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Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

A peça O Homúnculo, editada em 1965 por Luiz Pacheco, foi a primeira de um conjunto de três peças teatrais de Natália Correia que partiram de uma acutilante mundividência sobre a situação histórica e política de Portugal. Imediatamente apreendida pela PIDE, a peça é uma tragédia jocosa sobre a figura de Salazar. Satírica e demolidora, ridiculariza a figura do ditador e ainda de várias outras figuras cruciais para o desenvolvimento e a manutenção do Estado Novo.

A peça é a primeira parte daquilo a que Armando Nascimento Rosa chamou trilogia dos mitos lusitanos, sendo seguida por A Pécora (1967) e por O Encoberto (1969). Nascimento Rosa encontrou afinidades entre as três obras que lhe parecem suficientes para irmaná-las, ainda que a autora nunca tenha sugerido quer a nomenclatura quer o agrupamento textual. O autor argumenta não só pela proximidade cronológica da redacção das obras, já que foram as três publicadas no curto espaço de três anos, mas também pelas parecenças na concepção estilística dos temas: os títulos das obras, compostos por um artigo definido e um substantivo, voltam a atenção para mitos da história portuguesa. Assim, O Homúnculo orienta-nos para Salazar, A Pécora para as aparições de Fátima (1917) e O Encoberto para o mito sebastiânico. As três interrogam a identidade portuguesa, compõem uma visão panorâmica de uma parte relevante do imaginário nacional.

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. De facto, o ditador leu a obra num serão e ficou profundamente impressionado com Natália Correia, ainda que a sua figura se visse por ela ridicularizada. Quando lhe comunicaram a apreensão da obra e a iminente prisão da autora, pediu que retirassem a obra de circulação, mas que não fizessem mal a quem a houvera escrito, gabando-lhe a inteligência.

O Homúnculo: um anão e um reinado

Pequena peça de cinco actos, O Homúnculo, peça teatral que é ainda uma sátira política, junta a estética surrealista ao teatro do absurdo. Logo no início, depreende-se qual será alvo de sátira na peça, não só pela descrição das personagens e do cenário, mas também pelas escolhas semânticos e fonéticas levadas a cabo pela autora. A acção decorre “no palácio de el-rei Salarim, senhor absolutíssimo da Mortocália, país de dez milhões de habitantes e outras estátuas de heróis que outrora o glorificaram, antiquissimamente alojado na Europa”. No mesmo movimento, há provocação e transparência. As alusões das metáforas são transparentes: é fácil entender que Salarim remete para Salazar, não só pelas parecenças semânticas e fonéticas dos nomes, mas também pelo lugar que ambos ocupam no topo da hierarquia de um poder sobre dez milhões de habitantes; ao mesmo tempo, Mortocália funciona como epónimo de Portugal, o lugar amordaçado pelos ditames ditatoriais onde milhares de pessoas são condenadas à morte através da guerra colonial.

Salazar é ridicularizado também através do próprio título da peça. A palavra homúnculo serve para gozar com as suas pretensões, para deslegitimar o lugar que ocupa no topo da hierarquia do poder ou, pelo menos, para desvalorizá-lo. Com ela, Natália Correia tenta espezinhar e minimizar o ditador através de um olhar superior sobre o mesmo. Desta forma, torna-o motivo de gozo e de riso, destrói as hierarquias simbólicas, desafia o poder que Salazar queria incontestável. Neste cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista.

Décadas volvidas após a publicação da peça, O Homúnculo torna-se em muito mais do que uma sátira à situação do Portugal da década de 60. Estando ligada ao seu tempo, ultrapassa-o e questiona as estruturas dos poderes absolutos, impondo com a sua leitura a reflexão sobre os modelos sociais totalitários e as imagens fabricadas dos ditadores. Para impor esta reflexão, a autora usou uma arma que voltaria a usar na sua produção dramatúrgica: o humor que o ridículo provoca. Ridicularizando o ditador, a autora deslegitimava-o e tirava-lhe a carga do medo que impunha. O escárnio que usava na literatura era, assim, uma arma política, daí que não possa estranhar-se que O Homúnculo tenha de imediato conhecido a censura por parte do regime. A mundividência da autora sobre o ditador projectava-o para o lado contrário da imagem que ele tinha e queria ter: ao invés de um homem forte, decidido, independente, poderoso, com um grande Império nas mãos, havia um homúnculo, um anão, um homem insignificante, pequeno, vil, que agia como fantoche às mãos de outro poder, não tendo poder real, alimentando as suas fantasias de poder imperial numa terra iminentemente agrícola.

