Mulheres de Abril: Testemunho de Maria Viegas

23 de maio 2017 - 12:49

Tal como acontecera no Luxemburgo, também em França a minha militância continuava junto dos emigrantes portugueses e não no Quartier Latin onde alguns intelectuais portugueses passavam o tempo a conspirar. Por Maria Viegas.

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Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


A luta pelos direitos dos imigrantes

A Infância

O tempo corria devagar em Moura, no Alentejo. Vivia na estação de comboios e talvez o meu desejo de percorrer mundos tenha vindo de, desde criança, ver as pessoas a chegar e a partir.

O Alentejo é quente no verão, gelado no Inverno e, na década de sessenta, era asfixiante para uma rapariga. Qualquer pequeno ato de rebeldia era logo severamente punido pela família e pelas instâncias de controlo social.

Os jornais diários só chegavam na automotora das dez da noite e o meu pai lia as notícias à luz dos candeeiros da estação de comboios, porque em casa não existia ainda eletricidade.

Penso que a pacatez da vida das famílias da pequena burguesia a que eu pertencia só de vez em quando era interrompida e atrapalhava um quotidiano pachorrento.

Mas, muito cedo percebi que apesar de, nas aulas de religião, se dizer que éramos todos iguais... eu via muitas crianças andarem descalças na rua, mesmo no inverno, e os filhos e filhas dos carregadores da estação não podiam brincar connosco, porque eram malcriados, como dizia a minha mãe.

Foi aos 9 anos, em 1958, na campanha de Humberto Delgado, que, pela primeira vez, tive consciência de que os adultos não estavam sempre de acordo. Amigos do meu pai foram a um comício em Beja e trouxeram uns pins que distribuíam às escondidas…

Na altura tudo aquilo era muito misterioso e ninguém falava abertamente diante das crianças.

Tinha doze anos, quando o Diretor nos deu orientações para sairmos todos/as da escola e irmos para junto do edifício da câmara para uma manifestação de regozijo por termos o “Santa Maria connosco”. Fartamo-nos de gritar, mas eu nunca percebi por que é que “homens maus” tinham roubado o barco e por que razão foi tão importante recuperá-lo.

(Há pouco tempo fui ouvir o Camilo Mortágua à Casa da Achada falar sobre a sua participação no assalto ao barco. Ele contava a história com um certo sentido de humor e eu lembrava-me das representações que tinha feito quando gritava contra eles na praça em Moura).

A Liberdade da Cidade

Aos 16 anos consegui o que mais desejava, vir para Lisboa. Era um sentimento fantástico, andar anónima pelas ruas fruindo uma liberdade recém-conquistada.

A pouco e pouco, fruto do contacto com alguns associativos da Faculdade de Ciências, que ficava perto do Instituto onde frequentava um curso médio de Serviço Social, fui percebendo o que era um país fascista, sem liberdade e, sobretudo, como a guerra colonial era uma guerra injusta. De repente, tudo muda. Os que eu pensava que eram os maus, “os turras”, eram os bons que estavam a lutar para conquistar a sua terra, roubada há mais de quatro séculos. A FRELIMO, o PAIGC e o MPLA entram finalmente no meu vocabulário.

Uma tarde, ao descer o Chiado com uma amiga, encontrámos uma manifestação de estudantes, que gritavam “morte ao fascismo”. Começámos também a gritar, mas, de repente, sinto o bafo de um cão enorme, mesmo ao pé de mim, e um polícia que tinha o bicho pela trela e com o cassetete na mão.

Enfiei-me numa loja. O dono queria fechar a porta, mas os estudantes caíam-lhe de enxurrada no chão. Foi a primeira vez em que me meti em confusões… no lar de freiras, onde vivia, nada disto podia ser comentado às claras. Era dentro de um roupeiro enorme que nos metíamos à noite para ouvir um programa de rádio clandestino “Portugal Livre”, e claro que a aventura dava gozo e risos enormes…

Os estudos correram-me bem e, ao fim de três anos, tinha terminado o curso com excelentes notas. Naquele tempo, as propostas de trabalho eram muitas e ninguém tinha receio de não arranjar logo emprego.

O Primeiro Trabalho

Arranjei um trabalho interessante pago pela Caritas internacional, com verbas da República Federal Alemã.

