Mulheres de Abril: Testemunho de Maria Augusta Seixas (Magú)

30 de abril 2019 - 16:55

Em menos de dois anos, eu tinha passado de caloira despreocupada, a activista associativa e política. Como eu, dezenas e dezenas de outros jovens. Em grande parte, fora a política de repressão do governo fascista que nos empurrara para a militância política. Por Maria Augusta Anselmo Seixas (Magú).

PARTILHAR
Maria Augusta Seixas ("A Passionária", como lhe chamou o reitor Paulo Cunha) na Casa dos Desertores. Bélgica, 1967.

Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


Ai vida

Onde nasci e vivi, os meus pais, a minha infância

Nasci no dia 1 de Dezembro 1943 por volta das cinco da tarde na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa. Minha mãe muitas vezes me contou que o parto foi terrível. A minha cabeça ficara encravada e não saía. Tive de ser tirada a ferros e fiquei com marcas na testa e no peito. Quando contava esta cena, minha mãe acrescentava que, até aos meus três anos, eu não sorria, era muito séria, não gostava que se aproximassem de mim, olhava com muita atenção tudo e todos, sempre ao colo dela. Depois passei a ser muito alegre, comunicativa, ria o tempo todo, aproximava-me das pessoas, metia conversa com elas. Na praça todas as vendedeiras me conheciam. Brincava o dia inteiro. Tudo me entretinha.

Maria Augusta Seixas (Magú) com 4/5 anos.

Vivi sempre no Bairro da Madre de Deus até me casar. Era o bairro do funcionalismo público da altura, com uma ou outra excepção, éramos todos mais ou menos remediados. Adorei viver no bairro, tinha lá os meus amigos de brincadeira e voltava a ele sempre com alegria já que minha mãe, professora primária, leccionava em escolas na zona de Alenquer; estávamos muito tempo fora, quer no tempo de aulas, quer nas férias. Lembro-me de estarmos na paragem do autocarro, no Bairro, madrugada gélida e ela me afagar a cabeça, que eu levava protegida do frio por lindos barretes de lã, com pompons, tricotados por ela. Depois apanhávamos o combóio e enquanto eu dormitava, ela lia ou, muitas vezes, conversava com o escritor Alves Redol, conhecido dela e que apanhava o mesmo comboio. Todos os meses ela comprava um livro e trocava livros com as irmãs.

Casa no Bairro Madre Deus.

A minha avó materna também era professora. Família criada nos ideais da República, para quem a qualificação das mulheres era essencial. O pai delas, o meu avô Joaquim Anselmo, morrera muito novo.

Avô materno de Maria Augusta Seixas (Magú).

Era um homem de muito saber e talento, bibliógrafo, trabalhou na Biblioteca Nacional onde chegou a ser director interino, tendo deixado obra publicada. Quando sobreveio o cancro estava a escrever uma História de Portugal. Era Maçon. Há uns anos atrás foi homenageado na Biblioteca Nacional.  

As minhas tias eram todas mulheres de esquerda, republicanas. Quando da morte de meu Avô, foi a Avó que criou as filhas só com o seu ordenado. Contavam que uma das primeiras coisas a ser vendida lá em casa foi o piano. Minha mãe desenhava muito bem. Foi o meu irmão quem lhe herdou o jeito; desenhava e desenha ainda, maravilhosamente. Assim como o meu filho Sérgio. Mas nenhum deles seguiu essa via. Meu irmão é engenheiro de máquinas e o Sérgio de química.

Posso dizer que aprendi a ler sem ser ensinada. O Fernando era mais velho do que eu três anos e eu ouvia-o em casa, à noite, a repetir a leitura, a tabuada, com a mãe. Também aprendia nas aulas dela em que ensinava as quatro classes. Assim fui sabendo ler e escrever. Minha mãe mesmo quando eu ainda não tinha idade para estar na escola, levava me todos os dias com ela e sentava-me ao lado de uma aluna, e eu ali ficava com um caderno de desenhos à frente e lápis de côr. Depois veio o caderno de linhas e ia olhando para a menina do lado e desenhando as letras. Mais tarde escrevia histórias com desenhos de pessoas, gatos e cães, burros, casamentos e o catavento na igreja… Fiz a 4ª classe no Ateneu da Madre de Deus, a escola do Bairro. Pela 1ª vez tinha aulas exactamente como o resto da classe, o que era uma novidade para mim. Foi bom, eu era igual às outras meninas, deixara de ser a filha da professora que as outras respeitavam. Logo numa das primeiras aulas, fiz uma redacção, um texto simplicíssimo, e ganhei um prémio. Fui com a professora (a mãe do Carlos Pinto Coelho, soube mais tarde) ao quiosque da esquina onde comprávamos pastilhas elásticas e cromos, escolher a prenda. E escolhi uma galinha com os pintainhos, tudo em plástico - que contente eu fiquei. Fiz lá amigas para a vida inteira, a Graça Cabeçadas foi a minha melhor amiga, continuámos juntas no Filipa, mas um dia ela foi para Moçambique. Mais tarde reencontrámo-nos nas greves universitárias, eu em Letras, ela em Ciências. Fizemos o exílio eu em Bruxelas, ela em Londres. Temos exactamente a mesma idade. Hoje em dia, vamos ver exposições, concertos, jazz, óperas, filmes, experimentamos novos restaurantes em Lisboa, passeamos, vamos à piscina. Até fomos ao Irão juntas…

Voltando aos meus pais.

Meu pai era rádio montador de 1ª da Aeronáutica Civil. Montava e assegurava o funcionamento e manutenção de todo o equipamento rádio que nos aeroportos/bases militares e estabelecia a ligação com os aviões: Cabo Verde, ilha do Sal, Guiné, Angola. Foi ele quem montou a nossa rádio e gira-discos num móvel por ele desenhado. Montara uma pequena carpintaria e oficina eléctrica na cave da nossa casa. Fez me uma caixa lindíssima que ainda hoje guardo, com uma cor única devido à madeira da Guiné que utilizou. Lá em casa havia também um pequeno candeeiro Arte Nova com o corpo de uma jovem nua, em inox, em contra luz, muito bonito, feito por ele. Juntos desenhámos a estante e a secretária do meu quarto, e foi ele também que desenhou a minha cama e a de meu irmão que durante um tempo funcionaram como beliches e depois se desmontaram e cada um ficou com a sua, no seu quarto. Tudo de linhas muito modernas, ainda hoje. Tanto meu pai como minha mãe foram pessoas criativas.

Pais de Maria Augusta Seixas (Magú).

Meu pai foi sempre assinante do “Republica”. Meu avô paterno integrara o grupo que implantara a República, em Castro Daire. Era proprietário de terras, tinha uma quinta, a Quinta dos Linhares de Cima, em Castro Daire. Viviam bem.

Excerto do artigo "Um passeio a Castro verde", publicado em 1952, que refere o avô de Maria Augusta Seixas (Magú), Manuel Seixas.

Nas fotografias da altura se pode ver o grupo de jovens amigos de meu pai e tias Celeste e Zezinha, os carros do grupo em que davam grandes passeatas.

Tia Zézinha, avô paterno, tio Fernando e tia Celestinha na Quinta dos Linhares de Cima, em Castro Daire.

Num dos passeios da família e amigos. No canto esquerdo, o avô, pai e tio Mário (de chapéu e bigode).

Meu pai tinha uma noiva mais ou menos “destinada”, mas veio para Lisboa fazer a tropa na Marinha e apaixonou-se pela minha mãe, foi um casamento de amor. Meu tio-avô, médico, integrou os quadros do jornal republicano do Porto “A Montanha” e foi deputado às Constituintes que redigiram a Constituição Republicana. Quando faleceu, centenas de pessoas vieram ao enterro, homenagear o republicano íntegro e agradecer ao médico que tantos deles tratara, sem receber qualquer pagamento. E fazia crítica de pintura!

Artigo sobre a morte de António Ribeiro Seixas, tio-avô de Maria Augusta Seixas (Magú) no jornal "A Montanha".

António Ribeiro Seixas e Leonor Seixas.

Eu e meu irmão passávamos parte das férias grandes e de Natal, na quinta. Mais eu do que o Fernando. A mãe não gostava de ficar sozinha já que grande parte do tempo meu pai estava fora, em serviço, no Ultramar, e o Fernando ficava com ela. Eu adorava a quinta e a sua rotina: ir buscar água fresca à mina, à noite, com a Ilda, a cozinheira, com uma lanterna na mão; adorava os coelhos, a vaca, as galinhas, os porcos, colher a fruta, ir com o Manuel, o feitor, levantar as madeiras dos diques, para a água do tanque correr nos caneiros e ir irrigando as culturas, ir com ele apanhar trutas no rio Paiva, ir com a Ilda vender os porquinhos à feira, andar nas vindimas e ver depois os homens a pisar a uva no tanque do vinho, as comezainas com convidados à sombra do carvalho junto ao tanque maior, os chás servidos no jardim ao lado da casa, com bolos feitos pela tia Celestinha que se desfaziam na boca de tão fofos, as tardes passadas na rede no pinhal, os banhos no Paiva e no Paivó, os meus amigos, passear no jardim da vila à noite, namoriscar, o cinema ao ar livre nos Bombeiros, a banda a tocar no coreto. Às vezes a Celestinha ia jogar a canasta a casa de amigas regressadas do Brasil e eu acompanhava-a; enquanto elas jogavam eu folheava revistas brasileiras, nas tardes modorrentas. E regressávamos com a tia Zezinha que era a chefe dos correios de Castro Daire.

Os banhos no rio Paiva.

As vindimas. Na foto surge Celso Ribeiro Bastos, que veio a ser professor de Direito e um dos autores da Constituição do Brasil depois dos Coronéis. 

Quando dormia na cama da Celestinha ela contava-me e recontava (e eu nunca me cansei de a ouvir) o grande passeio que dera pela Europa, em carro guiado por motorista, com o Tio Hermano e o Tio Mário. Visitaram Capri, Veneza, Pisa, Pompeia, Paris, Madrid, Nápoles, Mónaco, tudo, ficavam nos melhores hotéis. Deu-me um diário que escrevera nesses dias que eu mandei encadernar e guardo como uma relíquia. Deu-me os roteiros, postais, desdobráveis, com vistas dos países visitados. Ainda hoje quando visito algum país vou à procura desses desdobráveis com postais, mas agora quase só há postais avulso. Aquela magia perdeu-se.

Na minha família quer do lado de minha mãe (professoras primárias), quer do meu pai (a tia Zé nos correios e a tia Celeste a governar a quinta), as mulheres foram sempre mulheres independentes, com uma profissão, com que asseguravam o seu próprio sustento.

Mais tarde, já na Faculdade, ia muitas vezes até ao Porto, ao Palácio do Tio Mário. Nunca esquecerei a cama onde dormia com a minha prima Judite. Todo o mobiliário era antigo, cheirava bem, a cera e madeira, e a cama da Judite tinha uns degraus para subirmos para o colchão. Durante muito tempo, o meu sonho foi ter uma cama assim. Subir os degrauzinhos e ter uma cama fofa, fofa e quente, no cimo. Hoje durmo numa cama dura por causa da coluna.

O meu tio Mário era conde por casamento. O palácio era um mundo, enorme. Com quartos e escadas por todo o lado. Com mobiliário valioso e variado, das 4 partidas do mundo, uma capela, uma cozinha vasta, com fogões de três épocas distintas!

