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No Brasil, os segredos de um golpe de Estado judiciário

A destituição de Dilma em 2016, o processo mediatizado e a prisão favorito à eleição presidencial fundaram-se no mesmo motivo: a luta contra a corrupção. Muitos observadores aprovaram este afastamento dado em nome da justiça republicana. Antes de perceberem que se tratava de um golpe de Estado judiciário que acabou por beneficiar a extrema-direita. Artigo de Perry Anderson.
Fotografia: Perry Anderson/Flickr
Fotografia: Perry Anderson/Flickr

A operação «Lava Jato», ligada ao mais importante escândalo de corrupção da história brasileira recente, rebenta em Março de 2014. Cai sob a alçada do juiz Sérgio Moro, que já havia mostrado as suas garras em 2005, enquanto assistente num outro caso muito mediatizado: o escândalo do mensalão, que dizia respeito ao pagamento de luvas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) a deputados, em troca do seu apoio. Sérgio Moro descreveu a sua maneira de actuar num artigo publicado em meados da década iniciada em 2000. Ela consiste em imitar os procedimentos postos em prática durante a operação «Mani Puliti» («Mãos Limpas ») que, no início da década de 1990, derrubou os partidos de governo italianos, precipitando o fim da Primeira República. Nesse seu texto, Moro sublinha a importância de dois aspectos deste método: o recurso a penas de prisão preventiva, de modo a incentivar a delação; e as fugas na comunicação social, calibradas para suscitar a ira da opinião pública e pressionar suspeitos e instituições. Aos seus olhos, a encenação mediática tem mais importância do que a presunção de inocência.

No decurso do caso «Lava Jato», o juiz brasileiro desvenda talentos escondidos de agente artístico. Raides, detenções espectaculares, confissões, telefonemas à imprensa e aos canais televisivos garantem, em cada etapa, uma ampla cobertura das operações que ele orquestra. Cada uma mais dramática do que a outra, estas operações são numeradas e recebem um nome de código inspirado no imaginário cinematográfico, clássico ou bíblico: «Dolce Vita», «Casablanca», «Aletheia» («verdade» em grego antigo), «Juízo Final», «Omertà», «Abismo», etc. Os italianos orgulham-se de ter um sentido inato do espectáculo? Moro fá-los passar por amadores.

Durante um ano, as acções judiciais têm como alvo antigos dirigentes da empresa petrolífera nacional, a Petrobras, acusados de terem recebido dinheiro. Em seguida provocam a queda do primeiro quadro importante do PT (o seu tesoureiro, João Vaccari Neto) e dos dirigentes das duas maiores empresas de construção civil e obras públicas do país, a Odebrecht e a Andrade Gutierrez. As manifestações de apoio a Moro crescem e, ao exigirem a punição do PT e a saída da presidente Dilma Rousseff, exercem pressão sobre o Congresso. Nada mais faltava ao presidente da Assembleia Nacional Eduardo Cunha para colocar na ordem do dia a destituição da presidente.

Os juízes são justiceiros ou actores políticos dispostos a tudo?

Isolada e enfraquecida, Dilma Rousseff solicita a ajuda do antigo presidente Luiz Inácio «Lula» da Silva. Este serve-se das suas competências de negociador para reparar as relações com o antigo aliado, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Eduardo Cunha, que parece ter colocado vários milhões de dólares em contas secretas na Suíça, propõe um pacto de protecção mútua: interromperá as suas diligências contra Dilma Rousseff se o governo lhe fizer um favor. «Lula» diz à presidente que aceite a mão estendida; ela recusa, apoiada pela direcção do PT, que teme que o entendimento seja descoberto. Os deputados do PT apoiam as acções judicias contra Eduardo Cunha, que responde lançando o processo de destituição.

Sérgio Moro, por seu lado, prepara o golpe de misericórdia. No início de Março de 2016, desencadeia a operação «Aletheia». «Lula» é intimado, de manhã muito cedo, em frente às objectivas das câmaras, uma vez que a comunicação social fora antecipadamente avisada. O antigo presidente é suspeito de ter beneficiado dos favores da Odebrecht. Os movimentos seguintes não se fazem esperar. Moro intercepta – e divulga à comunicação social – uma conversa telefónica entre Dilma Rousseff e «Lula», que havia colocado sob escuta. Os dois dirigentes referem-se nela à possibilidade de o segundo se tornar chefe de gabinete (o equivalente brasileiro do cargo de primeiro-ministro). Como os funcionários de nível ministerial e os membros do Congresso gozam de uma imunidade que só o Supremo Tribunal pode levantar, ninguém duvida que se trata de um estratagema para impedir a sua detenção. Dois juízes de Brasília opõem-se à nomeação: o primeiro é um autor habitual de vitupérios contra o PT no Facebook; o segundo, um homem ao serviço do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), opositor ao poder.