A Alemanha, ao contrário de muitos países, nunca aceitou a emigração clandestina. Os portugueses que queriam emigrar para a Alemanha tinham que ser escolarizados, não ter mais de 40 anos e inscrever-se previamente no Secretariado de Emigração. Depois de inscritos, eram convocados para frequentar um curso de formação, durante um mês, para facilitar depois a sua integração naquele país.

Não era fácil para uma jovem de vinte anos viver longe dos amigos/as e andar de terra em terra. Mas foi uma riqueza enorme ir conhecer as nossas zonas mais pobres e ver como os homens (nunca participou nenhuma mulher) se esforçavam por aprender algumas palavras de alemão e eu me esforçava por estudar e lhes ensinar rudimentos da legislação de trabalho, do sistema de segurança social e do sistema político da RFA.

Era a Caritas Central em Lisboa que selecionava as freguesias onde se realizariam os cursos, a partir das listas de inscrições que o Secretariado da Emigração lhes enviava.

Quando chegava a uma nova terra, o meu primeiro trabalho era visitar toda a gente, fazia-o geralmente ao fim do dia, para os encontrar em casa. Muitas vezes já estavam a jantar. Lembro-me da luz fraquinha do candeeiro de petróleo, dos vários filhos em redor da mesa, da comida frugal e de um olhar de espanto por alguém de fora lhes vir bater à porta àquela hora.

Salva de prata “Oferta do 1º curso de Alemão, como prova de amizade – Braga 26-7-70 Os emigrantes “

Durante o dia, procurava arranjar alguém que falasse alemão (quase sempre foram padres católicos) e pedia apoio das freguesias para encontrar uma sala central que lhes possibilitasse frequentar a formação à noite. Geralmente escolhia-se uma escola primária. Eu pedia desculpa por estarem em carteiras de crianças e eles riam-se e diziam que era bom voltar à escola.

Lembro-me de uma noite em Trás os Montes, perto de Vila Pouca de Aguiar, estar sentada à porta da escola primária e ver luzinhas na serra, que vinham de vários pontos e que avançavam na minha direção. Todos traziam um bordão para os proteger e um candeeiro para lhes alumiar o caminho. Foi um momento mágico. Aqueles homens, depois de um dia de trabalho, vinham todas as noites à escola (como eles lhe chamavam). Todos tinham uma esperança enorme de que a emigração lhes trouxesse uma melhor vida para eles e para os filhos.

Ao Encontro da Democracia

Passados uns tempos, também eu fiquei cheia de vontade de sair daqui, de ir respirar novos ares e acabei por arranjar um trabalho no Luxemburgo. Fui abrir o Service Social Portugais, que pertencia ao Ministère de la Solidarité Sociale e correspondia ao desejo da então Ministra - ter técnicos de Serviço Social da mesma nacionalidade das comunidades imigrantes mais numerosas.

Quando cheguei, em novembro de 1970, viviam no Luxemburgo cerca de 800 portugueses. A emigração clandestina, a salto, estava ao rubro. Verdadeiras máfias, os passadores, como eram chamados, recrutavam homens nas aldeias e, prometendo eldorados, levavam a que toda a família se empenhasse para lhes pagar a passagem. Era um verdadeiro sistema de transportes clandestino com várias carrinhas (tipo Ford Transit de agora).

À distância de todos estes anos, dou-me conta de que deveria haver muita corrupção nas guardas fronteiriças para permitirem que milhares e milhares de portugueses fossem a salto para França, para o Luxemburgo e para a Bélgica.

Passavam as fronteiras de Espanha e de França a pé. E apanhavam novamente o transporte uns quilómetros à frente. Chegavam exaustos. Muitas vezes, os passadores deixavam-nos à porta do meu serviço e quando eu chegava, às oito da manhã, já eles lá estavam, encostados uns aos outros, tiritando de frio. Só tinham um desejo, começar a trabalhar o mais depressa possível. Sabiam que a mulher e os filhos em Portugal tinham ficado sem nada e havia ainda a dívida da viagem para pagar. Não tinham tempo para descansar. Algumas vezes pediam-me para lhes escrever uma direção no envelope e eles desenhavam um sol na folha de papel. Era o sinal de que tinham chegado bem. Como vivíamos os “trinta anos gloriosos” do pós-guerra, havia trabalho para todos, na construção civil, na indústria e na agricultura.

