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Myanmar: a farsa anunciada

As eleições serão realizadas com a ditadura impondo uma série de regras, procedimentos e manobras, cujo objectivo é tornar impossível que a oposição, encabeçada pela Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, possa ganhar outra vez as eleições. Por Tomi Mori, de Tóquio para o Esquerda.net
Aung San Suu Kyi foi premiada com o Nobel da Paz em 1991, é líder da oposição ao regime ditatorial do país e activista pelos direitos humanos. Foto Edenpictures/Flickr.

A junta militar, que governa Myanmar, anunciou as eternamente adiadas eleições do país para o próximo dia 7 de Novembro. Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que as eleições, as primeiras nos últimos 20 anos, representam uma farsa eleitoral, já que não se trata de eleições livres e democráticas.

Myanmar vive sob uma tenebrosa e descarada ditadura militar, que transformou o país num dos mais pobres da Ásia. As eleições serão realizadas com a ditadura impondo uma série de regras, procedimentos e manobras, cujo objectivo é tornar impossível que a oposição encabeçada pela Nobel da Paz Aung San Suu Kyi possa ganhar outra vez as eleições. E visam também dar uma cínica resposta ao mundo inteiro, que exige a abertura política e a realização de eleições livres e democráticas.

Com as imposições draconianas no processo eleitoral, o principal partido de oposição, a antiga Liga Nacional pela Democracia, foi impedida de participar. Isso, por si só, já coloca bem claro que se trata de eleições antidemocráticas. E por último, a escolha do dia 7 de Novembro visa impedir que Aung San Suu Kyi possa, eventualmente, participar na eleição, já que se encontra prisioneira política e a pena que cumpre vence somente após as eleições, o que concretamente inviabiliza sua participação.

Nesse contexto, a farsa eleitoral de Novembro é de um cinismo e descaramento desmedido, já que a junta militar, encabeçada pelo general Than Shwe, pretende utilizá-la apenas para se auto-legitimar.

Uma história de opressão

União de Myanmar é o nome atribuído ao país que fora outrora a Birmânia, em 1989, pela junta militar. Foram mudados também os nomes de várias cidades, o que gera confusão, já que muitos se negam a aceitar as modificações, inclusive alguns países como Austrália, França, Canadá, Inglaterra e EUA. Hoje é um dos países mais pobres da Ásia, mas noutras épocas chegou a ser um dos mais prósperos A actual pobreza e o resultado da delapidação operada pelos militares em todas as esferas do país, e a manutenção do povo birmanês amordaçado pelo regime, um dos mais reclusos do planeta e praticamente isolado do desenvolvimento mundial. A ditadura transformou o país, considerado o mais corrupto no mundo, num negócio exclusivo, que comanda sob a força das baionetas.
A história da opressão é longa, tendo sido o país governado por várias monarquias no passado e invadido pelas tropas do mongol Kublai Khan no século XIII. 

Em 1600, o português Felipe de Brito e Nicole, auto-proclamou-se rei e instituiu uma tirania que durou 13 anos, até ter sido derrubado, amarrado em estacas de madeira e morto numa execução que durou três dias. 

No século XIX foi a vez do império britânico invadir o país e transformá-lo em sua colónia. A conquista britânica ocorreu após diversas batalhas em três guerras, tendo a Birmânia sido anexada às Índias Britânicas até 1937, quando se tornou uma colónia à parte. A colonização britânica trouxe ao país um grande contingente de hindus e chineses e a actual junta reconhece a existência de 135 grupos étnicos no país, que formam o complexo tecido social birmanês A maioria da população é budista e a luta das etnias pelos seus direitos é parte importante da luta democrática no país, como demonstra a longa luta da etnia Karen, que remonta a 1949. Na Birmânia, a maioria dos homens, nalgum momento das suas vidas foi monge ou noviço, ingressando em mosteiros budistas.

Em 1940 foi organizado o Exército pela Independência da Birmânia, comandado por Aung San. 

Em 1942 os japoneses invadiram a Birmânia, ocupando o país por um breve período. O exército de Aung San e o Exercito Nacional de Arakan lutaram ao lado dos japoneses de 1942 a 1944, mas mudaram de lado, apoiando os aliados em 1945.

O final da segunda guerra e o posterior ordenamento mundial permitiu que, em 1947, a Birmânia se tornasse independente, com Aung San encabeçando o governo transitório. Em Julho desse ano Aung San foi assassinado, junto com outros membros do gabinete, por políticos rivais.

A União da Birmânia tornou-se uma república independente, a 4 de Janeiro de 1948, tendo São Shaw Tenhais como presidente e U Nu como primeiro-ministro. O novo regime democrático teve vida curta, durando ate 1962, quando os militares, liderados pelo general NeNe Win, deram um golpe de estado implantando uma ditadura militar, que dura até hoje.

