Está aqui

Nem vinte e uma nem mais uma

Intervenção de Sandra Cunha, deputada do Bloco de Esquerda, no 4º Encontro Feminista do Bloco de Esquerda, realizado este fim de semana em Almada.
Nem vinte e uma nem mais uma
Intervenção de Sandra Cunha no Encontro Feminista do Bloco de Esquerda. Foto de Marco Marques.

Afirmar o combate às desigualdades de género em todas as suas dimensões, não deixando nenhuma mulher para trás – imigrantes, as mulheres negras, ciganas, lésbicas, bissexuais e transgénero, precárias, desempregadas, portadoras de deficiência, trabalhadoras do sexo – exige a consciência da diversidade e pluralidade de identidades e invoca necessariamente uma estratégia interseccional mas implica também, forçosamente, a consciência política de que o combate pela igualdade de género é peça fundamental para a transformação social.

Exige também a consciência de que a origem da opressão sobre as mulheres é a mesma que divide a sociedade em classes, grupos e categorias. É a mesma que impõe papéis estereotipados de género ou a heteronormatividade porque isso serve os seus interesses. É a mesma que naturaliza as diferenças entre mulheres e homens e é a mesma que diz às meninas que têm de cuidar da casa e dos filhos e devem ser simpáticas, sensíveis, dóceis, agradáveis à vista e diz aos meninos que devem ser fortes, corajosos, que “os homens não choram” e que o sucesso é aquilo que os define.

Patriarcado e capitalismo operam em conjunto e usam-nos, mulheres e homens, como peões neste jogo de xadrez cujo único objetivo é a manutenção deste pensamento dominante e ultraconservador, o reforço do poder patriarcal e a proteção do reinado do capitalismo.

E por isso é que o combate ao patriarcado e a alteração da estrutura das relações de poder na sociedade exige o empenho de todas e todos, mulheres e homens e implica a capacidade de articular todos os grupos e todas as lutas. As lutas pela redistribuição, a luta pela igualdade salarial, contra a precariedade e a pobreza, a luta pela repartição igualitária das tarefas domésticas e dos cuidados com os filhos, a luta pela paridade nos cargos de liderança e na representação política, mas também e sobretudo com toda a urgência, a luta contra o braço armado do patriarcado: a luta contra a violência de género.

Até podemos alcançar a igualdade salarial, ter mais mulheres nos lugares de chefia e liderança, ter ministras, governantes e presidentes, mas enquanto tivermos mulheres assediadas, violentadas, espancadas e assassinadas, teremos mulheres humilhadas, objetificadas, menorizadas e oprimidas. Teremos mulheres subalternizadas.

A violência sobre as mulheres, a violência nas relações de intimidade, a violação ou os femícidios configuram as manifestações mais extremas da dominação das mulheres. Este é um combate que não pode ser adiado.

A violência doméstica mantém-se sistematicamente no top 3 da criminalidade mais participada, é o maior crime na categoria de crimes contra as pessoas e é o crime que mais mata em Portugal: 472 mulheres assassinadas nos últimos 14 anos e mais vinte e uma até 12 de setembro deste ano.

Apesar disso, apenas 16% das queixas de violência doméstica chegam ao fim nos Tribunais. Dos processos concluídos cerca de 90% acabam em pena suspensa. Milhares de agressores condenados com culpa provada ou assumida veem ser-lhes aplicada a figura da suspensão provisória do processo que os dispensa de ir a julgamento e lhes permite passar uma esponja por cima da violência em troca de um pedido de desculpa à vítima, da entrega de uma quantia pecuniária a instituição ou da frequência de programas ou atividades de reeducação.

Esta cultura judicial que insiste em naturalizar a violência sobre as mulheres desculpabiliza e legitima os agressores enquanto desacredita, revitimiza e desprotege as vítimas. Este status quo é inaceitável, não pode continuar e o seu combate exige medidas corajosas e efetivas.

O Bloco de Esquerda entregou no parlamento três projetos de lei que se propõem alterar este estado das coisas.

É fundamental que os agentes que trabalham nesta área e especialmente os agentes judiciais, incluindo os magistrados, apreendam e compreendam o fenómeno da violência doméstica com todas as especificidades e singularidades destas relações de dominação. A formação multidisciplinar é para isso crucial.

A articulação entre os magistrados e os processos que correm no Tribunal Criminal e no Tribunal de Família e Menores é igualmente determinante. O argumento de que um agressor continua a ser um bom pai e o tratamento destes processos, nos Tribunais de Família e Menores, como se de um simples processo de regulação das responsabilidades parentais se tratasse desprezando a existência de violência são comuns e recorrentes.

O Bloco de Esquerda propõe a criação de Juízos de Violência Doméstica através da criação de dois projetos piloto, em Braga e em Setúbal. Dois Tribunais Especializados de Competência Mista com a incumbência de preparar e julgar os crimes de violência doméstica e os processos de regulação das responsabilidades parentais que tenham associado o crime de violência doméstica e nos quais, os agentes judiciais e magistrados tenham a formação e especialização necessárias.

O segundo projeto pretende garantir que a violência doméstica, mas também a violação e o abuso sexual de crianças, crimes absolutamente hediondos, abjetos e intoleráveis, deixem de ser encarados como crimes menores no nosso ordenamento jurídico.

O Código Penal pune com penas maiores crimes contra o património do que crimes contra a integridade física e psíquica, a autodeterminação e liberdade sexual ou contra a dignidade da vida humana. O furto qualificado ou o abuso de confiança têm uma moldura penal que pode chegar aos 8 anos. A pena pelo crime de roubo pode chegar aos 15 anos. A violência doméstica, o crime que mais mata em Portugal, tem uma pena de 5 anos.

Importa lembra que a violação registou em 2017 um aumento de 21,8% face a 2016 e que o abuso sexual de crianças representa a maior fatia dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. Também aqui, 75% dos abusadores sexuais de crianças, têm pena suspensa.

Este projeto reforça os limites mínimos da moldura penal da violência doméstica, mas também da violação e do abuso sexual de crianças corrigindo um erro cristalizado no nosso Código Penal e promovendo a sua função de prevenção geral.

O terceiro projeto altera o Código do Processo Penal e estende a possibilidade de aplicação da prisão preventiva aos crimes que tutelam a autodeterminação e liberdade sexual como a violação, mas também à violência doméstica. Efetivamente, não se compreende que o julgador possa aplicar a prisão preventiva quando confrontado com indícios de um crime de dano, mas não o possa fazer face a indícios de crimes de prova mais complexa e onde, na esmagadora maioria das vezes, o agressor tem um ascendente enorme sobre a vítima. São ainda crimes com elevada taxa de reincidência.

Este projeto propõe-se também impedir a aplicação da figura da suspensão provisória do processo nos casos de violência doméstica. Entre 2015 e 2016 mais de cinco mil agressores beneficiaram da suspensão provisória do processo. Relembre-se que esta figura é aplicada a agressores condenados, com culpa provada ou assumida. Bateram, humilharam, espancaram, espalharam o terror e a violência e vão à sua vida.

Estes projetos configuram propostas difíceis, mas corajosas para responder à persistente cultura de desvalorização da violência sobre as mulheres, da violência sexual, do abuso sexual de crianças e dos femícidios.

Porque está na hora de exigir: nem vinte e uma nem mais uma!
 

Sandra Cunha

(Adaptado da intervenção na sessão de encerramento do IV Encontro Feminista do Bloco de Esquerda, 15-16 setembro, Almada)

Termos relacionados Sociedade
(...)