O Luxemburgo tinha já uma sociedade envelhecida, crescia demograficamente só à custa dos filhos da imigração. Logo a seguir à guerra, vieram milhares de italianos, depois os espanhóis e, por último, os portugueses. O facto de sentirem que a lista telefónica estava cada vez mais cheia de nomes estrangeiros, levava os luxemburgueses a terem posições xenófobas, quase constantes. 

Cartaz afixado numa porta de um café em Diekirch e publicado no jornal Luxemburguês “Republicain Lorrain”, em 11 de Setembro de 1971.

Quando o Ministério queria abrir um centro de alojamento (foyer) para imigrantes num bairro da cidade, os residentes punham logo a circular abaixo assinados e faziam imensa pressão junto das autoridades.

Algumas vezes fui fazer reuniões com os habitantes desses bairros para lhes tentar mostrar que os imigrantes portugueses eram gente pacífica, que em nada iriam alterar a vida do bairro. Numa dessas reuniões, um senhor perguntou-me se havíamos pensado em trazer prostitutas portuguesas… arregalei os olhos e só lhe pude responder que me parecia que as prostitutas luxemburguesas não eram tão racistas como outros luxemburgueses.

Era nos bairros mais pobres que, proprietários muitas vezes sem escrúpulos, alugavam camas em foyers onde já tinham vivido os italianos e os espanhóis.  As condições de alojamento eram horríveis, mas o importante era que fosse barato para poderem enviar o máximo de dinheiro para a família, em Portugal.

Foyer em Rollingergrund na periferia da cidade de Luxemburgo onde habitavam, em condições miseráveis, muitos portugueses na década de 70.

Os que não conseguiam arranjar trabalho na indústria, iam trabalhar para a agricultura. Muitas vezes ia visitá-los nas quintas onde trabalhavam. Os agricultores luxemburgueses não falavam francês e, como eram pequenas quintas, muitas vezes recrutavam apenas um trabalhador. Eram semanas a fio sem comunicar com ninguém. O patrão, uma vez por mês, levava-o à cidade para poder ir mandar o dinheiro para a mulher. Com sorte, talvez pudesse ir beber uma cerveja com um amigo, se o patrão tivesse alguma coisa que fazer na cidade.

Quando ia visitar algum destes trabalhadores, às vezes ao fim do dia, percebia que eles ficavam com a voz embargada no momento de se despedirem de mim. Eu era portuguesa e era como se fosse um bocadinho da sua vida passada que lhes viesse ter às mãos. Só tinha pena de que o meu imenso trabalho me impedisse de poder fazer mais visitas.

Embora já soubesse que o Serviço Social era um mero paliativo para a resolução dos problemas, sentia que eu era das poucas pessoas portuguesas que podia “exigir” melhores condições para os meus compatriotas. As atitudes discriminatórias que me relatavam e que eu vivenciava deixavam-me muito revoltada. Sentia-me imensamente responsável e acreditava que, como o Luxemburgo era um país democrático, eu ia conseguir vencer a luta; só aos vinte anos se pode pensar assim!

Rapidamente organizei um programa de rádio na RTL a que pus o nome de “Despertar”. O consulado ficou furioso quando soube que me tinham dado a mim essa responsabilidade. O programa para a comunidade espanhola vinha diretamente em cassetes do Madrid de Franco, não fosse o diabo tecê-las…

Ao fim de alguns meses a viver em Luxemburgo, conheci um português que vivia na Bélgica que me convidou para ir a um encontro em Bruxelas da CMT, uma confederação internacional de sindicatos.

Foi um fim de semana impressionante. Eram centenas de representantes, muitos refugiados dos vários países que viviam em ditadura, tanto da Europa como da América Latina. Foi um abrir de olhos, compreendi como o capitalismo era um sistema injusto e fabricava as injustiças que se abatiam sobre os mais pobres. Na altura, calculava-se que havia oito milhões de imigrantes nos países mais desenvolvidos. Oito milhões de deserdados, longe dos proletários do seu próprio país e não aceites até pelos da mesma classe do país de acolhimento. Nunca mais fui a mesma!

