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Na vastidão da cultura, restaurar o património

A situação caótica que se vive na área da cultura ocupa todo o espaço. Nada é mais importante e urgente do que a resposta aos que, da manhã para a noite, ficaram no desemprego. Por Maria Luísa Cabral
Painéis de S. Vicente, obra prima da pintura universal - O Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) considerou que a obra precisava de intervenção, decisão ousada – Foto do MNAA
Painéis de S. Vicente, obra prima da pintura universal - O Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) considerou que a obra precisava de intervenção, decisão ousada – Foto do MNAA

O Ministério não resolve a situação mas a incapacidade do Ministério não se fica por aqui nem constitui novidade.

É muito difícil penetrar na esfera institucional da cultura e criticar. A crítica exige conhecimento das situações e na verdade não se pode estar à espera que uma dúzia de conservadores restauradores, ou outra dúzia de bibliotecários mais meia dúzia de arquivistas e alguns arqueólogos e conservadores de museu entrem em confronto directo com a tutela e, eventualmente, com algumas chefias. Estudaram juntos, são todos colegas, hoje mandas tu em mim amanhã mando eu em ti, como é que vão revelar os problemas, denunciar as situações porque, na verdade, são essas dúzias de profissionais que sabem de cor os problemas de cada área e de cada instituição. Por isso as perguntas têm de vir de fora, o recurso ao inquérito é tão necessário, tudo consubstanciado na força parlamentar.

No domínio da conservação e restauro do património artístico, museográfico, bibliográfico e arquivístico, a renovação é muito difícil, morosa, pode levar gerações

Há carreiras técnicas que estão a acabar. Desiluda-se quem pense que melhores dias virão e que outras fornadas de técnicos substituirão as que agora desaparecem. Pura ilusão. No domínio da conservação e restauro do património artístico, museográfico, bibliográfico e arquivístico, a renovação é muito difícil, morosa, pode levar gerações e, nesse tempo de espera, se alguma coisa é descuidada, deteriora-se para todo o sempre, desaparece.

Conheço bem o mundo das bibliotecas, a realidade para lá dos circuitos do leitor. Digamos que conheço a miúde os espaços, as estruturas, os segredos da instituição, aqueles que os leitores nem sonham que existe. O lugar onde se constrói e molda a leitura, as oficinas e laboratórios, os cais onde aportam peças a pedir ajuda, os armazéns, a variedade de matérias-primas, os equipamentos e o sortilégio da tecnologia, as cores e os odores, os artífices diligentes. Um mundo único que se ama até doer. É por isso que, nas últimas semanas, três notícias chamaram a minha atenção.

Começo pela intervenção de restauro, assassina, de uma pintura de Murillo. A pessoa que se adiantou para fazer o restauro de uma pintura do século XVII por uns patacos é claramente um impostor. Tão culpado como o dono da obra para quem a ganância comanda o mundo. Os técnicos de conservação e restauro, qualquer que seja a área de intervenção, têm de ser encartados e de preferência convém, ao contratá-los, estabelecer a “cadeia de contacto” para usar uma terminologia da moda. Não se podem entregar obras únicas para restauro ao primeiro papalvo que se perfila. Esta circunstância é verdadeira para os particulares e para as instituições. O bom restauro caracteriza-se pelo retorno; o mau restauro é viagem apenas de ida, não tem volta. Em casos particulares, é um risco tremendo; nas instituições, há sempre o recurso à auscultação, ao aviso dos pares, ao trabalho de equipa. Um saber acumulado durante gerações deve ser ouvido. O problema que se vai colocando é que deixando desaparecer essa massa crítica, as instituições também ficam à mercê dos espertos de ocasião, expeditos em oferecer baixos custos em tempos de vacas magras. Os técnicos das instituições têm de desenvolver estas capacidades de negociar, avaliar, questionar e contrapor. Coisas que se aprende com os parceiros mais batidos, não basta ler o manual. O “by the book” nem sempre se aplica.

O outro caso tem a ver com os Painéis de S. Vicente, obra prima da pintura universal, qualquer cidadão sente a unicidade daquela obra. O Museu Nacional de Arte Antiga considerou que a obra precisava de intervenção, decisão ousada. A equipa é vasta, reúne o que de melhor há entre nós, os consultores são muitos, de Madrid a Nova Iorque. Nada de espantar, está a ser feito o que tem de ser feito: se não existem técnicos para todas as especialidades, pois que se busquem onde os há. De Madrid será um especialista em madeiras porque em Portugal já não os há. Eis exactamente o que nos deve preocupar. Nessa área, interrompeu-se a cadeia de transmissão, criou-se um hiato de conhecimento. Mesmo que as escolas formem técnicos nesta área, até eles ganharem calo, vão passar muitos anos (décadas?), num constante experimenta, avança e recua, sempre na corda bamba, sem apoios de experiência feitos. Vazios destes têm de ser evitados, o Ministério da Cultura tem de providenciar quadros de pessoal e renovação de recursos humanos não deixando perder-se o que custou décadas a erguer. Não identifico indícios de uma preocupação desta natureza.

Estas áreas de intervenção são centrais na cultura e merecem ser tratadas com idêntico cuidado como o posto nas artes performativas, não podem ficar para trás

Finalmente, o caso daquele português com formação inicial feita em Lisboa, apaixonado por pigmentos antigos e que em Londres encontrou o ambiente propício ao seu trabalho e investigação. Trabalha na identificação e experimentação de receitas seculares para formar cores antigas e aplicá-las. Recuperação de património. Será coisa apenas para algumas sociedades? Não creio. Com o devido apoio estatal, esta ou outras idênticas, são iniciativas que valorizam e reconquistam o património, têm o seu lugar, são verdadeiros indicadores do nível cultural de uma sociedade. Como esta, outras também não se podem ignorar como as artes antiquíssimas da encadernação ou da douração, da conservação do papel ou do pergaminho. Não serão nunca áreas a requerer centenas de profissionais mas são seguramente sectores que precisam de estar estabelecidos, de assegurar a passagem do testemunho na certeza de que o saber fazer perpetuando as artes tradicionais constitui um elemento fundamental na salvaguarda do património. Estas áreas de intervenção são centrais na cultura e merecem ser tratadas com idêntico cuidado como o posto nas artes performativas, não podem ficar para trás. Todos juntos em prol da defesa global da cultura.

Artigo de Maria Luísa Cabral

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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