Num dos seus mais inspirados fragmentos, Nietzsche chamava a atenção para aquilo que designava como a "inveja" sentida pelos deuses face à mortalidade dos seres humanos. É a nossa condição de seres frágeis, dirigidos para a destruição e o esquecimento, aquilo que, paradoxalmente, nos permite o confronto com a possibilidade da transcendência, com a criação de algo maior do que nós, algo que persistirá no tempo que se seguirá à nossa morte. Quem escreve o livro mais genial não ultrapassa os mais humildes pais, que, abnegadamente, se sacrificam pela educação dos seus filhos. São ambos atos de grandeza. As mulheres e os homens estão unidos no mesmo horizonte de morte, mas também no mesmo repto de esperança. Não se trata da eternidade, que é uma espécie de duração para além do tempo, que cabe apenas à teologia pensar. A imortalidade é a duração dos heróis e das heroínas no tempo dos outros, das narrativas, das evocações, do mundo que ajudaram a preservar. A morte de Miguel Portas, um homem que dedicou a sua vida a uma cidadania incansável ao serviço da compreensão dos desafios contemporâneos e da procura do bem comum, faz-nos recordar que também as sociedades são mortais e que só a boa política consegue prolongar a sua existência. A melhor homenagem que lhe poderemos prestar, a partir do lugar que cada um de nós habita, é continuar o seu trabalho, como portugueses e europeus. Sem negar a morte, nem temê-la. Antes usando-a como estímulo para uma sociedade mais justa e robusta. Procurando merecer a coragem libertadora a que só os mortais podem almejar.
Artigo de Viriato Soromenho-Marques, publicado no jornal “Diário de Notícias” a 27 de abril de 2012