O contacto com aqueles camaradas de Bruxelas foi uma luz ao fundo do túnel. De repente, as minhas angústias sobre as injustiças que vivíamos no Luxemburgo começaram também a ter uma forte expressão política.

No programa Despertar, que fazia aos Domingos de manhã, comecei a integrar além das informações úteis, pequenas notícias de carácter político.

Naquele ano, o primeiro de maio calhou a um Domingo. Claro que aproveitei logo a ocasião para falar na rádio das comemorações desse dia e explicar por que era um dia de luta. Terminei o texto apelando à sindicalização para se sentirem mais unidos e mais protegidos.

Quando cheguei, na segunda feira, ao serviço, tinha o meu chefe à minha espera. Disse-me que tinha sido informado do que eu dissera na rádio e que, a partir dali, eu teria que entregar todos os textos em francês antes de gravar. Ripostei que pensava que nos países democráticos não havia censura…

De repente, tudo se precipitou e as minhas últimas semanas naquele país foram, no mínimo, tumultuosas.

Em Março de 1972, o governo acionou a convenção luso-luxemburguesa de Maio de 1970 e fechou a emigração clandestina.

Como responsável do Service Social Portugais, fui chamada ao Comissário da Imigração M. Barnich (que tinha sido um militante da resistência na segunda guerra mundial). Disse-me que, a partir daquele momento, eu teria que telefonar para a polícia sempre que, no meu serviço, aparecessem portugueses sem papéis, para serem todos postos na fronteira. Respirei fundo e, tremendo por dentro, repeti a ordem que ele me tinha dado – C`est ça? – Ele anuiu. Então disse-lhe que iria mudar a placa do serviço e em vez de Service Sociale Portugais  poria Gestapo Portugaise. Ele ficou branco, certamente relembrando todas as histórias de resistente de guerra que me tinha contado.

Também, naqueles dias, um amigo que trabalhava no Ministério dos Negócios Estrangeiros  me confidenciou que Portugal teria feito um acordo “secreto” com o Luxemburgo; Portugal não enviava negros, na altura eram os Cabo-Verdianos que chegavam a Portugal para substituir os Portugueses que tinham partido, e o Luxemburgo não facilitava as autorizações de residência aos refratários e aos desertores da guerra colonial. Com esta informação, percebi por que as cartas de chamada para as famílias dos cabo-verdianos, que eu ajudava a preencher, nunca tinham tido resposta. Os Luxemburgueses não queriam negros nas ruas nem nas escolas…

Sentia-me acossada, denunciei o acordo num artigo, num jornal. O meu amigo volta a encontrar-se comigo e diz-me que eu não renovei o “Recepissé" (autorização de residência) e que, com este pretexto, me podiam facilmente pôr na fronteira. Aconselha-me a partir rapidamente.

Arranjo tudo e parto para Paris. Gravo o último programa antes de partir e despeço-me dos milhares de portugueses/as a quem tinha dedicado quase inteiramente a minha vida naqueles dois anos.

O sistema democrático que tanto me tinha maravilhado nos primeiros tempos, mostra-me o seu lado mais negro. Decididamente, a partir dali eu queria era a revolução!

Foi muito difícil romper com o Luxemburgo. Além do meu trabalho, tinha criado um grupo de teatro, um grupo de voluntários que visitava os doentes e os reclusos ao fim de semana e participava ainda no Jornal Contacto da primeira Associação de amizade Luso-Luxemburguesa  que existia.

Foto publicada no jornal “Contacto”, em 1971.  Cena da peça de teatro “Retransmissão” sobre o impacto da imigração na vida das famílias. Todos os atores e atrizes faziam teatro pela primeira vez. O grupo representou em várias cidades do país.

Paris - A Cidade Grande

Para quem vinha do Luxemburgo, Paris era uma cidade enorme, multicultural, com uma vida cultural intensa. Estavam sempre mil coisas a acontecer. Embora ainda fazendo o luto pelo que tinha deixado para trás, sentia que uma outra fase de vida se abria cheia de novas oportunidades e aventuras.

Arranjei logo trabalho como trabalhadora social no centro psiquiátrico Françoise Minkowska na consulta para portugueses e espanhóis não francofones.