A ditadura militar

Ne Win governou o país por cerca de 26 anos, implantando o “Caminho Birmanês para o Socialismo”, que consistiu num processo de nacionalização e controlo governamental sob toda a esfera económica, social e política. Instituiu o Partido do Programa Socialista da Birmânia, que foi o partido único até 1988. Com a subida dos militares, milhares de hindu-birmaneses e muçulmanos tiveram que fugir do país com medo das perseguições políticas. Em 1978, cerca de 200 mil refugiados inundaram o vizinho Bangladesh e outros milhares têm-se refugiado também na vizinha Tailândia Os militares arrasaram a economia e a Birmânia transformou-se num dos mais pobres países. Estima-se que mais de dois milhões tiveram de abandonar o país nos últimos anos.

A luta democrática

Em 1988, as massas birmanesas saíram as ruas para protestar contra a opressão política e caótica situação económica em várias partes do país. A resposta dos militares foi imediata com a morte de milhares de manifestantes e o golpe de estado liderado pelo general Saw Mang. Foi implantado o State Law and Order Restoration Council, que mudou o nome do país para União de Myanmar.

A junta militar promoveu em 1990 as primeiras eleições em 30 anos. Nessas eleições, a Liga Nacional pela Democracia, partido de Aung San Suu Kyi (filha de Aung San, um dos heróis da independência da Birmânia), venceu 392 de um total de 489 cadeiras, numa vitória inesperada aos militares. Os resultados foram anulados pelos militares, que se recusaram a sair do poder. 

A actual junta militar é comandada pelo general Than Shwe, de 77 anos, que controla o poder desde 1992. Provavelmente, temendo as massas, a junta militar mudou a capital para uma nova cidade construída no meio do nada. A nova capital, inaugurada em 2006, tem o sugestivo nome de Naypyidaw, que significa “cidade dos reis”.

A revolução açafrão

Desde 1989, Aung Sang Suu Kyi estava em prisão domiciliária. O seu crime: lutar pela democracia num país governado por militares. A prisão de Aung Sang Suu Kyi é repudiada pelo mundo inteiro e a transformou-a num dos ícones da luta democrática.
Em Agosto de 2007, novos protestos eclodiram em Myanmar. A causa imediata foi o anúncio da retirada dos subsídios dos combustíveis pela junta militar. A retirada dos subsídios fez com que os preços da gasolina dobrassem repentinamente e o preço do gás para autocarros quintuplicasse, em menos de uma semana. A junta prendeu imediatamente dezenas de manifestantes.

Novos protestos, liderados por monges budistas tomaram as ruas em Setembro e mais uma vez foram violentamente reprimidos. Nesse mesmo mês, os monges fizeram uma manifestação diante da casa de Aung Sang Suu Kyi, na cidade de Rangoon. Foi a primeira vez em quatro anos que foi possível vê-la em público. As jornadas de protestos foram brutalmente reprimidas. O nome Revolução Açafrão deriva da participação dos monges nos protestos. O açafrão é uma das cores das vestimentas dos monges birmaneses.

Ela vai voltar

O poderoso furacão Nargis assolou a Birmânia em 2008, causando cerca de 200 mil mortes. Foi o pior acidente natural da história do país afectando milhões de habitantes. A maneira como os militares conduziram a crise causou comoção na opinião pública do mundo inteiro, já que mesmo com a sua população morrendo a olhos vistos, os militares negavam-se a que outros países enviassem ajuda humanitária. Até hoje, as áreas devastadas pelo Nargis têm a sua entrada restrita pelos militares, que não querem que a imprensa divulgue o estado de caos e penúria em que ainda se encontra a população afectada, parte dos 56 milhões que compõe a população do país.

Em Maio de 2009, um inusitado incidente provocou uma nova condenação de Aung San Suu Kyi. No dia 4 de Maio, o americano John Yettaw, atravessou a nado o lago em cuja margem esta localizada a casa de Suu Kyi, permanecendo lá durante duas noites. Esse episódio levou a prisão de Yettaw e Suu Kyi Suu Kyi foi acusada de violar as condições da sua prisão domiciliária e foi condenada a uma pena suplementar de 18 meses, a ser cumprida na temida prisão Insein, em Rangoon. Mas todos, no mundo inteiro, sabem que essa condenação visa apenas impedir a participação de Suu Kyi nas eleições prometidas pela junta para este ano.

Como podemos ver, o povo da Birmânia tem uma luta de séculos contra a opressão, no interior do seu território e de outros povos. Ainda que seja um duro momento na história, e que a junta militar tenha anunciado a farsa eleitoral de 7 de Novembro, sabemos que a revolução democrática, encarnada na figura de Aung San Suu Kyi, mais dia ou menos dia irá voltar, vestida de açafrão ou mesmo de vermelho.
 

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