A censura de O Homúnculo

Mesmo tendo a obra sido proibida no dia seguinte à leitura de Salazar, teve uma representação clandestina na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no final dos anos 60. Tratou-se de uma leitura encenada, à porta fechada, e foi feita por um grupo de estudantes universitários dirigidos por José Manuel Osório, à data aluno da Faculdade de Direito de Lisboa. O evento aconteceu já depois de Salazar ter caído da cadeira, numa altura em que era já o figurino no poder que Natália Correia retratara na peça.

A peça acabou por ser levada a cena no ano 2015, no Teatro Estúdio Fontenova, tendo sido encenada por José Maria Dias, depois de quase meio século na gaveta.

Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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Neste dossier:

As obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE

Nas últimas semanas, estivemos a olhar para a história da censura literária em Portugal, focando-nos nas obras das autoras que a PIDE censurou. Neste dossier, podemos ver análises de todas essas obras - um total de 21, escritas por 9 autoras. Dossier organizado por Ana Bárbara Pedrosa.

Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

No decorrer do Estado Novo, foram censuradas 21 obras de 9 autoras portuguesas. Salta à vista o número reduzido e a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

"Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (...) Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “Minha Senhora de Mim” (1971)

"Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “O delator”

"É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.", pode ler-se num parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de "Quem move as árvores" (1970)

"As relações dialógicas são constantes na obra de Fiama: se em O Testamento vimos que vida e peça se confundem, dialogando, em Quem move as árvores há um paralelismo temporal com alcance no passado, entre a época da monarquia e o Estado Novo. Em nenhum dos casos o povo escolhe, o poder é imposto." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de três peças num volume

"Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Museu”

O tom absurdista da peça dificulta a sua análise, na medida em que, para além de não haver grandes relações dialógicas até nos próprios diálogos, se torna difícil descortinar as intenções da autora. No entanto, são mostrados dois grupos numa relação conflitual, em que um está submisso ao outro, recebendo acriticamente as suas instruções, viabilizando acontecimentos que servem os interesses do segundo. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Testamento”

"A peça de Pais Brandão sugere que não pode haver espectadores na vida, que toda a gente tem de intervir em tudo o que à vida pública diz respeito, e é por isso que peça e vida se confundem, mostrando a autora que em tudo há relações dialógicas". Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O Encoberto”

"Trata-se do desenvolvimento em estilo de 'paródia' de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas, à maneira de 'Natália Correia', com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar", pode ler-se no relatório da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A Pécora”

Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O vinho e a lira”

"Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más.", pode ler-se no parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “O adolescente”

As orelhas da capa do livro faziam propaganda a dois livros proibidos. Assim, a PIDE proibiu também a circulação deste romance. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A comunicação”

Este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. A PIDE considerou que “o estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras” obrigava à “reprovação da peça”, já que a sua “Indispensável sequência” impossibilitava “quaisquer cortes de saneamento”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Falsos preconceitos”

A PIDE considerou que “dada a imoralidade que o livro revela”, “não é de molde a ser autorizada a sua circulação no País”, e isto apesar de a obra ser de tal forma reaccionária que, afinal, se colocaria ao serviço do que o regime apregoava. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria da Glória: a proibição de “A Magrizela”

Nesta obra, não apenas há muitas situações sexuais como há muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Vinte anos de manicómio!”

O romance não foi censurado assim que foi publicado. É que, "como era feito por uma escritora”, os censores da PIDE nunca supuseram “que esta tivesse escrito com tanta realidade”.  O livro tem “um realismo tão cru e descrições de tal basévia e lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Famintos”

A PIDE censurou a obra “Famintos”, de Carmen de Figueiredo, considerando que esta se “refere a uma vida familiar romanceada, com descrição de acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: ephemerajpp.com

Maria Archer: a proibição de "Casa sem pão"

"Casa sem pão" (1957) foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE e deu azo não apenas ao processo mais longo sobre qualquer uma das suas obras, mas também ao processo mais longo que tratamos neste dossier. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: cvc.instituto-camoes.pt

Maria Archer: a proibição de "Ida e volta duma caixa de cigarros"

A PIDE censurou a obra "Ida e volta duma caixa de cigarros", de Maria Archer, considerando que este “não atingiu o alcance moral” e que a autora “compraz-se na volúpia do pormenor sensual”. Por Ana Bárbara Pedrosa.