Matriculei-me em Sociologia na Universidade de Vincennes, criada pós-Maio de 68, para responder às consequências das lutas dos estudantes. Vincennes tinha a ambição de ser uma fonte de inovação, aberta aos trabalhadores mesmo que não tivessem o secundário completo, introduziu novas disciplinas e dava aos estudantes uma liberdade enorme nos seus percursos formativos. Vincennes pululava de revolucionários vindos dos vários cantos do mundo, muitos refugiados políticos da América Latina, de África e da Europa do sul.

Tudo era completamente diferente do que eu conhecia. Tratavam-se os professores/as por tu e as aulas, às vezes, pareciam comícios.

Tinha tanto desejo de aprender que tinha dificuldade em selecionar as cadeiras a frequentar. Fiz teatro, cinema, psicanálise como cadeiras de opção. Os departamentos eram de diferentes opções ideológicas… mas estávamos na época em que o maoismo e a revolução cultural estavam no centro da luta.

Por militância, ia muitas vezes à noite às aulas do Alfredo Margarido sobre a História de África. O anfiteatro estava sempre cheio, a escravatura, o colonialismo era tudo passado a pente fino e os estudantes africanos, oriundos de vários países, faziam intervenções que denotavam muita revolta.

Também, muitas vezes, estavam presentes estudantes do PAICG, da Frelimo ou do MPLA, a guerra colonial era tema recorrente e percebíamos claramente que a liberdade deles e a nossa só viria com o fim da ditadura em Portugal.

Também em França, a minha militância continuava junto dos emigrantes portugueses e não no Quartier Latin onde muitos intelectuais portugueses passavam o tempo a conspirar.

Ajudei a fundar o “Jornal Português”, um jornal que tinha como missão apoiar a politização dos/as emigrantes em França. Não estava vinculado a nenhum partido e era escrito e distribuído por um grupo reduzido de pessoas. A diferença entre este jornal e outros jornais como “O Salto” do PCP-ML era que escrevíamos artigos sobre os problemas concretos da comunidade, e, paralelamente, artigos de denúncia sobre a guerra colonial, sobre os presos políticos, a falta de liberdade, as dificuldades da emigração clandestina, etc.

Ao Sábado e ao Domingo, em vez de ficar na cama de manhã, ia vender os jornais para os mercados onde havia mais portugueses.

Vender o Jornal Português nos Mercados

O meu ponto preferido era o “marché  aux puces” (Feira da Ladra de Paris), ao lado de uma roulotte que vendia cassetes piratas de música portuguesa. Era ao som das suas músicas que eu gritava “Jornal Português” e tentava meter conversa com cada potencial comprador/a. Uma das nossas lutas era convencer os pais e as mães para que os filhos não viessem fazer a tropa a Portugal e ir para a guerra colonial. Para nós era estranho como é que gente a quem a “pátria” tinha dado tão pouco, se sentia na obrigação de mandar os filhos defendê-la… Como os anos de fascismo e a pouca instrução levavam a tão pouca conscientização dos seus direitos.

Uma vez fizemos uma manchete na primeira página “Guiné Bissau declara independência a 24 de Setembro de 1973”- Eu estava a “apregoar” a manchete quando um homem vem a correr na minha direção gritando furiosamente : “Mentirosos! Traidores! Tenho lá um filho a defender aquela terra!” ; nestas situações era necessária muita calma e tentar, através de palavras serenas, demonstrar que nós lutávamos por um país melhor, mais livre e mais justo, e tentar puxá-los para o nosso lado.

Encontro reivindicativo de várias associações de imigrantes em Paris.

Muitas vezes também organizávamos sessões, em bairros onde moravam muitos portugueses, onde se misturava a música, a poesia e o debate sobre a situação de Portugal e a luta pelos direitos dos imigrantes.

Participávamos sempre nas manifestações importantes com a palavra de ordem: - Travailleurs français, travailleurs étrangers, mêmes luttes, même combat!

O Direito Ao Corpo

Também falava muito com as mulheres. Lembro-me que publiquei um artigo sobre os vários métodos contracetivos, que também deu azo a muitas conversas. Muitas não conheciam a pílula, que em França já era usual. Por vezes, queixavam-se porque os maridos não queriam que elas ficassem “livres”.

