Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.
Os estudantes tinham de gritar bem alto a sua revolta
Em 1969, no dia 17 de abril, numa sala do novo edifício das Matemáticas da Universidade de Coimbra, em plena inauguração, teve início o movimento de contestação que conduziu ao “luto académico” e à greve aos exames.
Eu tinha, então, 19 anos e era uma rapariguinha de Braga, a frequentar o 2º ano de Direito. Com algumas amigas de Ciências, fui à inauguração do edifício das Matemáticas para protestarmos. Queríamos protestar contra a falta de liberdade de expressão, o clima de repressão sobre os estudantes, o ensino universitário desfasado da realidade, demasiado académico e autoritário, entre outras coisas.
Estava já inscrita na Associação Académica, onde, graças à chamada “abertura marcelista”, houvera recentemente eleições livres e uma Direção legitimada pelo voto dos estudantes. Estávamos, portanto, a apoiar a Associação Académica, que pretendia contestar, presencialmente, enfrentando o Ministro da Educação (Hermano Saraiva) e o Presidente da República (Américo Tomás), a ausência de liberdades individuais, de autonomia da Universidade, e o próprio sistema de ensino praticado.
Inscrevera-me na Secção de Fotografia, pois tínhamos de nos inscrever em qualquer coisa, mas nunca aprendi lá nada de fotografia… Aprendi, sim, a pensar e a participar ativamente na vida coletiva, a lutar por direitos que nos eram negados. A nós e a todos os portugueses em geral, sujeitos a um regime autoritário e repressivo, que dava continuidade às diretrizes salazaristas.
Sentíamo-nos sufocados, cercados, amordaçados! Os estudantes tinham de gritar bem alto a sua revolta, lançar uma pedrada no charco, agitar as águas…

Tudo começou aí, seguindo-se as muitas assembleias de estudantes (assembleias magnas e por cursos), as manifestações pacíficas e as “operações de charme” para conquistar o apoio popular, a distribuição (clandestina) de panfletos, a greve aos exames, os piquetes de greve, a organização de listas de fura-greves, tudo “superiormente” acompanhado de muita repressão e violência policial, a prisão dos chamados “cabecilhas”, a expulsão de muitos alunos e a sua incorporação compulsiva no Exército e subsequente envio para o teatro de guerra no Ultramar, como então se designavam as colónias.
Ao dar o testemunho de uma comum jovem estudante, pretendo mostrar como as mulheres, as jovens universitárias dos anos sessenta, muitas delas sem formação política nem ligações familiares à chamada oposição democrática, como era o meu caso, se empenharam ativamente na luta estudantil, que o mesmo é dizer, na luta pelas liberdades e pela democracia. Corajosamente, pois a repressão era brutal e no próprio seio familiar, na maioria dos casos, não havia o mínimo apoio ou sequer tolerância!
Tanto mais que, no caso das raparigas, o envolvimento no movimento associativo e em lutas estudantis era socialmente mal visto, como um comportamento leviano, impróprio de meninas de família, de boas católicas…
Eu, uma menina de Braga, “cidade dos arcebispos”, com militância católica na JEC (Juventude Escolar Católica), considero que fui muito arrojada ao aderir, de alma e coração, ao movimento estudantil: participando nas assembleias magnas de estudantes e nas manifestações, na distribuição de panfletos, na organização de listas dos estudantes “anti-greve”, procurando dissuadir colegas de furar a greve, fazendo piquetes de greve, enfrentando as forças policiais que nos perseguiam, armadas até aos dentes e munidas de pastores alemães ameaçadores.
E acabando por ser expulsa da Casa Universitária da Mocidade Portuguesa Feminina onde estava hospedada, chumbando o ano devido à greve aos exames, e perdendo a bolsa de estudo que me permitia frequentar a Universidade sem pesar no orçamento familiar.
Como consequência de tudo isto, e em resumo, passei a aluna “voluntária”, fui dar aulas e assim terminei o curso, estudando e trabalhando. E foi assim, nas lutas estudantis, que me “formei” como cidadã, de esquerda, uma marca que se me colou, indelevelmente, até hoje.
Os ideais que norteavam a luta dos estudantes correspondiam, então, aos desejos íntimos de muitos portugueses: alcançar as liberdades fundamentais, o direito a viver em paz, pondo–se termo à guerra colonial e alcançando-se o direito de escolher livremente os representantes do povo, o fim da repressão, em suma, o fim da ditadura!
Na crise académica de 1969, as mulheres participaram massivamente, tanto nas assembleias de estudantes como nas manifestações, saindo da “concha” a que estavam circunscritas. Acho que sem elas o movimento estudantil não teria adquirido a dimensão que veio a ter. Estou em crer que as chamadas crises académicas, as lutas estudantis, não só fizeram emergir as mulheres para a ribalta da participação cívica e política, como também contribuíram decisivamente para a formação de uma consciência social que permitiu o evoluir imediato da revolta militar do 25 de abril de 1974 para uma poderosa revolução popular.

Com efeito, chegados ao início de 1974, vivia-se em Portugal um clima de verdadeira asfixia, com muitas famílias destroçadas pelas consequências da guerra nas colónias portuguesas de Angola, Moçambique e Guiné, num país que não oferecia horizontes de esperança a ninguém e obrigava muitos a emigrar para fugir à miséria.
Daí que possamos considerar a revolução uma inevitabilidade perante o “apodrecimento” do país, sujeito a um esforço financeiro excessivo para alimentar a máquina de guerra e impedindo o desenvolvimento económico tão necessário.
Quando, na primeira aula da manhã, no Liceu D. Maria II, em Braga, onde dava aulas como professora provisória, uma funcionária auxiliar entrou na minha sala para dizer que tinha havido uma revolução em Lisboa e as aulas estavam suspensas, foi uma explosão de alegria, embora com algum receio sobre como as coisas iriam evoluir. Era um liceu feminino, onde eu tinha sido aluna há bem pouco tempo, e as alunas ficaram verdadeiramente alvoroçadas. Os pais começaram a acorrer ao liceu, para as levarem para casa, assustados.
Eu estava prestes a terminar o curso, em Coimbra, como “voluntária”, faltando-me apenas três “cadeiras” para acabar a licenciatura, o que veio a acontecer pouco tempo depois.
E deu-se então, nos dias e meses que se seguiram, uma revolução nas escolas, também, com resistências de muitos e o entusiasmo de muitos mais, para se construir uma nova forma de funcionar, em democracia. Foi um processo muito participado, por professores, sobretudo os mais novos, e pelos alunos, agora sujeitos ativos dessas transformações.
Considero-me privilegiada por ter participado ativamente no processo de democratização, naquela escola e noutra onde fui colocada, em 1975/76, tendo feito parte, a partir de 1976/77, do órgão de gestão, então chamado Conselho Diretivo, que substituiu as anteriores “Comissões de Gestão”. Era muito jovem, mas creio que cumpri o papel adequadamente, com muita dedicação e alguma competência. Tinha sido mãe, em finais de 1976, e lá ia conciliando, o melhor possível, estes dois papeis, ambos muito gratificantes.
*Maria Etelvina Sá - Jurista de formação, aposentada da Administração Pública. Casada, mãe e avó. Com militância política como independente nas listas da CDU, sucessivamente, desde as primeiras eleições pós 25 de abril, e em candidatura independente nas últimas eleições autárquicas. Ativista em associações de defesa do ambiente, cultura e património. Voluntária numa instituição de luta contra o cancro.