Tinha uma biblioteca de livros antigos, muito, muito antigos, que dava para o jardim de onde se avistava a ponte de Dom Luís, o rio, o casario do Porto, pela encosta abaixo. Como eu gostava de ali ficar…esquecida...a decifrar o português arcaico…  

Foi pela mão do Tio Mário que assisti pela 1ª vez a uma ópera. Era muito pequenina ainda. Se bem me lembro, ainda não andava no liceu; meu tio contava que eu não tirava os olhos do palco e seguia fixamente os cantores quando estes se deslocavam. Talvez por isso, quem sabe, eu só aprecio ópera ao vivo, preciso de ver os cantores, o coro, a representarem. No intervalo ele apresentou- me aos amigos: “é a Maguzinha, a filha do Sérgio!”. Levei muitas festinhas.

Fiz o liceu no Dona Filipa de Lencastre, ao Arco do Cego. Continuava unha com carne com a Graça e íamos juntas para o liceu; livrávamo-nos das aulas quando chovia muito, havia cheia em Xabregas e os autocarros ficavam parados; no tempo quente comprávamos gelados n ‘Os perús, descíamos a Alameda Afonso Henriques e ela ia dar um beijinho ao avô, o Almirante Cabeçadas, no café, com os amigos, sempre a conspirar contra Salazar… Outras vezes, esperávamos pelo pai dela em casa de um tio padre e papávamos hóstias que ele guardava cuidadosamente, no aparador. Um dia, ela abalou com a família para Moçambique e eu fiquei sem ela. Muita falta me fez. Acho que nunca me recompus da falta dela. Era como se ela me tivesse abandonado.

Do Liceu guardo bastantes recordações que vou tentar resumir em meia dúzia de situações; saltar à corda no recreio e ser disputada pelas duas equipas quando havia competição, porque era boa a saltar à corda; a expulsão, acho que 2 vezes, das aulas de Religião e Moral por estar tão absorvida na leitura dos Evangelho - eram verdadeiras histórias de encantar, que não ouvi o chamamento da professora: “Seixas!!! Seixas!!!!”. Acabei por ser dispensada das aulas de Religião e Moral, o que foi bastante bom; as aulas de lavores, em que eu levava o ano inteiro a fazer a bainha de uma fralda, nunca acabada, sendo depois a Mãe a fazer um babete que eu entregava no fim do ano como “obra” minha; a admiração que me “amarrava” às borboletas em expositores no 1º andar, espetadas em alfinetes; o curto período de tempo em que fui chefe de turma, eleita, que rapidamente abandonei dizendo “mas eu não tenho de andar atras das atrasadas! não fui eleita para isso!!” (mas era para isso mesmo que havia chefes de turma: para chamarem as alunas que se demoravam no recreio de modo a estarem todas na aula quando a professora entrasse. Eu é que não tinha percebido…); no Filipa recebi o meu primeiro prémio de desenho. A dona Maria João costurara um vestido novo para eu ir receber o premio, subir ao palco, ouvir os louvores do júri e descer as escadas, enquanto a assistência batia palmas. Este 1º prémio de desenho foi um livro com pinturas célebres, e eu fui ter com a minha mãe, a olhar para as imagens, encantada, talvez daí, este gosto insaciado por museus, exposições, galerias.

 No 6º ano tive um namorado. Catrapiscara-me na praia de Sto Amaro de Oeiras, ao pé do restaurante Saísa, para onde íamos muita vez dar umas braçadas quando meu Pai cá estava; eu nadava na piscina do Algés e Dafundo e por isso ia para o largo. O desgraçado engolia pirolitos por todo o lado, e assim nos conhecemos comigo a gritar -lhe: “Não avance mais que ainda morre!!!”, ou então “olhe que não vou buscá-lo!”. Depois ele ficava estendido na areia derreado a olhar para mim. Tempos mais tarde, de regresso a casa, encontro-o na paragem do autocarro, encostado ao poste… ao princípio nem o reconheci. Vestido parecia gente, de fato de banho era um magricelas, a espernear na água. Nem queria acreditar. O tipo seguira-me, seguira-nos, desde o período de férias, da praia. Entrei no autocarro, fiquei na parte detrás agarrada ao varão, ele pôs o braço estendido por cima do varão quase junto ao meu pescoço enquanto perguntava: “Posso? Não Incomodo?”. Era poeta, POETA, escrevia-me versos lindos de morrer. Lia-mos ao ouvido, que sensação, que sensação impar: o calor que emanava do corpo dele e o afago da mente. Depois acompanhava-me até à esquina da minha rua no bairro e aí entregava-me os versos que escrevera. Passou a fazer parte da minha vida. Todos os dias me esperava na paragem do autocarro. Quando não vinha, eu ficava inquieta. Um dia deixou de aparecer. Fora internado com problema nos pulmões. Nunca o fui visitar. Escrevia-me longas cartas. A minha mãe disse que ia por cobro àquilo. Que eu precisava era de estudar. Escreveu-me, mais tarde, de Paris, para onde fora viver com uma poetisa da nossa praça, mas a minha vida, entretanto, mudara muito. Entrara para a Faculdade.

A Faculdade das mulheres 

Entrei para a Faculdade de Letras de Lisboa no ano de 61/62 e apanhei logo a crise académica de 62.

As mulheres não eram nada naquela altura, mas nós éramos muito jovens e ainda não tínhamos sido confrontadas com essa realidade. A crise académica desencadeara uma torrente de irmandade, e de igualdade entre os jovens. Nunca me senti posta de lado, nem descriminada, por ser mulher. Éramos convictas nas nossas atitudes, firmes nas nossas decisões, iguais aos rapazes nossos colegas.

Em 1966, a população estudantil já contava com 41,5% de raparigas[i], uma taxa de feminização particularmente alta à escala internacional. Concentradas em Letras e Ciências: Letras tinha 79% de mulheres, Ciências 68% e Educação 74%.

Segundo estudos de Sedas Nunes, na década de 56 a 66, o número de mulheres que anualmente concluíam as licenciaturas cresceu de 47% contra apenas 6% dos homens. Os homens desistiam mais e demoravam mais tempo do que as mulheres a concluir os cursos. As raparigas estudavam com determinação mas nem por isso andaram arredadas das greves. Antes pelo contrário. As estudantes de Letras aderiram na sua quase totalidade à greve aos exames de 62: 95% não compareceram aos exames.

Em Letras tivemos uma segunda ronda de exames graças ao esforço incansável e nunca é demais recordá-lo do professor Luís Filipe Lindley Cintra[ii] - foi um pai, um amigo, um pedagogo, notável.   

Homenagem das alunas de Letras ao Professor Luís Filipe Lindley Cintra.

A politização acelerada

Comecei como uma ingénua caloira oriunda de uma família de velhos republicanos. Mas a minha aprendizagem política ia processar-se rapidamente graças à repressão cega que o fascismo exerceu sobre o movimento estudantil. Acordei para a política com um forte sentimento de pertença a um colectivo que queria mudar o país.  

Foi a mobilização permanente e maciça dos estudantes nesses plenários, com a análise das posições do governo versus a argumentação dos nossos pontos de vista, com a consequente aprovação de medidas em defesa da autonomia universitária e liberdade de associação, que rapidamente nos politizou e nos fez ver a verdadeira face do regime.

Acho mesmo que nos politizou para toda a vida porque nos deu as armas da análise, da argumentação, da crítica. Aprendemos a recuar para evitar a divisão entre colegas e a avançar obtido o consenso de todos. De cada vez que fizemos este exercício e votámos moções, quer fosse em assembleias gerais, plenários ou reuniões de Escola, atacámos a ordem salazarista, desafiámos a censura, a PIDE, abanámos os pilares do regime.

Os confrontos violentos com a polícia cimentaram a nossa revolta contra a ditadura.

Não vou demorar-me sobre o ano de 62 porque aí a minha participação foi a de uma caloira de Letras que assistia aos plenários, às reuniões gerais de Escola, ia às manifestações de rua, fugia da polícia de choque e que aderiu ao luto académico com greve às aulas, às frequências e aos exames finais.

Escapei à prisão dos 80 grevistas da fome/ ocupantes da Cantina Universitária porque meu irmão Fernando às 11h da noite me disse: “Magú vamos embora, já é tarde. A mãe se telefonou, está em cuidado!”.

O movimento de 62 foi, em parte, uma derrota com o seu cortejo de processos disciplinares, suspensões e expulsões. Por outro lado, foi uma vitória na medida em que passámos de futuros quadros do país a atentos observadores da falta de liberdades e do nosso atraso, a todos aos níveis. De caloiros irreverentes passámos rapidamente a activistas associativos e a lutadores anti fascistas[iii].

 No ano de 1963 viveu-se o rescaldo de 62 em que tinham sido expulsos, com base no 44357, das três academias do país, cerca de 50 estudantes. Haviam-se distinguido nas acções de protesto contra a proibição do Dia do Estudante, 21 tinham estado na greve da fome na Cantina (9-11 Maio de 62) e 34 em Coimbra, entre os quais 5 dirigentes associativos. Muitos mais perderam o ano devido à greve aos exames, com o alistamento antecipado de muitos deles. As direcções das AAEEs estavam desfalcadas de dirigentes, as pró Associações impedidas de trabalhar e os comunicados, a grande fonte de ligação entre todos, estavam proibidos.

Neste clima, os dirigentes estudantis decidem não comemorar o Dia do Estudante. O movimento estudantil tentava recompor-se da sangria.

Os anos de 63 a 65 foram os anos de chumbo durante os quais as AAEEs continuaram o seu trabalho de rotina: encarregavam-se das vacinas, das sebentas, dos descontos em comércio aderente para os sócios, do cineclube, do teatro, das actividades desportivas, das actividades culturais.

Ao prestarem estes e outros serviços, as AAEEs estavam a tomar conta do que seria da responsabilidade da Mocidade Portuguesa, que assim foi completamente neutralizada a nível universitário. Faziam-no nas condições mais adversas, sempre debaixo de ultimatos, de proibições constantes que foram aprendendo a contornar.

O Reitor Paulo Cunha insultava os dirigentes associativos e arrancava cartazes associativos dos placards.

Qualquer manifestação era atacada à bastonada. A cidade universitária era policiada em permanência. Os plenários dentro e fora das escolas eram proibidos e dispersados pela polícia.

As Associações de Direito e Ciências foram assaltadas e destruídas.

Agentes da PIDE dispararam num plenário de estudantes (20.2.63).

No I Seminário de Estudos Associativos que decorreu em Lisboa entre 4 e 15 de Setembro, o Secretariado da RIA no seu Relatório traçava novas metas para 63/64: “O trabalho em matéria de Reforma do Ensino, quer no que respeita a estudo, quer a actividade concreta e imediata, assenta sobremaneira no trabalho das AAEES tendo em conta a grande importância da questão preparando as eleições das Juntas de Delegados e constituindo corpos de colaboração nas secções Pedagógicas de nível adequado”. A aposta foi nas Pedagógicas.

Dirigente das pedagógicas de Letras

Dirigi as Pedagógicas da pró-Associação da Faculdade de Letras em 63 e 64.

Em Letras, as Pedagógicas foram parte integrante desse salto qualitativo que as AAEE empreenderam. Foram um exemplo de trabalho bem-sucedido quer a nível interno quer federativo.

Primeiro, entrámos em luta contra o decreto 44.813 relativo às frequências (promulgado em 27 de Dezembro de 62, durante as férias de Natal). Em Janeiro de 63, a pró de Letras começou um inquérito aos alunos sobre o assunto. Com as respostas na mão, organizou duas assembleias gerais para discussão das conclusões do inquérito.

95% dos alunos concordavam com a supressão das frequências, como preconizava o decreto do Governo, mas eram contra a sua substituição por exercícios de surpresa e por chamadas orais sem aviso, inscritos no projecto de lei, porque isso obrigava os alunos a estarem sempre aptos a debitar a sebenta em qualquer um dos exercícios surpresa ou provas orais em 5,6 ou 7 cadeiras. 