Quando ficavam grávidas sem o querer, metiam-se no comboio para vir abortar com a senhora que fazia os desmanchos na sua aldeia. Voltavam para Paris logo de seguida e contaram-me histórias dramáticas, hemorragias enormes eram frequentes durante a viagem de regresso que, de comboio, durava cerca de 24 horas.

Foi por conhecer essas histórias que, em 1973, vim a militar no MLAC -Mouvement pour la liberté de l’avortement et de la contraception. Este movimento lançou um manifesto, redigido por Simone Beauvoir, em que 343 mulheres declaravam que tinham abortado.

O MLAC teve um papel decisivo na luta a favor da liberalização do aborto. Tinham um método inovador por aspiração, método Karman, só realizável nas primeiras semanas de gestação, mas seguro para a saúde da mulher.

Ajudei ainda algumas mulheres portuguesas e espanholas. Depois do aborto, mantínhamos o contacto para as empoderar para a escolha do método contracetivo e para o direito que tinham sobre o seu corpo. Procurava consciencializá-las de que o médico, que lhes tinha feito o aborto, arriscava uma pena de prisão e ninguém recebia um tostão por todo aquele trabalho. Algumas faziam-me muitas perguntas e eu percebia que era a primeira vez que elas contactavam com uma “causa” e compreendiam que havia pessoas que lutavam para melhorar a vida de outras pessoas, só porque queriam um mundo melhor! Ainda consegui que algumas ficassem ativas nos seus bairros a ajudar a informar as outras patrícias e a organizar sessões de planeamento familiar.

O Trabalho Sindical

Durante muitos anos, os sindicatos franceses, como veio a acontecer com os portugueses, não integravam nas suas reivindicações a luta dos direitos dos trabalhadores imigrantes.

A Confederation française democratique du travail - CFDT, começou a querer fazer alguma intervenção neste campo e criou o Grupo Português CFDT. As duas áreas em que participei foi na denúncia do insucesso escolar das crianças portuguesas e no sector das empregadas domésticas.

Traduzimos o contrato de trabalho e outra informação relevante e passámos a organizar reuniões com grupos de empregadas domésticas portuguesas para as ouvir falar do seu quotidiano e apoiá-las na sua luta por melhores condições de trabalho e de vida. 

Era gratificante ver como iam ficando mais conscientizadas e ajudando as outras que vinham ao grupo pela primeira vez. Para mim, sempre foi esse o caminho para a tomada de consciência de classe… é um processo lento, mas quando bem feito fica para a vida!

Brincando com crianças portuguesas na Cité de Transit de Garges le Gonesse, arredores de Paris, em 1974.

Muito ficou por dizer… foram anos intensos em que a militância, o trabalho e o estudo me obrigavam a ter a agenda sempre cheia, com as manhãs, as tardes e as noites preenchidas.

A Liberdade chegou!

No dia 25 de Abril de 74, tinha passado um dia muito triste a tentar apoiar uma portuguesa que trabalhava como porteira. Como não podia ter os filhos com ela, estava disposta a interná-los num organismo, de que já não me recordo o nome…

Cheguei a casa ao final da tarde e um amigo abraça-me gritando que tinha havido um golpe em Portugal. Spínola era um nome que não me dava muita confiança… mas saí porta fora rumo ao Quartier Latin, onde sabia que ia encontrar o grupo de camaradas.

Consegui logo organizar-me para vir participar na manifestação do 1º de Maio em Lisboa. O avião vinha cheio de refugiados que há muitos anos não vinham a Portugal. Quando o comandante avisou que tínhamos entrado em Portugal, começámos todos a cantar a internacional. Muitos/as choravam e toda a gente se abraçava!

Em 1975, quando regresso definitivamente a Portugal, fui trabalhar para o Centro de Reforma Agrária de Alcácer do Sal. Hoje tenho consciência que aí vivi momentos irrepetíveis. Homens e mulheres de uma força enorme, que, mesmo analfabetos, nos davam lições de sabedoria.

Manifestação em Alcácer do Sal, em 1975, quando os latifundiários puseram uma bomba no Centro de Reforma Agrária e os/as trabalhadores/as se mobilizaram numa manifestação de repúdio.

