Israel

Negócios da Altice: dos territórios ocupados ao canal de notícias pró-Netanyahu

31 de outubro 2024 - 11:24

A empresa dona da Meo detém licenças do governo israelita para a distribuição da tv por cabo e contratos de infraestruturas de comunicações nos colonatos ilegais na Cisjordânia e Jerusalém. E é dona do canal que lançou a mentira dos “bebés decapitados” a 7 de outubro.

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Patrick Drahi
Patrick Drahi, o dono da Altice.

A multinacional Altice, que opera em Portugal com a marca Meo, herança da Portugal Telecom, é uma das empresas incluídas na lista das Nações Unidas das empresas que operam nos colonatos ilegais em territórios palestinianos ocupados por Israel.

Presidida por Patrick Drahi, milionário com origem numa família judia em Marrocos e que detém ainda nacionalidade francesa, portuguesa e israelita e residência habitual na Suíça, a Altice tem presença forte em Israel, que alargou aos territórios colonizados à força pelo estado sionista nas últimas décadas.

Na fuga de informação que ficou conhecida como os “Drahi Leaks”, além dos pormenores dos gastos de Patrick Drahi e dos seus familiares, ficou a conhecer-se a doação de 7,7 milhões de dólares ao fundo de apoio aos militares israelitas para financiar um “centro de bem-estar” dos soldados a instalar na maior base naval israelita, em Haifa. A doação foi feita em 2021 pela Fundação Patrick e Lina Drahi, sediada na Suíça.

Contratos milionários com militares e polícia, fornecimento de tv  e net nos colonatos ilegais 

Segundo o portal Who Profits, com dados disponíveis até 2022, a subsidiária Hot Telecommunications Systems detém licenças para o fornecimento de televisão e serviços de comunicações nos colonatos israelitas de Jerusalém e na Cisjordânia. Nos últimos anos obteve contratos do Ministério israelita da Construção e Habitação para transferir a infraestrutura de comunicações em espaço público nos colonatos de Efrat, Beit El, Beitar Illit, Givat Ze’ev, Geva Binyamin, Ma’ale Adumim, Ma’ale Efraim e Kiryat Arba, na Cisjordânia.

A sua empresa de comunicações móveis, a Hot Mobile, foi entre 2005 e 2011 a fornecedora exclusiva de comunicações móveis do exército de Israel e entre 2013 e 2018 foi a fornecedora exclusiva de aparelhos “Push to Talk” da polícia, bem como de serviços de televisão

Tem também licença para vender os seus serviços nos colonatos, pagando-lhes em troca royalties que financiam a ocupação. Em 2022, tinha pelo menos 242 antenas de comunicações ativas nos territórios ocupados, incluindo 44 nos Montes Golã. Algumas estão colocadas em terrenos privados palestinianos e outras junto aos checkpoints israelitas, incluindo o da passagem de Erez, junto à Faixa de Gaza. A empresa tem ganho concursos para fornecer telemóveis a trabalhadores municipais dos colonatos e tem lojas abertas em vários deles. No caso dos colonatos da Cisjordânia em Alon Shvut, Efrat, Ariel, Beit Aryeh-Ofarim, Beitar Illit, Giv'at Ze'ev, Modi'in Illit, Ma'ale Adumim, a adesão aos seus serviços pode ser feita nas estações de correios israelitas ali instaladas pelo ocupante. Nos bairros dos territórios ocupados de Jerusalém Leste, onde as empresas de comunicações palestinianas estão proibidas de operar, a Hot Mobile está presente com lojas e também nas estações de correio israelitas.

Entre 2015 e 2017, a Hot Mobile geriu a rede de comunicações da Coordenação de Atividades do Governo nos Territórios e também é responsável pela rede de comunicações da rede de metro ligeiro de Jerusalém que liga os colonatos ilegais do Leste da cidade à parte ocidental. Também nesses anos faturou cerca de 250 mil euros em comunicações da Autoridade Israelita de População e Imigração e mais de meio milhão de euros em comunicações dos Serviços Prisionais Israelitas entre 2015 e 2018.

i24NEWS, o canal da Altice na origem da mentira dos “bebés decapitados”

O dono da Altice é também o criador e proprietário do canal internacional de notícias israelitas i24NEWS, transmitido em francês, inglês, hebraico e árabe para dezenas de países, incluindo na grelha de televisão por cabo em Portugal. O facto de a Altice ser proprietária da empresa de televisão por cabo Hot e da lei israelita da concentração dos media proibir que também seja dona de um canal de notícias no país não foi um obstáculo ao projeto de Patrick Drahi, que desde que a estação abriu portas insistiu junto de Netanyahu para autorizar as emissões, alegando não compreender “a lógica da regulação que permite a Al-Jazeera ser emitida em Israel mas impede a i24NEWS”.