Sugerimos a criação de seminários de estudos, sendo os alunos admitidos a exame mediante a apresentação de um trabalho de investigação sobre um ponto do programa. Nos outros anos, cada aluno escolheria o tema do seu trabalho cuja discussão seria tema obrigatório no exame oral.

Solicitámos ao Conselho Escolar de Letras que definisse o conceito de trabalho prático.

As RIPDs, reuniões inter-pedagógicas, subscreveram este parecer e sublinharam a necessidade do aumento do número de professores para as aulas práticas, de modo a estas serem espaços de esclarecimento e aprofundamento dos temas, em vez de aulas em que o assistente dava matéria “nova”. No fundo, o que nós estávamos a propor era um esboço, ainda que tosco, para o ensino tutorado e para a investigação.

“Da universidade caduca à universidade nova” foi o tema de um debate por nós lançado, um debate sobre as estruturas universitárias, as relações mestres alunos, a representação dos alunos nos Senados e Conselho Escolar. Com estas duas iniciativas, mobilizávamos alunos e professores para a necessidade de reformar o ensino universitário.

Um elemento essencial das Pedagógicas de Letras foi a Mané, a Maria Manuel Calvet Magalhães.

A sua entrada para a secção foi memorável e ainda hoje a cena é recordada no meio de gargalhadas. Um dia ia ela a sair de uma aula, era caloira, e, na volta das escadarias que iam dar ao bar, paredes meias com a porta da pró-Associação, eu e a Maria Emília[iv] saltámos-lhe ao caminho, quase a “raptámos” e eu pergunto-lhe: És filha do Calvet Magalhães[v]? – sou.
- Queres entrar para a pró de Letras? - quero.
- Então vens para as pedagógicas, ficas comigo! - está bem!

Foi a nossa melhor aquisição - a Mané. Para quem não a conhece, é uma mulher de trabalho e de trabalho de qualidade. E foi uma peça fundamental no que nos propusemos fazer nesse Maio de 64.

Organizámos, melhor dizendo, ela e o Daniel Ricardo, responsável pelas Pedagógicas na RIA, estiveram na base da realização e sucesso, do 1º Festival Internacional do Cinema Didáctico que teve lugar de 18 a 21 de Maio de 64, no cinema Roma.

Como pró-Associação, não legalizada, não podíamos encabeçar a respectiva organização, precisávamos de uma cobertura legal. Associámo-nos, pois, ao Feliciano David, de Ciências, uma Associação legalizada, com uma secção cultural muito dinâmica, e obtivemos o patrocínio da Gulbenkian que nos apoiou financeiramente.

O Festival foi um êxito estrondoso.

O Século escrevia: “Em consequência da grande procura que têm tido, os bilhetes encontram-se esgotados há já alguns dias. Como o interesse continua a manifestar-se, a comissão organizadora solicita das pessoas que tenham bilhetes a mais que se dirijam a qualquer associação de estudantes de Lisboa para que ainda possam ser satisfeitos alguns dos numerosos pedidos que continuam a afluir”.

Era um corrupio de carros e de gente nova. Todos os dias a fila transbordava para a rua, e continuava noite dentro. Luz, muita luz, movimento, conversas e risos, gargalhadas, num Portugal sombrio, numa Lisboa de tardes paradas, noites soturnas e fados chorados.[vi]

Ganhou o MACHAREN com “a dança dos quadrados”, se não estou em erro.

Mostrámos que noutros países mais avançados o ensino se apoiava nos meios áudio visuais, com benefício para todos e, até, com baixos custos[vii]. Mostrámos que as associações de estudantes estavam activas e que o que faziam era de interesse público.

Eu e a Mané fomos eleitas delegadas de Letras à RIA. Ficámos as duas a secretariar as Pedagógicas da RIA, dirigidas pelo Daniel Ricardo. Nunca é demais recordar o trabalho persistente e de muito valor que o Daniel aí levou a cabo.

Mas não se pense que éramos gente clandestina, soturna, sempre agarrada a tarefas. Nem pensar. Adorávamos divertir-nos, conversar, passear.

Depois da chegada da Mané tornámo-nos um grupo.

Eu, que até aí tinha de regressar a casa até às 22h, meia noite, no máximo dos máximos, passei a ter mais liberdade. Éramos um grupo.

Íamos para todo o lado no carrinho da Mané. O “boguinhas”, como lhe chamávamos. Nele íamos ao café, íamos almoçar longe da comida horrível da cantina da Cidade Universitária, ao Cineclube, às livrarias, ao teatro, ao cinema, ao jazz, passeávamos por Lisboa, íamos até Cascais, (a Mané morava em São João do Estoril), uma vida de jovens vivida em liberdade e em grupo. Com muita alegria e despreocupação. O meu quarto era o meu segundo espaço de liberdade.

As AAEE como divulgadoras de cultura

Outro aspecto que nunca é demais salientar foi o papel das AAEEs como protagonistas e divulgadoras de cultura, contribuindo para a nossa formação intelectual e artística.

O teatro era o nosso forte.

Lembro-me d’ A Casa de Bernarda Alma, no Império, em que, a certa altura, a PIDE já andava pelos corredores a ameaçar, a empurrar, à canelada e cá fora, claro, a polícia estava à nossa espera. Os ajuntamentos eram proibidos, três já faziam um ajuntamento…

Lembrar-me-ei sempre da voz vibrante, cheia de timbres emocionados e de luta, da Maria Barroso a declamar poesia depois da representação duma qualquer peça de Gil Vicente.

E como esquecer as representações do Teatro de Direito (já com o Hélder Costa) que interpretavam tão bem como os melhores profissionais? E que punham acentos de contestação nas diferentes falas?!

Sem esquecer as exposições de pintura. Foi numa exposição do Técnico que comprei a minha primeira pintura, neo-realista, do Miguel Flávio.

Foi pois nessas exposições no Técnico e em Ciências que aprendi a apreciar a outra pintura, a da resistência, a que não era visível, a outra face duma mesma arte.

E na CEI-Casa dos Estudantes do Império, conheci a dos que lutavam contra o colonialismo, a escrita e a poesia.

E já que não tinha podido ser escultora (a profissão que gostaria de ter seguido antes dos meus pais me dizerem que isso não era profissão para menina…[viii]) quis ser jornalista…

E foi na qualidade de “aprendiz” de jornalista - assim se designava na altura -, que entrevistei poetas e escritores que, já então, muito admirava.

Entre outros, o Herberto Hélder, o Almeida Faria.

O processo da entrevista era assaz original: escrevia as perguntas, ia com elas fazer a entrevista oral e ficava à espera da resposta escrita. Depois, completava com perguntas ao vivo e editava o que achava mais interessante.

Ganhava algum dinheiro, pouco, mas que me era muito útil depois de ter perdido a Bolsa da Gulbenkian.

Foi também em Letras que passou a exposição de Michel Giacometti[ix] sobre o povo português: tradições, cantares, objectos. A Maria Emília acompanhou de perto o trabalho de Giacometti no terreno.

A radicalização

Em Julho de 1964, a delegação da PIDE do Porto envia para a PIDE de Lisboa cópia de uma carta minha para o meu tio Mário Seixas, em que eu falava em ir a Argel, na Argélia. Eu ia deslocar-me a Paris e Argel na dupla qualidade de militante do JAP/PCP[x] e de dirigente associativa. Nessa carta começava por me queixar de que a minha mãe tinha destruído uma data de propaganda que encontrara no meu quarto:

“Destruiu propaganda de mais de 20 anos. Destruiu 15 artigos publicados em Itália e que iam circular no ano que vem, traduzidos pelas Juntas Patrióticas. Destruiu documentos actuais de que muito pouca gente dispunha, impedindo no momento e por muito tempo o prosseguimento de trabalho bastante importante e a dois níveis. Destruiu papéis cifrados, destruiu uma tipografia, colagens, linóleos. Não fui só eu a atingida porque destruiu trabalho para baixo e para cima que dependia de tudo isso. Eu e parte daquilo por que luto foi destruído (…)”

E acrescentava “Esta é a minha única forma possível de vida: lutar por um ideal”.

E terminava: “Hoje a mãe recebeu carta do pai. Ele dá-me autorização para ir”.

“Ir”, era ir participar num encontro de estudantes em Argel, na Argélia.

Parti a 7 de Julho de 1964. Fui para PARIS, mas não cheguei a tomar o avião para a Argélia. Esperei duas semanas pela autorização, que não veio; a minha viagem a Argel, para estabelecer pontes com os estudantes de outros continentes e organismos internacionais, não teria lugar.

Mas estabeleci contactos com o representante da Federação dos Estudantes Portugueses no exílio, em Paris, e pu-los ao corrente da luta dos estudantes em Portugal.

Por indicação do tio Mário, fiquei no hotel onde ele costumava ficar, na Place de la Sorbonne: tinha ali à mão as PUF, Presses Universitaires de France, e outras livrarias editoras dos livros de estudo que em vão eu procurava em Lisboa.

Aceitei todas as sugestões do meu tio e fui ver Rodin, o Museu do Homem, o museu Cluny, logo à entrada do Boul-Mich, o do Louvre, o jardim das Tulherias, os Campos Elísios, passeei por Montmartre, último reduto dos revoltosos da Comuna de Paris, e bairro de artistas, entrei nas galerias de arte, havia tantas. Fui ao cinema.

Em 21 Julho de 1964, a PIDE declarava -me “fugida em Paris onde deve ter chegado em 9 de Julho de 1964”, e enviava a seguinte circular a todos os postos fronteiriços, “comunicar imediatamente a sua entrada no país sem levantar quaisquer suspeitas”. Foram alertados todos os postos de fronteira, desde o aeroporto de Lisboa, aos postos de Barca de Alva, Seirã, Caia, Galegos, Monção, S.Gregório, etc, todos, a acabar na Gare Marítima da Rocha e de Alcântara.

Em menos de dois anos, eu tinha passado de caloira despreocupada, a activista associativa e política. Como eu, dezenas e dezenas de outros jovens. Em grande parte, fora a política de repressão do governo fascista que nos empurrara para a militância política. 

A expulsão

Entre meados de 1964 e Janeiro de 65, a Universidade de Lisboa assiste a uma vaga de prisões de estudantes sem precedentes. Mais de 60 estudantes são presos e submetidos a tratamentos desumanos acusados de pertencerem ao Partido Comunista Português.

As prisões tinham começado em Abril de 64, com a prisão da João Gerardo, tesoureira de Letras, de Matos de Almeida, de Medicina, de dezenas de estudantes presos durante o Dia do Estudante - as AAEEs não tinham obedecido à interdição do Dia do Estudante. Foram abertos 28 processos disciplinares e imediatamente suspensos os presidentes de Ciências, Direito, IST, Económicas e o Secretário-Geral da RIA. 

Ainda em Abril, José Luís Sanches é baleado pela PIDE e preso quando distribuía panfletos.

Fomos confrontados com as sevícias por que esses colegas e amigos estavam a passar: foi o choque com o relato do pai de Gina Azevedo, do estado em que encontrou a filha ao fim de um mês de prisão, sem articular as palavras, magríssima, a cambalear, sendo internada no Miguel Bombarda; de Baeta Neves a partir os óculos e engolir os vidros. Maximino Vaz Cunha e Steiger internados depois de dias e dias de estátua, Alfredo Caldeira esbofeteado, seviciado durante os interrogatórios.

Em Lisboa, as autoridades académicas decidiram substituir o Dia do Estudante pelo Dia da Universidade que foi marcado pelo reitor Paulo Cunha para 21 de Janeiro de 1965, na Reitoria.