Depois de ser obrigada a sair da Reforma Agrária tive a sorte de ir trabalhar para o Serviço de Apoio Ambulatório local - SAAL em Oeiras. Era um projeto inovador de realojamento em que os moradores das barracas, organizados em associações de moradores, tinham um papel ativo nas decisões em todo o processo de construção dos novos bairros.

Considero que ter trabalhado na Reforma Agrária e no processo SAAL, sem dúvida as maiores conquistas do período revolucionário, foi para mim muito enriquecedor!

A ilusão e a desilusão ideológica

Ao chegar a Portugal acabo por sentir a necessidade de integrar um partido para participar na revolução melhor enquadrada. Aproximo-me do MES mas acabo por me decidir na adesão à UDP, depois ao PCP-R. Tinha como tarefa militante pertencer à redação do jornal “A Voz do Povo”, onde meia dúzia de pessoas, muitas com os seus trabalhos durante o dia, vinham à noite para a sede na Rua  Bernardo Lima fazer o jornal, que saía regularmente todas as semanas.

Recordo ainda hoje a emoção sentida num comício no Campo Pequeno, organizado pelo PCP-R. A Praça estava repleta e as várias delegações iam entrando na arena com as suas faixas. Quando o pequeno grupo do jornal entrou ouvimos aplausos enormes de todos os lados das bancadas…  ficámos maravilhados por perceber como os/as camaradas gostavam do nosso trabalho.

Em 1978 fui para a Albânia fazer um curso de marxismo leninismo integrada num grupo do PC do B, porque na altura estava casada com um brasileiro e o partido queria recrutar militantes que estivessem no estrangeiro para voltar ao Brasil clandestinamente.

Ao fim de uma semana de estar na Albânia e de participar nos vários “rituais” dos dirigentes do partido dos trabalhadores da Albânia - PTA, decidi romper com aquela ideologia. Tudo na Albânia cheirava a mofo, a passado. Num congresso da juventude do PTA a que assisti, bateram-se palmas durante 30 minutos a Enver Hoxha quando ele entrou no palco para fazer uma intervenção.

Não era aquilo que eu queria como modelo de sociedade.

Voltei para Portugal e foram uns tempos muito difíceis porque me tive que reorganizar por dentro. Perder um projeto coletivo de vida e ficar apenas com o nosso “projetinho” individual é muito triste.

Nunca mais integrei nenhum outro partido, mas ainda hoje me considero uma pessoa empenhada em várias causas. Continuo ligada à defesa dos direitos das mulheres e dos migrantes.

Os ventos neoliberais que se implantaram na Europa trouxeram ainda mais desigualdade. O projeto da União Europeia que podia ser a Europa dos cidadãos e das cidadãs está irremediavelmente transformado na Europa do capital. É triste terminar este depoimento dizendo que vejo a situação atual do mundo com muita preocupação!


*Maria Viegas nasceu em 1949, na Beirã, Portalegre. Viveu até aos 16 anos em Moura. Em 1965, veio estudar para Lisboa e, depois de concluir o curso de Auxiliar Social em 1970, parte para trabalhar no Grão-Ducado de Luxemburgo.

1972 – Vai viver para Paris e frequenta a Universidade de Vincennes, no curso de Sociologia, que interrompe para voltar a Portugal em 1975, vindo a concluí-lo em 1980. Em 1995, volta à Universidade e faz uma pós-graduação no ISCTE em Políticas e gestão de recursos humanos.

Na sua atividade profissional em Portugal ligada à administração publica, trabalhou em vários organismos. No IEFP, apoiou a criação da Revista Formar – revista dos formadores - de que foi coordenadora até 1995. Participou em vários projetos Europeus ligados à igualdade de género e à construção de uma sociedade intercultural.

Como formadora de formadores, desenvolve várias ações de formação em Cabo verde, Angola e Moçambique.

Paralelamente, desenvolve atividades de intervenção cívica em várias associações, nomeadamente na fundação da Associação Nacional de Direito ao Crédito, na Associação as Idades dos Sabores e no Grupo Cultural Atrium. Atualmente, é presidente da AG da UMAR.

Aposentada da sua atividade profissional, continua no ativo na luta pela construção de uma sociedade mais justa e mais paritária!