O lançamento do canal em 2013 foi apresentado com o objetivo de “mudar o ponto de vista sobre Israel” e o sonho de ser uma alternativa à Al-Jazeera, apesar da baixa probabilidade de os espectadores do mundo árabe decidirem escolher um canal israelita como fonte de informação. “Na Al-Jazeera, o objetivo é empolgar. Eu quero trazer alguma serenidade”, afirmou na altura Frank Melloul, o antigo conselheiro de comunicação do primeiro-ministro francês Dominique de Villepin que lidera a i24NEWS desde a fundação.

Mas serenidade não foi o que se viu nas reportagens da estação a 7 de outubro de 2023. Foi a i24NEWS que espalhou a mentira dos bebés decapitados nos ataques do Hamas aos kibbutz invadidos junto à Faixa de Gaza. Foi a repórter Nicole Zedek, que visitou o kibbutz de Kfar Aza, que disse inicialmente que “os soldados disseram-me que acreditam que 40 bebés e crianças terão sido mortos”. Mas à medida que os noticiários se sucediam ao longo do dia, a notícia evoluiu da convicção dos soldados israelitas para a confirmação categórica das decapitações de bebés, que se tornou viral nas redes sociais e foi depois repetida por Netanyahu e Biden, afirmando terem visto imagens desses crimes. O presidente norte-americano viria depois a negar ter visto qualquer imagem de bebés decapitados, mas no dia seguinte a mentira fazia capas de jornal em todo o mundo. Em Portugal, o autarca Carlos Moedas chegou a recorrer a essa mentira para atacar o Bloco de Esquerda na semana seguinte.

A proximidade com Benjamin Netanyahu, reforçada nos últimos anos, permitiu à estação da Altice abrir atividade no Dubai, após a aproximação consagrada em 2020 nos acordos de Abraão patrocinados pea administração Trump. Nesta fase apresentada como de “normalização” das relações de Israel com o mundo árabe, a entrada da estação nos Emirados Árabes Unidos tinha por objetivo reforçar o soft power israelita através das emissões em árabe da i24NEWS.

Já em 2019, o diário Haaretz tinha noticiado a forma como a estação televisiva passou a adotar uma orientação pró-Netanyahu, numa altura em que procurava obter uma licença para um canal de notícias em hebraico e outra para emitir o canal em língua inglesa nos canais da Hot a nível nacional, apesar de a lei da concentração dos media não o permitir. Para conseguir essa exceção à lei, o canal precisava de ajudar a imagem de Netanyahu, já manchada pelas investigações sobre corrupção. A estratégia da direção do canal levou ao abandono ou saída forçada de algumas figuras da estação, a proibição de convidar certos comentadores hostis ao primeiro-ministro e o cancelamento de um programa considerado “esquerdista”. A estação atribuiu as críticas às calúnias inventadas por antigos funcionários e lembra que os canais televisivos sionistas religiosos a acusam frequentemente de ser de esquerda.

Segundo estes, as instruções da direção do canal eram claras: “Precisamos de ser mais brandos com Netanyahu” e ‘menos críticos’ do primeiro-ministro. Na verdade, o i24NEWS nunca foi conhecido pela cobertura crítica das ações de Netanyahu, antes fazendo o que se poderia chamar uma cobertura “razoavelmente favorável”, diz o Haaretz. Mas a partir daí Melloul passou a intervir mais na redação, orientando uma cobertura “seca” das acusações de corrupção. “Só preciso deles até emitirmos em Israel. Depois já não preciso deles”, terá dito ao círculo mais próximo. A licença chegou em 2018, graças a uma lei feita à medida pelo ex-deputado Nachman Shai, aprovada apesar da oposição do ministro da Justiça. E no próprio dia o CEO da i24NEWS terá fixado o novo objetivo: “Só preciso de emitir em hebraico. Depois, eles podem ir para o inferno”. Com as eleições de 2019 a aproximarem-se, a pressão redobrou sobre a redação, com mais afastamentos de comentadores de quem Netanyahu não gostava e a ordem para a transmissão integral dos discursos de campanha de Netanyahu. Melloul nega ter alguma vez conversado com o primeiro-ministro ou os seus familiares quer sobre a licença quer sobre o trabalho da estação.

A verdade é que foi preciso esperar até julho deste ano para ver a primeira emissão do novo canal i24 em hebraico. “Estes canais noticiosos internacionais no coração do Médio Oriente, dirigidos por Patrick Drahi, provaram, ainda mais desde 7 de outubro, a sua utilidade e a sua razão de ser, sobretudo porque uma grande parte dos meios de comunicação social internacionais transmite uma retórica pró-palestiniana”, afirmou Frank Melloul, diretor executivo do i24NEWS, em vésperas do lançamento do seu primeiro canal de notícias em hebraico. Na opinião dos críticos, o tom da noite de estreia da emissão não se distinguiu da concorrência, tal é a polarização mediática criada pela guerra. "Parece o canal 14 de fato e gravata", disseram outros, referindo-se ao canal também conhecido pelo apoio a Netanyahu e por vezes comparado no estilo à Fox News estadunidense.