Dezenas de estudantes interromperam as comemorações oficiais. Não deixaram o “magnífico” Reitor prosseguir nas suas declarações, firmemente decididos a lavrar o seu protesto pelas prisões dos colegas, as torturas, a estátua, os espancamentos, a que estavam a ser submetidos. Gritavam “Liberdade!”, Justiça!”, ”Fora a PIDE”, ”Falam os estudantes! Porque é que não falam os estudantes?” durante cerca de 25 /30 minutos, gritámos a nossa revolta, a injustiça que se abatia sobre os nossos colegas presos sem que a instituição Universidade dissesse uma palavra. Acabámos a cantar o hino nacional. E assim acabava a sessão do Dia da Universidade. Paulo Cunha não iria perdoar esta afronta. 

Cantina universitária

Já em período de estudo para os exames, depois de várias peripécias, fui chamada ao Reitor.

O gabinete de Paulo Cunha era enorme com uma secretária também enorme, ao fundo.

 A sala era impressionante, com as paredes forradas a madeira. A estante por detrás da secretária de Paulo Cunha pareceu-me estar embutida na própria estrutura de madeira que cobria as paredes.

Era tudo muito, muito moderno. Um design maravilhoso.

Mais tarde soube que todo o mobiliário, assim como os tectos, paredes, puxadores das portas, tudo, na Reitoria, tinha sido concebido por Daciano Costa. Estava explicado o impacto que todo o conjunto me causara. Na parede do lado esquerdo havia uma grande tapeçaria abstracta. Ao passar por ela, atrasei um pouco o passo, a olhar… era do pintor Rogério Ribeiro. Naquela altura eu ainda não sabia quem era Rogério Ribeiro[xi].

Paulo Cunha pediu-me para tirar os óculos escuros, primeiro porque “é assim que faz uma senhora educada”, segundo porque queria ver os meus olhos, diziam que eram bonitos os olhos da nova “passionária”. Fiquei constrangida!

“A senhora é que é a nova ‘passionária’ portuguesa, não é verdade? Está convencida de que é a nova ‘passionária’, a ‘passionária’ portuguesa. Uma revolucionária!!!”

No meu cérebro gravara aquela tapeçaria cheia de força, de raios, de cor, o fundo era azul escuro, se não me engano, com uma figura humana saída daqueles raios todos, que acho, eram vermelhos. Tudo cores intensas, raios tremendos[xii]. Tinha uma força enorme. Uma tapeçaria com raios e destruição, desenhada por um comunista, a favor da paz e pelo desarmamento. Mas eu não sabia.  

“Ora muito bem, a senhora está identificada como tendo sido um dos organizadores da contestação ao Dia da Universidade! O que tem a dizer?”

“Não há engano nenhum, minha senhora. Está bem identificada. E há testemunhos de que andava de um lado para o outro a dar indicações! E está também identificada na desobediência organizada às ordens do Reitor de proibição de entrada de estudantes estranhos à Clássica, na cantina, para celebrarem o Dia do Estudante. A celebração do Dia do Estudante estava proibida!!”.

Eu negava tudo.

A entrevista acabou com o Reitor a dizer-me para eu ir para os bons ares da serra passar férias e estudar.  

Esta frase guardei-a tal e qual porque a reproduzi quase de imediato aos colegas: “Ouça o que eu lhe digo. Quem trai os seus, acaba mal”.

Saí da entrevista com o Reitor… meio atarantada… o coração explodia-me no peito. Transpirava. Sentia um medo físico, palpável. Nunca o sentira antes, nem mesmo quando fugia da polícia de choque ou quando a PIDE rondava a minha casa, ou me seguia na rua. Ou quando corria a bom correr, para o Hospital de Santa Maria, e a PIDE (um dos agentes com pistola na mão) atrás de nós, a gritar para o Jorge, o meu namorado da altura: “Havemos de te apanhar!»

 A sanção chegou pouco depois, no pacote dos processos disciplinares.

É evidente que a reprodução daquele tempo não é uma memória súbita que acordou e reproduz factualmente o que se passou, o que foi dito. Mas também não resulta da minha imaginação. Vem, em parte, na carta de defesa que o meu advogado apresentou refutando as acusações que então me eram feitas e de que recentemente encontrei um rascunho. Para além de acusada de perturbar o Dia da Universidade, também era acusada de ter organizado a entrada na Cantina Universitária, no dia do Estudante de 1965. A comemoração desse ano do Dia do Estudante resumia-se praticamente ao almoço de confraternização em que iriamos falar da situação dos nossos camaradas presos. O Reitor proibira as comemorações, assim como a entrada a estudantes de fora da Clássica e colocou-se no corredor, que dava entrada para o refeitório, juntamente com meia dúzia de estudantes “zelosos” e contínuos. A impedir-nos de passar. Íamos passando, depois de muita confusão, empurrões, alguns tabefes, gritos do Reitor, mais encontroes, mais gritos, e nós próprios começámos a servir as refeições e a receber o dinheiro do respectivo pagamento que depois foi entregue ao gerente da cantina. Esta a realidade de que me lembro - mas há, houve, haverá outras realidades relatadas. A do Reitor subscrita pelos contínuos era de que eu fora umas das organizadoras do boicote as suas ordens. Mas há um sentimento, aqui é o meu coração que fala, uma sensação que ainda hoje se mantém viva em mim: eu achava que não fazíamos o suficiente pela libertação dos nossos colegas presos. E isso transtornava-me. Andávamos ocupados com o trabalho nas associações, os mais activos estavam presos, outros fugidos. Foi a interdição do Reitor de celebrarmos o dia do Estudante com um almoço na Cantina da Cidade Universitária que nos fez ir para a luta. Lembro-me do JB discutir com o Reitor com grande coragem e exaltação. Unidos, fizemos frente ao Reitor, respondendo-lhe com mais ou menos calma, com melhores ou piores argumentos. Tarde dentro ainda andávamos dentro da cantina, quem sabe convencidos de que abríramos uma pequena brecha no poder absoluto do reitor, a autoridade que quisera restringir a nossa autonomia académica, sem nos ouvir.  

207 estudantes foram arguidos em processos disciplinares

Quando consultei os dossiers dos processos disciplinares então percebi. Realmente a minha cabecinha estava lá assinalada por uma circunferência, em muitas, muitas fotos. A PIDE passara o tempo a fotografar-nos. Ao nosso lado, faziam-se passar por estudantes. Vestiam-se como nós, com máquinas a tiracolo. A Polícia Judiciária instruía o processo. A Universidade demitia-se dos seus deveres para com o seu corpo docente. Estava marcada no Dia da Universidade, na Reitoria e no Dia do Estudante de 65, na Cantina.

Mais tarde, muito mais tarde, já em 2004, quando consultei o meu processo da PIDE/DGS, na Torre do Tombo, pensei que o Reitor Paulo Cunha falara daquele modo porque sabia que o meu tio Mário pertencia àquele grupo de velhos republicanos que colocaram Portugal e o regime fascista em cheque nos areópagos internacionais. Daí aquela conversa que eu nem entendera muito bem na altura. No meu dossier da PIDE estão muitas fichas do dossier PIDE do meu tio.

Ele era vigiado pela PIDE desde 1955. Fiquei a saber que fora referenciado pela PIDE como “um dos signatários duma representação dirigida ao Sr. Presidente da República, datada de Novembro de 1960, na qual se fazem várias considerações acerca dos ataques feitos a Portugal na assembleia geral da ONU e se pede a realização de um Congresso de Democratas, a publicação de um semanário de oposição e a promulgação imediata de uma ampla amnistia para todos os presos políticos, como condições para a oposição atender os apelos de unidade feitos a todos os portugueses”.

Meu tio esteve envolvido na feitura desse semanário que não chegou a ver o dia. Mas no meu dossier da PIDE, foram apensos os relatórios da delegação da PIDE do Porto, com os contactos que estabeleceu e a correspondência que trocou com o eventual financiador do projecto.

Em Fevereiro de 61, meu tio fora o signatário de um telegrama enviado ao presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas:

“Democratas portugueses saúdam vossa excelência associam-se protestos mundiais contra bárbaro premeditado assassínio Lumumba e companheiros afirmando solidariedade todos combatentes liberdade e livre expressão pensamento prestam homenagem vítimas odiosas perseguições políticas”.

Era mais do que uma indirecta, era uma directa, à situação que se vivia em Portugal e colónias…

E pior, ele era “signatário do estudo crítico de Mendes Cabeçadas a Salazar juntamente com o cor. H Ribeiro, Santiago Pregado, Francisco Cunha Leal, e Mário de Azevedo Gomes, pretendem publicar no país e depois no estrangeiro, sem censura prévia”.

Maria Augusta Seixas (Magú) depois da ordem de expulsão.

A 15 Novembro de 1965 eu era expulsa de todas as universidades portuguesas, por três anos, sob a acusação de:

“Premeditado desígnio de agitação de massas, de ataque às instituições vigentes e ordem legal estabelecida. Actos de incitamento à indisciplina incluindo a greve, e sobretudo pela participação na agitação do Dia da Universidade e nos acontecimentos ocorridos em 1-4-1965 na cantina da Universidade de Lisboa, em que se envolveu”.

Dos 207 estudantes arguidos inicialmente, 53 foram excluídos de todas as universidades nacionais por períodos de 3 meses a 8 anos, 124 foram suspensos da frequência da escola por períodos de 5 a 40 dias, 4 a repreensão e só 26 absolvidos. A mim couberam-me 3 anos de expulsão de todo o ensino universitário, no país.

Os rapazes expulsos foram compulsivamente incorporados no serviço militar e expeditamente enviados para a guerra por 4 anos.

Aos expulsos somemos os que ficaram pelo caminho por terem feito greve aos exames, mais as dezenas dos que foram presos e dos que foram incorporados na tropa. Mais os que passaram à clandestinidade. Centenas de jovens sacrificados.

Eram os mais activos, os mais brilhantes que a Universidade portuguesa conhecera nesses anos.

Teriam certamente contribuído para o desenvolvimento do país e muitos já não foram ninguém, ou foram-no noutros países que os acolheram e onde fizeram carreira.  

A luta anti colonial e contra a guerra

A opinião estudantil começou por cultivar uma cultura de liberdade de pensamento e de autonomia, contra as decisões arbitrárias do Governo, as constantes proibições e a repressão, e rapidamente passou à luta pela resistência à guerra colonial, de que nunca mais se separaria.

Se, em 1961, a percentagem de desertores e refractários era de 11,6%, em 63 passou a 12,8%, em 64 chegava aos 16,4%, e entre 1965 e 68 rondaria os 19%.

Participei em várias reuniões da RIA, uma delas foi na Casa dos Estudantes do Império, a CEI[xiii], ao Arco do Cego.

Direcção da Casa dos Estudantes do Império.

Lembro-me da escadaria de madeira um pouco íngreme por onde se subia. Da sala de reuniões ampla e do abraço fraterno com que os dirigentes da Casa nos recebiam. Das publicações com poemas e contos de nacionalistas angolanos e moçambicanos que a Direcção publicava regularmente. Das conferências aí proferidas por investigadores e intelectuais de grande craveira. Das estudantes das colónias que frequentavam a CASA e do trabalho que muitas delas desenvolveram quer a secretariar a Direcção ou a dirigir uma assembleia geral ou escrevendo nos jornais da Associação do IST e da Casa, colaborando na Secção de Estudos Ultramarinos. Eram mulheres, elementos activos de uma luta perigosa e arriscada. Muito mais arriscada do que a nossa.

Estudámos muito bem o ano de 62 porque foi o ano da ruptura, fala-se de 68, também, que é o ano da recuperação depois dos anos de refluxo, mas a história desta década, ano a ano, está por fazer.

Foram anos de grande sofrimento para a Universidade.

Tenho esperança que, um dia, os historiadores se debrucem sobre todos os anos da década de 60, os anos gloriosos e os anos de refluxo, de 63 a 65, em que a luta foi mais dura, mais perigosa.

Acabei a atravessar a fronteira, com papéis falsos, a caminho do exílio, exílio de onde só voltaria 6 anos depois, com o 25 de Abril.

