitler.

No lado oriental do continente, Vladimir Putin vai comemorar o sacrifício do povo soviético na luta contra o fascismo - vinte milhões de mortos - enaltecendo o heroísmo do exército russo que invadiu, há três anos, a Ucrânia a que chama “nazi”. Os nossos marcos históricos estão desestabilizados; a memória convencional não se adapta à terrível confusão do nosso presente.

Apesar do seu carácter oficial, o Dia da Vitória foi também um marco comemorativo para a esquerda. Como sublinhou Eric Hobsbawm, representou uma vitória do Iluminismo contra a barbárie. Uma coligação entre o liberalismo e o comunismo, herdeiros antagónicos da herança iluminista, tinha derrotado o Terceiro Reich. Esta visão era hegemónica na cultura da Resistência, segundo a qual o antifascismo lutava contra os inimigos da civilização. Embora verdadeira em muitos aspetos, essa perspetiva era, no entanto, demasiado simplista.

Talvez, em vez de nos envolvermos numa forma ritualista e cooptada de comemoração, este aniversário nos devesse inspirar a fazer uma reavaliação crítica. O Dia da Vitória celebra a vitória de uma aliança militar numa guerra mundial que teve muitas dimensões, incluindo o estabelecimento de uma nova ordem mundial na qual esta coligação “iluminista” não poderia sobreviver.

No Ocidente, os Estados Unidos tornaram-se a superpotência dominante; no bloco soviético, a guerra de autodefesa da URSS contra a agressão nazi transformou-se em ocupação militar e numa nova forma de colonialismo na Europa Oriental. As ideias do liberalismo e do comunismo tinham-se institucionalizado sob a forma de imperialismo e estalinismo.

Para a Esquerda, o fim da Segunda Guerra Mundial foi uma vitória dos movimentos de Resistência, que deram uma legitimidade democrática aos novos regimes nascidos do colapso do Terceiro Reich. Na maioria dos países da Europa Ocidental, a democracia não foi imposta pelos vencedores; foi conquistada pela Resistência.

No entanto, como salientou Claudio Pavone, o conceito de Resistência tinha também várias dimensões. Ao mesmo tempo, englobava a totalidade dos movimentos de libertação nacional contra a ocupação alemã, uma guerra civil entre as forças do antifascismo e muitos regimes que colaboraram com os ocupantes nazis, e uma guerra de classes que procurava mudar a sociedade, uma vez que as elites dominantes e a maioria das componentes do capitalismo europeu tinham estado implicadas no fascismo e na colaboração.

Esta guerra de classes venceu na Jugoslávia, que se tornou um país socialista, e criou as condições para uma esquerda poderosa em muitos outros países, de Itália a França. Reforçou também a resistência contra o franquismo em Espanha e o salazarismo em Portugal.

Ambiguidades da libertação

Ainda assim, se olharmos para além das fronteiras europeias, a paisagem parece muito mais diversificada. Enquanto aniversário mundial, o 8 de maio de 1945 assume significados diferentes. Enquanto o Dia da Vitória foi celebrado e mitificado como um símbolo de libertação no Ocidente, o mesmo não aconteceu noutros lugares.

Na Europa Central e Oriental, este momento de libertação revelou-se efémero, uma vez que o domínio nazi rapidamente deu lugar a um bloco de regimes autoritários instalados pela URSS. Em muitos países, isso significou russificação e opressão nacional.

O Dia da Vitória também não é um marco comemorativo da libertação em África e na Ásia. Na Argélia, a mesma data é o aniversário dos massacres coloniais de Sétif e Guelma, quando o exército francês esmagou violentamente as primeiras manifestações pela independência nacional. Foi o início de uma onda de violência imperial que percorreu toda a África francesa, atingindo o seu clímax dois anos mais tarde em Madagáscar.

Foi um governo de coligação em Paris, composto por partidos da resistência, que foi responsável por esta explosão de violência colonial - uma coligação que incluía os principais partidos de esquerda, os socialistas e os comunistas. As memórias anti-fascistas e anti-coloniais nem sempre são harmoniosas e fraternas. O aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial merece uma recordação crítica e não celebrações apologéticas.


Enzo Traverso é professor de história na Cornell University. Autor, entre outros livros, de As novas faces do fascismo (Edições Combate). Artigo publicado na Jacobin.