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Negociação de matéria-prima, um setor bilionário e sem supervisão

Estas empresas, que não traduzem um real valor acrescentado para a cadeia de produção, lucram com as oscilações dos preços, arrecadando os diferenciais.
Silo da Cargill no porto de Amesterdão. Foto DennisM2/Flickr

A negociação de matéria-prima (trading de commodities) é um setor por muitos desconhecido, mas altamente rentável e virtualmente não supervisionado. Estas empresas, que não traduzem um real valor acrescentado para a cadeia de produção, são o elo de intermediação entre os produtores e os consumidores. Especializam-se na compra e venda de matéria-prima, desde bens alimentares, metais a energia, e lucram com as oscilações dos preços, arrecadando os diferenciais. 

Os jornalistas Javier Blas e Jack Farchy publicaram em 2021 o livro “O Mundo à Venda. Dinheiro, Poder e as Corretoras que Negoceiam os Recursos da Terra” e relatam os negócios, muitas vezes ilícitos, destes grandes negociadores.

Com a invasão da Ucrânia, e com a inflação concentrada no setor energético e alimentar, as quatro maiores empresas tiveram resultados recorde. A Glencore, especializada em produtos minerais e energéticos, duplicou na primeira metade do ano o seu lucro face ao período homólogo do ano anterior, registando quase 19 mil milhões de euros. A Vitol, cuja atividade se foca em combustíveis, ganhou 4,5 mil milhões de euros, mais que no ano inteiro de 2021. A Trafigura, concentrada em metais e carburantes, registou 2,7 mil milhões, quase mais 30%. A Cargill, que se especializou em bens alimentares, teve receitas de 165 mil milhões de euros, mais de 23% que o ano passado. 

Porque é que este setor não é regulado?

Uma combinação de fatores faz com que este setor não seja verdadeiramente supervisionado nem tributado. Primeiro, e como sublinha o jornal El Pais, estas empresas têm as suas sedes e empresas constituintes em jurisdições conhecidas por serem paraísos fiscais - a Glencore e Vitol têm sede na Suíça, a Trafigura, divide-se entre a Suíça e Singapura, e a Cargill é estadunidense, com a maior parte das suas operações em Delaware. 

Para além da sua tributação, difícil de concertar por estar em grande medida fora do perímetro de atuação da UE e dos EUA, os bancos que as financiam garantem-lhes crédito de forma a alavancar as suas posições, sendo brandas as obrigações regulatórias a que estão sujeitos. 

Além disso, é um setor caracterizado por um grande grau de concentração, o que lhe garante impunidade e capacidade de manipulação dos preços. Simultaneamente, é um setor pouco transparente. As quatro grandes empresas, não sendo cotadas em bolsa, não necessitam de publicar os seus relatórios de contas com frequência.

Já em 2011, o Financial Times escrevia que o “véu lentamente se levantava sobre uma profissão secreta”. Mencionava que as grandes casas de trading começaram a ser alvo de maior atenção a partir de um pico dos preços em 2003, com a sua atuação a preocupar ministros de matérias agrícolas, energéticas e de metais dos países do G20. 

Também em 2013 o Le Monde descrevia o setor como um “setor que não transpira transparência” pela sua estrutura, na maior parte das vezes, privada. Dava na altura o exemplo do capital da Trafigura ser 80% detido pelos seus executivos e 20% pelo presidente Claude Dauphin, o que lhes garante grande influência.

Em entrevista ao Jornal de Negócios, Javier Blas, quando questionado sobre práticas ilícitas deste tipo de agentes, diz “Talvez as mais difíceis de identificar – e as mais simples ao mesmo tempo – sejam as práticas que envolvem subornos: pagar a um responsável num país produtor de uma matéria-prima para alocar um contrato a alguém. Vimos o Departamento norte-americano da Justiça obter recentemente confissões de alguns comerciantes de “commodities” sobre o pagamento de “luvas” em países de África e da América Latina. Mas provavelmente estas confissões são apenas a ponta do icebergue”.

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