O “salto” para Bruxelas

Depois da expulsão da universidade casei com o Tó, e tive uma bebé maravilhosa, a Maria João, no então Hospital do Ultramar, hoje Egas Moniz. Chorava de noite (no bercinho) e dormia de dia (mal eu lhe pegava). O Tó, também ele expulso por seis meses, como castigo, foi chamado para a tropa, para alferes miliciano. No dia em que ele não embarcou para Angola, à mesma hora em que ele passava a fronteira, nascia o nosso segundo filho, o Sérgio. Entretanto, eu conseguira emprego na TAP.

Algum tempo depois do Tó desertar, decidi vender a nossa mobília e ir viver para casa da minha mãe. Até para ela me ajudar com o Sérgio, o nosso 2º bebé: tirava o leite do peito, manhã cedo, e ela dava-lho no biberão, enquanto eu trabalhava. Quando chegava a casa dava-lhe o peito; acho que vem daí o olhar com que ele me fixava. Devia perguntar-se “mas que cara é esta? o leite é o mesmo, só que há bocado saía duma borracha e era a cara duma senhora de cabelos brancos e agora sai da teta duma jovem que se ri toda para mim…”

Desfazer-me da nossa mobília foi uma tristeza. Eu desenhara parte dela: a mesa da sala tinha um pé em ferro forjado desenhado por mim e feito por um artesão; também a estante da sala fora toda desenhada por mim. Gostava tanto dela; ainda hoje é actual, não envelheceu. Na parte debaixo portas e gavetas, em cima prateleiras e nichos de diferentes tamanhos. Era enorme, enchia uma parede inteira, toda em madeira. A cama era em ferro trabalhado, antiga, a cómoda com grandes gavetões, fora restaurada de acordo com as minhas indicações, havia um conjunto de cadeiras de cana preta com assento em palhinha, dois cadeirões de braços e um canapé, tudo original e em óptimo estado. Uma arca, daquelas forradas a pele de vaca a que eu mandara tirar o pêlo, ficando a pele lisinha, de um castanho avermelhado, cor de outono, onde desenhara o nosso monograma e outros floreados com pregos chapeados a cobre. Estes objectos ficaram-me na memória porque eu tinha trabalhado neles. Eu e o Tó tínhamo-los desencantado por toda a região do Fundão. E eu embelezara-os. Quadros, cerâmicas, também vendi. Precisava de dinheiro para os tempos incertos que se avizinhavam. 

Desde a fuga do Tó, a PIDE seguia-me ostensivamente, ameaçava-me ao telefone, cortava-me as chamadas, seguiam-me de carro e fingiam que me atropelavam. Do Aljube, tinham-me avisado que eu fora denunciada, e seria conveniente sair do país. O que não foi fácil, visto haver muitas deserções com fugas para o estrangeiro e a PIDE andar em cima de nós.

Acabou por ser o Tó, da Bélgica, a conseguir a minha saída, meses depois. Eu que, no período das prisões de 65, ajudara a pôr colegas da Faculdade a salvo, via-me em dificuldade para sair. Despedi-me do meu Sérgio que ficou com os meus pais, era um bebé: tinha uma grande cabeça, redonda, muito bem feita e olhava-me fixamente. E deixei a Maria João entregue a um tio do Tó. Era uma miúda espertíssima, uma boneca, falava pelos cotovelos, correctamente, dava-se com toda a gente. Deixou de falar no dia em que eu desapareci. Passei à clandestinidade, uma clandestinidade mal assumida porque saía de vez em quando, ia ao cinema, comia fora. Acordava todos os dias às 6 da manhã, a hora a que a PIDE ia a casa das pessoas prendê-las.

Acabei a “passar” a fronteira pela mão de um “passador” de trabalhadores, só eu e ele, através de uma herdade alentejana cuja fronteira com Espanha não existia, era a terra que pisávamos e nada mais. Apanhámos uma camionete uns quilómetros à frente, depois o comboio, passámos a fronteira francesa, eu com o passaporte falsificado. No total, foram três dias e duas noites de viagem. Todo o caminho comi arroz de coelho, de um grande tacho, que ele trouxera de casa. Nunca mais o vi, gostaria de ter-lhe agradecido pessoalmente o que fez por mim. Arriscou muito, arriscou mais do que um “passador” de gente da política. Chegados à Gare de Austerlitz, de boa memória, enfiei-me no comboio para Bruxelas. Tudo correra bem até ali. Nunca esquecerei o olhar azul, frio, directo, do polícia belga a olhar-me, fixamente. Senti um calafrio, por breves momentos…

A chegada à Bélgica

Aterrei numa mansão de três andares e uma cave, a “Casa dos Desertores”. Conheci logo uma data de jovens, desertores ou refractários. Foi uma festa: comemos bifes do lombo, enormes, altos, suculentos que o Jó roubara no Super; tinha um impermeável com os bolsos descosidos onde enfiava bifes Chateaubriand uns atrás dos outros que aterravam no forro da gabardine. Era médico. 

Maria Augusta Seixas (Magú) na Casa dos Desertores. 

Ao princípio vivíamos, pode dizer-se, em comunidade. Partilhávamos algumas coisas, principalmente comida, e muitas, muitas histórias. Gostava de ouvir contar a instrução na tropa, as discussões com os sargentos e cabos, os castigos, depois cansei-me. Mas nunca me cansei de ouvir o Tó e outros, falarem das reuniões em que tinham decidido que ninguém “saía” dos quartéis sem trazer armas, quais os melhores locais para as esconder e onde tinham acabado por as deixar. Cenas de aventureiros… Mas do que eu gostava mesmo era de ouvir contar dois assaltos a bancos, em Paris, porque o dinheiro da Figueira da Foz nunca mais aparecia e eles (à semelhança de Fidel Castro em Cuba) tinham de ir tomar uma cidade (Covilhã), fazer dela uma cidade livre, bastião da luta contra o regime!!!... Eu rebolava-me a rir com estes assaltos em que nada correra como planeado, safaram-se sempre por um triz, nas barbas da polícia, a rasar testemunhas que se encolhiam para os deixar fugir.

Chegados a Bruxelas, íamos à polícia e à delegação da ONU contar o nosso percurso de luta contra a ditadura, a perseguição da PIDE, e dávamos entrada ao pedido de refugiados políticos, apresentávamos documentos e indicávamos testemunhas que podiam avalizar as nossas afirmações. Eles verificavam tudo e, dias depois, recebíamos a Carta de refugiados políticos da ONU que nos dava os mesmos direitos que aos belgas, e uma Carta de Trabalho que, tal como a eles, nos permitia todo o tipo de trabalho (permis A). A Bélgica foi um dos melhores países de acolhimento que os jovens estudantes portugueses tiveram.

Depois da ONU , vinha a Armée do Salut onde nos entregavam uns talões. Com eles, e conforme o agregado familiar, podíamos escolher, no Petit Rien, colchões, camas, sofás, o mobiliário básico, mas tudo já usado.

Em Bruxelas, nas noites de sexta-feira, durante muito tempo, um grupo de exilados políticos ia ao lixo dos mais ricos. Encontravam casacos de pele em bom estado, roupa de marca, muita loiça, talheres, panelas, frigideiras, candeeiros, tapetes. Nunca fui ao lixo, nem quis nada do lixo. Mas aceitei uma molheira de loiça, que ainda hoje conservo, com um desenho original, e um moinho de café de madeira, com uma gavetinha; um dia desapareceu da minha casa em Lisboa. 

Em todos os andares da Casa dos Desertores havia uma salamandra que funcionava a carvão de lenhite. Nunca passei frio em Bruxelas. Em cima da salamandra, havia sempre uma chaleira com água quente, qualquer um que entrasse tinha logo chá à disposição e uma história para ouvir. Eram serões muito agradáveis e deles sinto falta, por vezes. Havia uma irmandade nunca mais reencontrada. Nesses momentos, eu era feliz, ninguém me julgava e eu não julgava ninguém. Não havia denúncias, nem medo.

Maria Augusta Seixas (Magú) na Casa dos Desertores, 1968.

A Casa dos Desertores era uma fraternidade, um sítio protector onde reencontrávamos uma família. Reinventávamos o passado todos as noites e isso ajudou-nos imenso a aguentar a distância da família, dos filhos, a falta de notícias, o país enclausurado. E ensinou-nos a ser tolerantes, numa idade caracterizada pelo radicalismo.

Maria Augusta Seixas (Magú) e Mira na Casa dos Desertores, 1969.

Depois cada um ia à procura de casa, e alugava; e todas elas eram o prolongamento dessa primeira.

Quando olho para trás, vejo o caminho imenso que percorremos, como amadurecemos em tão pouco tempo, e acho que isso só foi possível porque todas as noites contávamos histórias passadas na Universidade e na tropa e assim encontrávamos forças para continuarmos a nossa vida tão longe das comodidades de Lisboa e da família. Numa terra estranha, um país de velhos - achava eu -, tantos velhos!! Não via gente nova na rua, nem bebés, nem crianças; só velhos, com os seus cãezinhos e gatos em sacos-gaiola. Com o tempo, percebi a razão de tanta gente de idade: é que há muito tempo tinham um serviço de saúde que lhes dava mais uns bons anos de vida, tinham sindicatos livres que lutavam por melhores condições de trabalho (o que lhes prolongava a vida, também) e tinham comida em abundância, bons salários, casas aquecidas. Os socialistas belgas desenvolveram o cooperativismo, com cooperativas de produção, de distribuição, de saúde, o que lhes deu acesso a imensos bens, a preços acessíveis.

A vida dos belgas estava altamente organizada: as crianças estavam nas escolas, os bebés nas creches, os pais a trabalhar, os estudantes nos liceus e universidades. Era assim a vida em Bruxelas em meados dos anos sessenta, e princípios de 70, os anos das “vacas gordas”, antes da crise do petróleo. Uma vida regulada, feita de horários de trabalho e horas e dias de lazer. Não havia gente em idade de trabalhar ou estudar, a passarinhar na rua. De tal modo que um amigo nosso, o Lobas, foi, pelo menos duas vezes, abordado pela polícia, na rua, para identificação e, numa delas, levado ao comissariado central porque não trazia identificação consigo. Depois de ter deixado os filhos na creche, ia pacatamente pela rua com ar de não ter nada para fazer…sem destino... e, zás, logo apareceu a polícia. Para mais o Lobas, engenheiro do Técnico, sem curso acabado, preso em Luanda, militante do MPLA, fora brutalmente espancado pela PIDE. Diziam que, desde então, ficara com o termómetro do corpo desregulado: no verão vestia casacos de pele se fosse preciso e de inverno era vulgar vê-lo de t-shirt, com um casaquito leve por cima.

Também não havia gente a atravessar as ruas fora das passadeiras. Ou era multado, ou levava uma buzinadela infindável. Houve até um amigo nosso que ia levando uns tabefes de um automobilista que tinha travado para não o atropelar…

Era sempre um regalo quando algum de nós recebia da terra presunto, queijo da serra, morcelas, paio; que festim. Fazíamos umas noitadas de petiscos, com vinho italiano a acompanhar.

Na Bélgica havia comida em abundância.

Era um estendal de fruta, vinda de várias partes do mundo, de montras com todas as variedades de queijo e charcutaria. A Bélgica já era, na década de 60, uma sociedade de consumo, altamente desenvolvida. Os supermercados vendiam desde roupa a vestuário e mobília, nada disso existia em Portugal, só anos depois do 25 de Abril abriram os primeiros hipermercados. As padarias tinham inúmeras variedades de pão e bolos. Nós tínhamos o papo-seco e da quinta chegava de vez em quando o bom pão cozido em forno de lenha. Em Bruxelas, ao lado dos grandes supermercados, havia pequeno comércio por todo o lado, desde mercearias (algumas especializadas em queijos, outras em carnes frias, desde presunto a patés, outras em pastas de marisco e marisco), lavandarias, engomadorias, peixarias, talho, e havia escalas para este tipo de comércio, e, assim, cada bairro tinha sempre lojas abertas fosse domingo ou feriado. E os supermercados fechavam ao domingo!