A pressão da rua a favor da destituição da presidente atinge o auge. Na Assembleia, nada indica, contudo, que a maioria de dois terços esteja garantida. Novas rusga revelam os livros de contas da Odebrecht onde estão apresentadas em detalhe as somas que foram pagas a cerca de duzentas personalidades, oriundas de quase todos os partidos. Na classe política, todos os alertas disparam: uma figura de topo do PMDB é gravado, sem o seu conhecimento, a dizer a um colega que «é preciso estancar a hemorragia». Ora, «os tipos do Supremo Tribunal» disseram-lhe que isso era impossível enquanto Dilma Rousseff estivesse no poder, porque a comunicação social está a atacá-la. Não resta outra opção, explica ele, senão substituí-la o mais depressa possível pelo presidente do senado, Michel Temer, e formar um governo de união nacional apoiado pelo Tribunal e pelas forças armadas. Em menos de duas semanas, a Assembleia aprova a destituição da presidente, deixando a Moro o terreno livre para se desembaraçar de Cunha, que se tornou inútil. Este, que pouco depois é excluído da Assembleia, acaba na prisão. O Senado valida a destituição da presidente e Temer assume a liderança do país.

No início de 2017, «Lula» é detido com base em suspeitas de corrupção ligadas à aquisição de um apartamento à beira mar do qual nunca foi, contudo, o proprietário legal. Julgado em Curitiba no Verão seguinte, é condenado a nove anos de prisão. Na sequência de um recurso entreposto, a pena é aumentada para doze anos. Com o primeiro presidente saído do PT atrás das grades, e a segunda destituída de forma grosseira, o naufrágio do partido parece completo.

Surgem então duas análises do papel dos juízes. A primeira descreve-os como justiceiros determinados a derrotar a corrupção; a segunda, como actores políticos dispostos a fazer tudo para alcançar os seus fins. Na obra O Lulismo em crise (Companhia das Letras, 2018), o sociólogo brasileiro André Singer rejeita as duas análises. Segundo ele, os juízes mostraram-se ao mesmo tempo perfeitamente republicanos e inegavelmente facciosos. Republicanos: como descrever de outro modo a prisão dos empresários mais ricos e mais poderosos do país? Facciosos: que outro sentido dar ao assédio sistemático aos membros do PT enquanto os dos outros partidos eram poupados – com excepção de Cunha, que se tornou demasiado embaraçoso? Isto já sem falar das afinidades políticas dos juízes, dos anátemas que lançaram no Facebook ou das fotografias onde os vemos posar, com grandes sorrisos, exibindo os símbolos de partidos conservadores. Fica uma pergunta: estes juízes, republicanos e facciosos, foram-no em proporções equivalentes?

Pena reduzida para o patrão da Odebrecht graças à «delação premiada»

No sistema judiciário brasileiro, polícias, procuradores e juízes formam corpos independentes uns dos outros. A polícia reúne as provas, os procuradores proferem as acusações e os juízes decidem as penas (no Brasil, os jurados só são chamados em casos de homicídio). Na prática, contudo, as três funções fundiram-se por ocasião da operação «Lava Jato», com a polícia e os procuradores a trabalhar sob a supervisão do juiz que controlava os inquéritos, determinava as penas a requerer, e ainda as sentenciava: uma inegável negação dos mecanismos de base da justiça, que prevêem a separação da acusação e da condenação (para já não falar do facto de o juiz Moro varrer de uma penada o princípio da presunção da inocência).

Um outro encanto do sistema judiciário brasileiro: a «delação premiada» permite ameaçar uma pessoa com penas de prisão esmagadoras, a menos que ela contribua para implicar um outro que possa ser julgado – o equivalente judiciário da chantagem. Não é difícil imaginar as derivas para que tal dispositivo contribui olhando para o caso de Marcelo Odebrecht, o mais rico patrão intimado no quadro do inquérito judicial. Condenado a dezanove anos de prisão por corrupção, ele viu a sua pena reduzida para dois anos e meio a partir do momento em que aceitou participar no jogo da delação. Num contexto como este, dificilmente se sobrestimará a pressão sentida para fornecer aos magistrados os elementos susceptíveis de fazer avançar os inquéritos que mais os preocupam.