Ao princípio tudo era novidade. Levaram-me a provar os chocolates e as gaufres, polvilhadas com açúcar, e uma bola de gelado, ou chocolate, compota. Mais tarde, com o Rui, sempre que íamos aos livros ou às compras para a Avenue Louise, trazíamos chocolates deliciosos, de massapão, de café, havia tanta variedade e lanchávamos sempre uma gaufre. Gostava de me sentar numa esplanada, fosse ao ar livre ou numa galeria, víamos as pessoas que passeavam, gostava de os ouvir falar, em francês ou mesmo flamengo, enquanto líamos o Monde, o Le Soir, o N’ Obs. Na Lisboa de então, não havia esta miscelânea de línguas estrangeiras, os cafés eram pobres e gélidos no Inverno, com mármore húmido no chão, onde os empregados iam passando uma esfregona meio suja, o pessoal a fumar por todo o lado. Tirando a Nacional (onde ia com a minha mãe), a Versailles, e a Bénard, não havia sinais de um passado rico e descontraído como em Bruxelas. Havia sim, uns pides a tentar ouvir as nossas conversas, e quando não as ouviam, apontavam que fulano se encontrara com x, tinham falado n…minutos, ou trocado jornais …ou jogado matraquilhos, ou bilhar, e sempre a conversar uns com os outros. Tudo isto era suspeito e passava para as fichas da PIDE.  

Os bolos foram outra surpresa: muito menos doces do que os nossos (feitos com açúcar de beterraba e não de cana), com montanhas de natas batidas, sempre muito bem apresentados em vitrinas, onde sobressaia a madeira antiga, era como se o tempo tivesse parado e os alemães não tivessem passado por ali. Ao longo das Avenidas nobres sucediam-se as montras das casas de chá e eu gostava de olhar lá para dentro, admirar os lustres antigos acesos (era sempre noite em Bruxelas, nunca havia sol, achava eu) e as empregadas atrás dos balcões afadigavam-se a tirar os bolos das vitrinas e a colocá-los em carrinhos que empurravam até às mesas. Era um ritual de cidade opulenta. Sem a fome do nosso país. Todos bem agasalhados. Satisfeitos.

Se estava bom tempo, passeávamos ao fim da manhã no Bois de La Cambre, um bosque lindíssimo, com caminhos, largos, e árvores bem tratadas, enormes, com raízes cheias de nós, fortes. Um cheiro intenso a bosque depois de uma chuvada ou num dia quente. Traziam-me à memória o cheiro do pinhal e do bosque da nossa quinta em Castro Daire, e uma paz profunda, tomava conta de mim.

Pinhal da Quinta de Castro Daire no inverno.

Num desses bosques na periferia de Bruxelas, havia um lago, com um pavilhão, onde chegávamos de barcaça. Aí se fazia mais frio, pedia um chocolate quente. Às vezes penso que Monsanto, aqui perto do bairro onde hoje moro, não tem nada a ver. Os caminhos para correr ou andar são estreitíssimos, não há pavilhões com serviço de mesa, muito menos um lago com travessia assegurada. Os carros passam em permanência. Não há segurança. Como patinava pensei que patinar no gelo seria semelhante… ó que engano…a dor era imensa se caíamos e era fácil cair…

Também íamos à praia, a Ostende. Extensões enormes de areal meio cinzento varrido por uma ventania gélida. Procurávamos um lugar nas dunas muito bem resguardado do vento, e cheios de agasalhos… procurávamos semelhanças com o que tínhamos abandonado.

A diferença era abissal quanto à liberdade. Fugíramos dum país onde uma pessoa, por enfiar uns panfletos contra a guerra colonial nas caixas do correio, querer eleições livres, pinchar as paredes com curtas frases de “Abaixo o fascismo”, “Fim à guerra colonial”, “Eleições livres”, era presa e torturada. Presa e torturada por ler livros de autores proibidos. Em que não era permitido estarem mais de três pessoas juntas, na rua, a falarem, onde as manifestações de estudantes, ou do 1º de Maio, ou à porta do Tribunal da Boa Hora (contra os julgamentos políticos no Tribunal Plenário), eram proibidas e as pessoas corridas à bastonada e a jactos de água e tinta azul. Um país onde as pessoas normais se tornavam mesquinhas e delatoras; espreitavam atrás das tabuinhas das janelas, vigiavam, relatavam tudo o que saía do normal, às vezes em troca de uns míseros escudos. E mesmo os que não denunciavam, espreitavam… Um país triste, acabrunhado, onde o céu, o lindo céu azul de Lisboa, parecia cinzento. E podia desabar-nos na cabeça a todo o momento. Um país onde os camponeses do Alentejo, que trabalhavam de sol a sol, eram perseguidos, espancados, presos, por reivindicarem uns míseros aumentos na “jorna”. Onde os partidos políticos eram perseguidos, e o Partido Comunista proibido. Onde os sindicatos livres não podiam existir. Já ninguém se lembra do país atrasado e pobre em que vivíamos? Da falta de estradas, das pessoas que ficavam isoladas, nos montes, por falta de caminhos? Não? Esquecemos a taxa de mortalidade infantil em que as mães não sabiam de que tinham morrido os bebés, diziam que eram anjinhos que tinham ido para o céu? Já ninguém se lembra do medo de falar contra o regime? Não percebem como, para nós, foi um regalo para os olhos ver toda aquela abundância, para toda a gente, termos empregos temporários para viver dignamente e podermos estudar, falar, ler, livremente, sem sermos presos às 6 da manhã? Sem sermos expulsos da Universidade por defendermos a autonomia da universidade face ao poder político? Por termos ideias políticas e não só, diferentes do fascismo? Termos acesso a cuidados de saúde, do melhor, nós, que vínhamos dum país em que grande parte da população nunca vira um médico? Em que foi preciso umas chuvadas com inundações para os estudantes verem a imundície, em que vivia parte da população pobre, de Lisboa?

Em Bruxelas conhecemos a liberdade total de falar, de reunir, de discutir, de assistir a assembleias onde se falava de tudo, de ir ao cinema onde não havia filmes proibidos, nem teatro amordaçado. Viajámos pela ex Jugoslávia, França, Suíça, Itália, Holanda, Alemanha. Sem qualquer entrave. Visitámos museus, galerias, exposições, assistimos a concertos-

A liberdade de falar, de ler tudo o que se publicava era total. Às vezes, tendo já retomado os estudos, ficávamos na rua, à porta de casa, a falar de livros, a trocar ideias, do que aprendera nas aulas, ou do que acontecia no mundo, até altas horas da noite.

Maria Augusta Seixas (Magú) com o Rui. 

Foi o Rui, com quem passei a viver, quem primeiro me falou do papel dos anarquistas, dos trotskistas, na revolução russa de 1917, das Internacionais, dos congressos socialistas, o assassinato de Trotsky, os crimes de Estaline, o sucessor de Estaline na pessoa de Mao. Para mim, foi o desmoronar dum mundo. A invasão da Checoslováquia, o relatório de Kroutchev, desvendavam uma realidade que eu conhecia mal, que eu desconhecia. Foi ele que me fez perceber os trinta anos de exageros sobre as virtudes do marxismo-leninismo! Trinta anos com metade da Europa a viver das mentiras engendradas pelos seus próprios governos, e propaladas por redacções sem liberdade de expressão. Foi ele que me deu a ler alguma coisa sobre as atrocidades da revolução cultural na China.

Sedenta de conhecer como fora possível tanta fome, morte e terror, em nome do socialismo, e do comunismo, eu lia, lia, precisava de perceber como se podiam manter e ser amados, e por quem, esses regimes totalitários, sistemas montados para destruir a personalidade do ser humano, a individualidade de cada um.

Em Portugal, não podíamos falar de nada, nem sequer ao telefone. Nos jornais a censura cortava tudo.

Havia de tudo, em Bruxelas. No primeiro ano passámos assim, assim, os biscates davam para viver dignamente e podíamos estudar ao mesmo tempo. Todos passámos pelos biscates. Eu, por exemplo, fiz companhia a um casal de idosos que me ensinaram a fazer doce de ruibarbo e a acompanhar um caule do mesmo com sumo de tomate. Muitos aperitivos tomámos juntos … limpei, durante três meses, um dia por semana, a casa de banho de uma senhora que só se lavava com luva, no lavatório e nunca tomava banho! Outra só precisava de meio-dia, à segunda, para eu lhe lavar a loiça do convívio do fim-de-semana. Copos que não queria meter na máquina!! Tomei conta de uma criança que falava comigo em neerlandês, eu respondia lhe em português e assim nos entendíamos, sem problemas, alegremente.

Na altura, nós nem sabíamos o que eram as agências de trabalho temporário, mas foi assim que arranjámos várias ocupações, antes de recomeçar a estudar. Eu, por exemplo, arranjei ocupação numa empresa que estava a preparar os preços da mercadoria para a entrada em vigor do IVA; fazíamos as contas numa maquineta e colocávamos o preço definitivo numa determinada coluna de cartões perfurados. Comíamos na cantina da empresa e assim fiquei a conhecer os pratos preferidos dos belgas.

Quando cheguei a Bruxelas, à Casa dos Desertores, o Tó só ficara com o mínimo dos mínimos, e rapidamente comprámos as nossas coisas, parte com o dinheiro que eu trouxera. Ele já estava a trabalhar na cantina da universidade e eu para lá fui também. Acho mesmo que boa parte dos empregados da cantina universitária era constituída por exilados políticos portugueses. Ao fim de uns meses alugámos casa umas ruas acima. Tive pena de deixar aquele convívio mas tínhamos de começar a estudar, trabalhar, mandar vir os filhos. Matriculei-me em jornalismo. Deram-me correspondência para o terceiro ano visto ter três anos da licenciatura de germânicas, quando fui expulsa. Foi óptimo. O curso era “puxado”; tínhamos uma formação de cultura geral bastante aprofundada: entre outras disciplinas, história do teatro, da arte, da música, dissecámos casos de negligência jornalística, estudei as regras essenciais do jornalismo, a ética jornalística assente em diferentes documentos - desde a Carta das Nações Unidas à defesa das Minorias, todas religiosas ou de sexo. Estudámos a integração europeia, fizemos trabalhos sobre a PAC, então na “berlinda”, sobre o comportamento das diferentes classes sociais frente à televisão. Aprofundámos o papel da informação nos séculos anteriores, analisámos o conteúdo de diferentes jornais medindo com fita métrica o espaço neles dedicado às diferentes rubricas, assim como os títulos, interpretando a paginação. E muitos mais. Integrei o grupo de alunos finalistas que ganhou o 1º premio de investigação jornalística: um documentário em filme, sobre eventual corrupção numa determinada freguesia de Bruxelas onde o betão estava a tomar conta de tudo. O júri era formado por professores de La Cambre, a escola superior de Cinema de Bruxelas, e da licenciatura em Jornalismo da Universidade de Lille, França. Todos os nossos professores tinham vasta obra publicada. Quando passei de ano, tive uma bolsa de estudo. Acabada a licenciatura inscrevi-me no doutoramento. O tema que escolhi foi a presse underground, o meu tutor era o Professor Bartier. Um professor admirado por todos os estudantes pela sua integridade e saber. Gostei imenso de analisar aquela imprensa feita em papel grosseiro, duas, três folhas, cheias de desenhos originais, retratos da sociedade, poemas, críticas mordazes aos políticos. Era um mundo imenso, subterrâneo, onde os jovens se expressavam livremente. Veio o 25 de Abril e nem acabei o 1º ano do doutoramento.

Quando me licenciei, arranjei logo emprego como documentalista na Federação das Cooperativas Belgas. Redigia e editava o Boletim interno deles, e à hora do almoço lia sobre a construção do cooperativismo e do socialismo belgas que desconhecia. A biblioteca deles era riquíssima. O Rui acabara a sua especialização em Direitos do Homem, foi convidado para assistente, mas recusou. Disse-me que queria viver a vida junto de mim. Conhecer mundo. Se aceitasse, ficaria preso para sempre à Universidade e ele sabia que eu não iria aguentar esse tipo de vida, no mesmo sítio, à mesma hora, disse ele.

Através de uma agência de emprego, conseguiu o lugar de consultor jurídico numa empresa de consultadoria: as empresas filiadas telefonavam a pedir como fazer em determinada situação e ele, que rapidamente dominou toda a legislação europeia, indicava como deviam proceder de acordo com as leis de cada país. Ganhava bem e gostava do que fazia. Com dois empregos de gente passámos a viver bastante melhor. Quando fomos viver juntos chegámos a dormir no chão. Não tínhamos nada, nem uma estante. Depois, ajudada por amigos, construi uma estante com caixotes de venda de frutas e verduras, que escolhia nas frutarias e mercearias do bairro onde vivíamos.       

De vez em quando, íamos à Grande Place, como qualquer belga, beber umas cervejas. Não sou de beber, mas aquelas cervejas eram mesmo boas, gostosas, algumas com elevado grau de álcool. Havia imensas variedades – agora também já cá temos disso, 40 e tal anos depois. E havia copos diferentes, conforme as cervejas.

Na Bélgica, depois das dez da noite não podíamos fazer barulho. Tínhamos de andar de chinelos, conversas a meia voz e música baixinho. Sexta à noite, a gente nova ia para os bares embebedar-se e jogar nas maquinetas a dinheiro. A minha última morada foi num R/C; aí já estávamos menos constrangidos e conversávamos até às tantas da manhã, fizesse chuva ou frio, quer as notícias de Lisboa e do mundo fossem boas ou más, e assim nos tornámos adultos.

Foi em Bruxelas que vi, pela primeira vez, no anfiteatro da Universidade, Béjart ao vivo. Fiquei tão fascinada pelo desempenho dele que ainda hoje relembro emocionada os seus movimentos de pés, os braços, as mãos, os seus olhos. Depois, várias vezes fui ver a sua companhia quer no Teatro de la Monnaie quer em Lisboa e até no Rio de Janeiro.

Quando cheguei a Bruxelas em 68 também nós, os portugueses, organizámos uma pequena contestação na universidade. Tínhamos uma ala da universidade, conhecido pelo “corredor dos portugueses”, que estava à nossa guarda e tínhamos de impedir qualquer tentativa de entrada da polícia de choque ou dos fascistas. A polícia não entrava no campus universitário, a autonomia universitária era respeitada a 100% mas deste modo, tomávamos posição. Aí, lembro-me das conversas com os estudantes judeus, sionistas /socialistas… contavam que tinham sido os sionistas a alertar o mundo para o que se estava a passar com os judeus; espoliados dos seus haveres, automóveis, quadros, comércio, fortunas, impedidos de trabalhar nos serviços públicos, de estudar. Tinham organizado a ida de milhares deles para a Suíça, Áustria, em troca de dinheiro. Forjado bilhetes de identidade, certificados de baptismo, garantido a protecção de outros, em embaixadas, em troca de dinheiro. A partir de 44, começaram os guetos e o extermínio em massa. No fim da guerra, os pais deles tinham levado judeus perdidos pela Europa, para um navio, rumo à Palestina. Contavam que nunca parariam a perseguição e captura de criminosos de guerra alemães, nem seriam escorraçados do seu país, Israel. No grupo dos refugiados políticos portugueses a simpatia ia mais para os palestinianos, mas eu preferia ouvir os sionistas lembrar os judeus que na história recente tinham estado do lado dos revolucionários, dos socialistas.

Havia sempre desatino quando encontrávamos vietnamitas. Eles sabiam que éramos refugiados políticos e, naquela altura, quem estudava em Bruxelas eram os filhos dos ricos do Vietname do Sul. Eram todos fascistas.

Um dia o Lav, um engenheiro químico, quando eu disse que os receava porque não sabia como me esquivar quando eles se punham com aquela posição de perna levantada, prontos a dar uma patada nas nossas cabeças, contou-me que, quando tinham ido com esses truques para ele, lhes partira uma cadeira em cima e dera uns valentes murros.

E ria-se, riamos os dois. Via a cena: os vietnamitas fascistas, magrinhos estatelados no chão, a cadeira aos bocados e o Lav de punho cerrado erguido, ameaçador. Ia sempre ao lado dele quando nos manifestávamos pela paz, ou contra a NATO, a caminho da sede da NATO, a pé, ou a favor da independência das colónias ou contra a guerra no Vietnam ou contra os coronéis gregos. Os exilados políticos portugueses marcaram sempre presença. Ele protegia-me sempre, era um tipo alto, bem encorpado, corajoso. Um dia agarrou nas rédeas dum cavalo, para me proteger, apanhou ele a espadeirada. Ficámos para sempre amigos. Casou com uma psicóloga belga que dizia que os portugueses não controlavam o esfíncter… Era uma mulher magríssima, muito inteligente, mas com esta malfadada ideia sobre o atraso dos portugueses… Quando vinha a Portugal já depois do 25 de Abril, ele ia direito ao escritório de advogado do Rui, por causa dos negócios que cá deixara, e trazia-me sempre um livro. Eu saltava sobre o livro, sempre muito bem escolhido. Naquele tempo, os franceses ainda escreviam e traduziam romances óptimos. Na minha estante, havia uma prateleira onde eu arrumava, cuidadosamente, os livros dados por ele. Um dia deixou de vir.

Refugiados políticos na Bélgica havia de todas as profissões e partidos. A guerra nas colónias marcou muita gente. Os que lá estiveram e os que não foram. Um dos primeiros desertores da guerra tinha ficado meio transtornado da cabeça. Vivia com uma belga que o conhecera ainda lúcido. A solidão dera cabo dele. Andava sozinho na rua enquanto ia falando com os vários serviços secretos: CIA, KGB, MI5, secreta alemã. Fazia os relatórios, dava instruções, recebia mensagens, tudo em voz alta e bastante gesticulação. Mais tarde foi a vez do Ma, o primeiro desertor da Guiné. Era um espírito são. Suicidou-se, já depois do 25 de abril e regressado a Portugal.

Depois de ter ido viver com o Rui, muita gente deixou de nos frequentar, cumprimentavam-me, mas a ele, não. Ele desviara uma mulher casada, mãe de 3 filhos. Para mais, eu e o Tó éramos um casal muito bem visto na comunidade estudantil de Bruxelas. O Rui foi a única paixão da minha vida.

Reencontrei muitos, já em Portugal, nos enterros de amigos, e então abraçavam-me longamente e diziam “Ó Magú, que saudades”. A certa altura deixei de ir aos funerais, morreram muitos, há uma década atrás. Sida, cancro, AVC. Foi um grupo enorme de gente boa e qualificada, que se foi.

Muitos elos se tinham quebrado. Nem todos tiveram forças para recomeçar nova vida em Portugal e ficaram na Bélgica. Como qualquer turista, aparecem nas férias do Verão para gozar o nosso sol no Algarve, rever a luz extraordinária de Lisboa, as colinas, o Tejo.

 Mas a maior parte regressou a Portugal depois do 25 de Abril.

O dia 25 de abril de 74 foi o dia mais feliz da minha vida

Ouvi logo nas notícias da manhã, devia ser o noticiário das 7h30 na rádio e acreditei. Já não era uma saída falhada. O Mário Barroso, sobrinho do Mário Soares, tinha-nos confiado umas semanas antes que o tio lhe dissera para estar atento, que alguma coisa ia acontecer, daí a muito pouco tempo. Eu pulava e gritava casa fora “A ditadura acabou. A PIDE vai acabar. Vamos voltar a casa!!”. Da redacção da RTBF onde estagiara chegou a confirmação de tudo, acrescentando que, segundo as informações que lhes chegavam, nós estávamos de parabéns. Eu explodia de alegria. As ligações com o país estavam cortadas. Eu acreditava que os militares iam acabar com aquela inenarrável guerra, quem obtinha uma ou outra informação tranquilizava-nos: “Está tudo a correr bem. Não há tiros!”.

No emprego davam-me os parabéns!! Abraços! Beijos! O meu superior directo era um refugiado do país basco. Abraçou-me comovido num abraço sem fim…

Nessa altura, já nós tínhamos televisão e vivíamos razoavelmente. Era uma casa de ricos… diziam os amigos. Ganhávamos bem, tínhamos sofás, estantes, livros, discos, carro. Veio gente a nossa casa ver o noticiário da noite: os militares tinham derrubado o governo de Caetano. Mais tarde, falaram da libertação dos presos políticos. Não cabíamos em nós de contentes. Era uma felicidade imensa que transbordava em choros bem soluçados. Finalmente, íamos poder voltar para o “nosso” pequeno rectângulo atrasado e pobre.

O Rui estava mais renitente… E a guerra? Continuavam com a guerra nas colónias?  Ele e outros nascidos nas colónias reuniram-se e redigiram um documento dirigido aos militares dizendo que o 25 de Abril só se completaria com o fim da guerra nas colónias e a independência das mesmas.

Na Bélgica, formámo-nos médicos, engenheiros, cientistas, filósofos, professores do secundário e universitário, realizadores, historiadores de arte, cineastas, homens do teatro, poetas, pintores, economistas, sociólogos, jornalistas, escritores, matemáticos. Estivemos em todas as áreas, hoje quase todos reformados.

Escolhi o jornalismo, esqueci as línguas germânicas, estudei em francês. E todos os dias me levanto a pensar que, no Portugal de hoje, tenho a liberdade de dizer o que me apetece, de errar, de cometer exageros, há total liberdade de expressão, de uma maneira geral a grande pobreza de então foi erradicada (na zona de Castro Daire, havia gente na serra a viver em grutas), o país desenvolveu-se enormemente, em todos os ramos da ciência damos meças (graças a Mariano Gago e seus continuadores, entre os quais incluo o actual Ministro da Educação), todos temos acesso a uma saúde de qualidade, a cultura generalizou-se, as férias vieram para ficar, conhecemos mundo, todos os anos cada vez mais mulheres acedem ao ensino universitário como garantia da sua independência.

 Acabo de recordar estes anos de juventude na Bélgica e pergunto-me a quem poderá interessar o nosso percurso de estudantes universitários fora do seu país por recusarem participar na guerra colonial? Tenho sempre presente que a guerra acabou graças a uma revolução militar levada a cabo pelos que combatiam no Ultramar. Mas também sei que a guerra acabou porque muitos estudantes universitários preferiram o exílio a combater os povos das colónias de África, na tropa faltaram as chefias intermédias de milicianos e os do quadro estavam fartos de comissões. E, no campo, cada vez mais jovens fugindo à miséria e à fome, saltavam a fronteira, como eu fizera.

Tinha 20 e poucos anos quando deixei tudo para trás. Deixei os estudos por terminar, três filhos que adorava e, algures, perdi um marido que amava. Fiquei sem os meus locais de referência: a quinta, o palacete do Porto, o Banzão e a Praia Grande, o Bairro da Madre de Deus. Nunca mais os recuperei. Envelheci rapidamente nesses seis anos de exílio. Os meus únicos momentos de felicidade plena eram passados no bosque quando sentia o cheiro da Quinta dos Linhares de Cima, ou na nossa sala, sozinha, a ouvir os meus compositores preferidos.