Mas tudo o que ficou dito acaba por pesar pouco à vista da introdução do conceito de «domínio do facto»: a possibilidade de condenar alguém na ausência de prova directa da sua participação num crime, com base na ideia de que essa pessoa não pode deixar de ser por ele responsável. Este mecanismo decorre do de Tatherrschaft («domínio do acto»), concebido pelo jurista Claus Roxin para condenar criminosos de guerra nazis. Mas Roxin denunciou a utilização brasileira do princípio: figurar num ou noutro lugar num organigrama não basta, diz ele, para estabelecer a responsabilidade por um crime. É preciso, além disso, que a justiça possa provar que o referido crime foi de facto comanditado pelo acusado. Ora, o juiz Moro não se deixou atrapalhar por estes detalhes. «Lula», por ter alegadamente recebido um apartamento no valor de 600 mil dólares, foi punido com doze anos de prisão: dois terços da pena de prisão inicial de Marcelo Odebrecht, por menos de 2% dos montantes que este último é acusado de ter desviado.

Sérgio Moro, celebrado pelos media, não sofreu qualquer sanção

Neste contexto, a acção do Tribunal de Curitiba corresponde mais ou menos, apesar de tudo, ao coquetel identificado por André Singer: uma dose de zelo republicano, uma outra de estratégia facciosa. As coisas mudam quando se remonta na hierarquia judiciária até ao Supremo Tribunal. Aqui, nem rigor ético nem fervor ideológico. As motivações revelam-se muito mais sórdidas .

O Supremo Tribunal brasileiro, contrariamente aos seus equivalentes noutras partes do mundo, combina três funções: interpreta a Constituição; desempenha o papel de tribunal de último recurso para os processos civis e criminais; e, por fim, concentra a faculdade de julgar os dirigentes políticos – membros do Congresso e ministros –, que fora desta instância gozam de uma imunidade conhecida como «foro privilegiado». Os onze membros do Supremo são nomeados pelo executivo. A sua confirmação pelo poder legislativo, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, é uma mera formalidade. Não é exigida nenhuma experiência prévia nos tribunais judiciários, basta ter exercido como advogado ou procurador.

A nomeação dos membros do Supremo sempre assentou mais em lógicas de redes do que em afinidades ideológicas. Na equipa actual, um dos membros foi o advogado de «Lula», um segundo é um homem ao serviço do antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, e um terceiro um primo de um outro presidente, Fernando Collor de Mello. Quando a pressão do público a exigir a destituição de Dilma Rousseff estava no auge, oito dos onze membros do Supremo haviam sido escolhidos pela presidente e pelo seu antecessor. Mas, como os juízes mudam de cor política como o camaleão, os que deviam a sua nomeação ao PT procuraram, precisamente, demonstrar a sua independência em relação ao partido no poder. Na prática limitaram-se a substituir uma forma de fidelidade por outra: esquecidos os caciques do PT, passaram a obedecer à comunicação social dominante.

Desde o início que a equipa de Curitiba utilizou as fugas e as revelações na comunicação social para curto-circuitar os procedimentos normais. Precipitar a estigmatização pública de um acusado antes de ele comparecer perante o tribunal é normalmente proibido, mas Moro não se coibiu de o fazer, tanto mais que podia contar com os jornalistas para pressionar o Supremo Tribunal. Quando um dos juízes da instituição informou que o princípio do habeas corpus exigia que ele libertasse um dirigente da Petrobras, Moro virou-se para a comunicação social, declarando que, neste caso, também teria de libertar os traficantes de droga. O seu superior operou uma reviravolta. Depois de ter infringido três normas que enquadram as escutas telefónicas e de ter tornado pública a conversa entre «Lula» da Silva e Dilma Rousseff, o juiz Sérgio Moro justificou-se explicando que agira no «interesse geral». Celebrado como um herói nacional nos media, não sofreu qualquer sanção.

Alguns dias depois de ser eleito para a presidência do país, em Outubro de 2018, Jair Bolsonaro anunciou que Sérgio Moro aceitara o cargo de ministro da Justiça. Na década de 1990, os magistrados italianos encarregados da operação «Mani Pulite» lamentaram que os seus esforços para lutar contra a corrupção tivessem favorecido, definitivamente, a ascensão ao poder de Silvio Berlusconi. No Brasil, a estrela da «Lava Jato» congratulou-se por se juntar à equipa de um dos raros dirigentes políticos susceptíveis de fazer com que Berlusconi até pareça ser uma personagem simpática.

Perry Anderson *

* Historiador, professor na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Uma versão deste artigo foi publicada pela London Review of Books (7 de Fevereiro de 2019).

Inicialmente publicado em Le Monde Diplomatique.

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