 Deixei de me sentir útil a uma causa, de ter um objectivo político na vida.

Perder o Partido é perder um bocado da nossa identidade. É perder a fraternidade, a comunhão, a maneira de pensar idêntica, de ver os acontecimentos políticos sob um mesmo prisma. 

Nos anos que se seguiram, e até hoje, continuei essa procura de explicações para o que se passou no mundo socialista. Mas o tema - a construção do socialismo - é tão problemático que ainda hoje me comovo quando recordo a dedicação com que nós, jovens universitários, nos envolvemos na luta pelo fim do fascismo e da guerra colonial, pelo fim da perseguição às minorias religiosas ou étnicas, em nome da liberdade e do socialismo.

Lembrar e relatar - como faço neste momento - arrasta uma mistura tremenda de recordações. Umas mais enxutas outras mais comovidas. Serão as primeiras mais próximas da realidade? Será o relato da minha vida de resistente, sem grande aprofundamento, um contributo válido para se perceber, através a minha experiencia traumática, o trauma de muitos da minha geração?

Se o faço é porque entendo que não nos devemos calar perante a prepotência do que nos foi feito. Escrever ainda é a única forma de nos libertarmos da violência sofrida. Se escrevermos voltamos a reviver o sofrimento, o trauma de vidas cortadas. Porque hoje estamos todos mais ou menos bem, e o bem-estar actual faz nos esquecer esse regime de falta das liberdades essenciais. Mas também, hoje, há um novo rumor de fascismo escondido, a emergir, devagarinho, lentamente, insidiosamente.

Sair do Partido é ser excluído, afastado de todos, dos amigos de sempre, da troca de ideias nem que seja para estarmos de acordo em quase tudo.

Era também esquecer as vigilâncias em comum, a compreensão imediata de determinados sinais de alarme, o medo que nos unia quando distribuíamos panfletos, contra a guerra, pela libertação de presos políticos, ou dos nossos colegas estudantes, quando vendíamos o Avante, ou íamos a casa de amigos dos pais pedir dinheiro para os camaradas clandestinos, sempre que corríamos à frente da Polícia de choque, ou nos reuníamos para discutir e redigir tarefas futuras, trocar livros, fazer o relato do que acontecera politicamente ou nas associações respectivas. Enchia nos de orgulho e dava-nos força para continuarmos, estarmos por dentro do funcionamento da resistência ao fascismo.  

Esta paixão pelo Partido foi a paixão pela fraternidade, pela irmandade, pela camaradagem, e a falta dela fará muitos terem preferido não ver o que realmente se passava no mundo socialista/comunista. O Partido era um refúgio onde todos eram camaradas iguais e ninguém julga ninguém pelo seu passado desde que se mantenha no Partido e obediente à linha traçada pelo Comité Central e o seu Secretário-Geral. 

Há uma relação visceral com o Partido. Cortar com ele é, para além de tudo o mais, ter de enfrentar os erros do passado, os silêncios que se teceram à volta desses erros e que acarretaram a morte, e o degredo para tantos comunistas. É uma ferida que não cicatriza na nossa geração. Na minha opinião, em Portugal, foi a guerra colonial que acelerou o fim da irmandade comunista. E, claro, o papel da China quando do documento de Kroutchev.

O 25 de Abril

Com o 25 de Abril, era preciso esquecermos o passado o mais depressa possível e virarmo-nos para a construção do presente.

Maria Augusta Seixas (Magú) no Irão, 2018.

Hoje vivemos obcecados pelo consumo e dinheiro para consumir, pela liberdade individual, pela felicidade individual. A prosperidade, o crescimento da sociedade, do investimento, a economia, são as ideias chave da sociedade actual.

Acho muito, mas muito difícil, a juventude de hoje perceber o que foi a nossa entrega a uma causa: a defesa do socialismo/comunismo que traria uma sociedade mais igualitária, em oposição aos nacionalismos exacerbados que conduziram à I Guerra Mundial. Ao defendermos o socialismo fomos incapazes de ver os erros cometidos em seu nome.

Na Europa, o fascismo foi vencido com a II Guerra Mundial, mas em Portugal, não. O comunismo em Portugal assumiu a forma de luta antifascista.

Quando regressei a Portugal percebi que os “regressados” tinham de fazer o seu caminho pelos seus próprios meios e qualificações. Foi o que fiz e o que vi fazer aos que tinham sido os meus companheiros de exílio. Felizmente, tínhamos tido uma formação universitária muito mais aberta e completa do que a facultada pelas nossas universidades. Mas não foi fácil a vida para muitos dos regressados. O que vale é que éramos muito novos e tínhamos formação académica suficiente para fazermos frente a muitos atropelos.

Decidi que ia deixar a militância da política. Acompanhei a partir da redacção da RTP toda a movimentação política, fui a todas as manifestações, comícios, reencontrei amigos, convivi com todos.

Na Direcção de Informação da RTP, pedi escusa da “cobertura” da política para o TJ e programas não diários.

Mas o lastro daqueles anos acompanhou-me sempre.  

Maria Augusta Seixas (Magú) no Irão, 2018.

Não vou falar disso. Ainda é muito cedo para analisar esse passado recente. Está intrinsecamente ligado aos meus filhos. E a minha relação com eles, ou a falta dela, amargurou me tanto que às vezes nem atinava com o que fazer no dia-a-dia. Ficava ausente. Superei muita dor com o amor e apoio do Rui, mas a marca ficou para sempre, como um ferro que me magoa todos os dias e se enterra mais na minha carne, sempre mais fundo, de cada vez que relembro esse tempo. Essa é uma parte da minha caminhada, a que só me dedicarei depois de escrever a do Rui, se para tanto tiver lucidez e anos de vida.

Ninguém pode perceber o alívio e a dor que é escrever a minha vida de cada vez que mo pedem. Dou-lhes o meu sofrimento, as minhas alegrias, o meu espírito, os meus compromissos, aquilo em que falhei. Dou-lhes uma parte de mim e isso significa imenso, porque gostaria que através do meu depoimento compreendessem a vivência de uma parte da minha geração.

Fui plenamente feliz, em alguns períodos da minha vida, e guardo essa recordação comigo. A maior parte das vezes esses momentos foram de paixão, de amor, da ternura avassaladora do amor, mesmo que isso pareça quase uma heresia aos olhos de muita gente.

Eu quis ser feliz.


*Maria Augusta Anselmo Seixas é licenciada em Jornalismo e Mass Media pela Universidade Livre de Bruxelas (1970) e Mestre em Comunicação e Jornalismo pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (2004).

Foi membro do Conselho Deontológico dos Jornalistas, 2004-2007.

Jornalista da RTP durante 30 anos, entre outras distinções, recebeu duas vezes o Grande Prémio Gazeta de Jornalismo, do Clube de Jornalistas (1989 e 2001). O seu trabalho “O Século das Mulheres” obteve o prémio Elina Guimarães 2002, das ONG´s da Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres (CIDM).

Tem participado em vários seminários e congressos, versando a temática do jornalismo, das feministas e das mulheres operárias.

Colaborou no vol I e II do Dicionário No Feminino, assim como no Vol. I e II dos Roteiros Feministas (UMAR /Faces de Eva) e no Projecto Memória e feminismos da UMAR/ Desocultando quotidianos de mulheres, 2014.

Membro do Conselho Consultivo do Centro Documentação e Arquivo Feminista Elina Guimarães (UMAR).

É comendadora da Ordem do Infante Dom Henrique (Março 2005 / Presidente Jorge Sampaio).


[i] Sedas NUNES e Matias Ferreira, O meio universitário em Portugal, Lisboa, 1968, separata da revista Análise Social nos 22,23 e 24 e n.º25, 1969, Estudos sobre a Universidade Portuguesa.

[ii] A 4 de Junho de 62, os estudantes proibidos de reunir frente à Reitoria da Cidade Universitária concentraram-se em Medicina, onde a polícia carregou, atingindo violentamente o professor Luís Filipe Lindley Cintra, que se manteve sempre ao lado dos estudantes. A imagem mostra a homenagem que as alunas de Letras lhe prestaram.

[iii] Também tivemos grandes dirigentes Entre muitos outros Jorge Sampaio, Victor Wengorovius, Medeiros Ferreira, Eurico Figueiredo, Anselmo Aníbal, Teixeira Ribeiro, Ana Maria Alves, Albano Freire Nunes, Eugénio Rosa.

[iv] Maria Emília Brederode pertencia na altura á Direcção da pró-Associação de Letras.

[v] Manuel Maria Calvet Magalhães, pai da Mané, foi um grande pedagogo. Era Director da Escola Francisco Arruda e consultor da FCGulbenkian em assuntos de cariz pedagógico. Licenciado em pintura pela ESBAL, foi tb um grande pintor.

[vi] Anselmo Aníbal e Nuno Brederode Santos no «Relatório sobre as estruturas do movimento associativas», apresentado ao II Seminário de Estudos Associativos de Setembro de 64 , escreviam sobre o  FESTIVAL “que alcançou largo e merecido êxito (…) é uma realização exemplar no que toca à projecção das AAEE para fora da universidade, com vista a conquistar o reconhecimento da opinião pública”.

[vii] As Pedagógicas começaram por defender uma reforma do ensino, depois o apoio à investigação, e a seguir ensino superior para todos com apoios escolares e residências para os filhos das classes pobres. O regime ia-nos empurrando para uma etapa, sempre mais à frente.

[viii] Meus pais diziam-me para tirar línguas germânicas, porque, para eles, o inglês era a língua do futuro. A isso eu respondia: “mas eu não quero ser professora”. E a minha mãe disse: “podes ser tradutora, interprete numa grande organização internacional” e isso convenceu-me. Estar por dentro das decisões políticas que se tomam a outro nível, sim, era sedutor. “Além disso”, dizia a minha mãe, “podes sempre ir fazendo o dedo à escultura. Com um salário garantido”. 

[ix] Michel Giacometti, etnomusicólogo corso que fez a recolha da música regional portuguesa, tradições, objectos populares. Fundou os Arquivos Sonoros Portugueses e com Fernando Lopes Graça editou o Cancioneiro Popular Português, colectânea de canções e músicas instrumentais regionais de Portugal.

[x] O Partido Comunista Português era a única força política organizada com uma prática de luta contra o fascismo e com um ideário coerente. As JAP-Juntas de Acção Patriótica dos estudantes de Letras em 63 coordenadas por Teixeira Ribeiro, clandestinas.  

[xi] Mais tarde conheci pessoalmente Rogério Ribeiro no âmbito dum documentário que estava a fazer sobre o Dr Álvaro Cunhal. Relatei-lhe a cena. Riu-se com prazer, recordou esses tempos de jovem pintor à procura dum estilo, da ida a Berlim a convite de Álvaro Cunhal. Com muito humor, contou que foi recebido no aeroporto com todas as honras. Tinha um carro formidável à sua espera e dentro dele, Álvaro Cunhal. Todos tratavam o SG do PCP, “o Álvaro”, com grande respeito. Fez a observação a Cunhal que de pronto respondeu: “tratam assim todos os camaradas e amigos”. E foi numa quase limusina, que Rogério Ribeiro foi conduzido a ver a arte do operariado, a arte para o povo. 

[xii] A pintura chama-se “No limiar da era atómica”. Vivia-se a guerra fria e a ameaça nuclear.

[xiii] A CEI-Casa dos Estudantes do Império, foi criada em 44 para reunir os jovens do Ultramar a estudar na metrópole, mas cedo se tornou num foco de contestação ao regime e ao colonialismo. Muitos dos seus sócios participaram nas lutas de libertação das colónias e foram quadros dirigentes dos novos países independentes no pós 25 de Abril. A Casa foi encerrada pela PIDE em 2 de Setembro de 65 pelas 8.00.