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A morna recebe indicação positiva para ser património imaterial da humanidade

No dia em que o primeiro-ministro cabo-verdiano anuncia que a UNESCO atribuiu classificação positiva à morna para poder vir a ser declarada património imaterial da humanidade, avaliação final que será feita em dezembro, Soraia Simões de Andrade escreve sobre o significado desta forma musical para a cultura deste país.
Cesária Évora. Ilustração de Felizardo em http://felizardocartoon.blogspot.com/
Cesária Évora. Ilustração de Felizardo em http://felizardocartoon.blogspot.com/

Oh mar, mar azul....

A morna poderá vir a integrar a partir de agora a Lista representativa da UNESCO, na qual o fado e tantas outras formas culturais e musicais do mundo estão.

A morna, fundamental na história da Música Popular de Cabo Verde, terminologia oriunda do étimo britânico mourn, a qual durante a presença colonial portuguesa se exprimiu através de melodias (in)tensas, acompanhada de instrumentos como o acordeão, o cavaquinho, a viola, ela caminhou com o folclore e fez-se ver e ouvir a partir primeiramente da Ilha de São Vicente (Mindelo).

O sentimento das mulheres dominadas pela sodade, pelas lembranças, quem sabe resultado de memórias intrincadas de um Mindelo enquanto porto frequentemente propício ao comércio, através tanto de espanhóis como portugueses, de escravos oriundos da África Ocidental e que marcam, até hoje, não só Mindelo como as várias ilhas de Cabo Verde.

Se à coladera se atribuía uma musicalidade com características festivas à morna, muito por causa da sua "Diva dos Pés Descalços", como era/é conhecida não só uma das maiores referências da cultura cabo-verdiana, Cesária Évora, como uma das suas maiores embaixatrizes no mundo, atribuir-se-á o lamento, o infortúnio (com a fome, as epidemias, o álcool, os despedimentos) neste pedaço de África apetecível, em tempos, nas rotas do negócio da escravatura.

Cesária cantava ''Sodade de nha Terra'', ela que seria obrigada a ganhar a vida cantando nos navios e espaços frequentados por militares no Mindelo, mas o seu cantar parecia não exprimir apenas a sua vivência, mas sim os manuais existenciais de uma grande parte de cabo-verdianas/os.

A sua voz, ainda hoje, é parte da história cultural de Cabo Verde e dos cabo-verdianos desde o esclavagismo. De todo os infortúnios referidos, mas sobretudo os da febre amarela – que fez desaparecer a partir de 1861/62 grande parte da população na cidade –, do desemprego e da seca que dariam lugar não só à substituição do carvão por petróleo para os navios como reforçaram a miséria e a fome, a prostituição e as doenças venéreas dela derivadas.

Cesária transportou uma melancolia para a voz que onde quer que pisasse subentendia através dela, e a quem a ouvisse, um pedaço importante da história do seu povo.

Cesária, como outros mindelenses – Bana ou Tito Paris mais tarde -, conquistou inicialmente França com o seu cantar. Cantar esse sobre o qual vários músicos e compositores de Cabo Verde a residir em Portugal, mais dados às particularidades fortemente associadas às influências em alguns segmentos musicais, diziam ser ''o seu fado''.

Cesária Évora e Bana (um dos responsáveis pela primeira gravação da diva de Cabo Verde por cá, em Lisboa) devolveram aos cabo-verdianos dispersos por todo o mundo a sodade entoada na sua voz.

O sentimento de Cesária deixa de ser uma ''emoção crioula'' para se tornar algo universal que sopra, em tom confessional, muitas memórias, cores, visões, sons, experiências comuns.

Sob a etiqueta basilar, Lusafrica, e com o Festival na Praia da Baía (das Gatas) que acolheu/e os seus músicos mais carismáticos e expressivos no primeiro fim-de-semana em Agosto de lua cheia, além de vários espetáculos, assim ela fez o seu caminho.

A morna está na rota do mundo musical há muito graças a Cesária, Mindel Band, Bau, Luís Morais, Tito Paris, Bana, Morgadinho, Sérgio Frusoni, Titina, Malaquias Costa, Ana Firmino, Voginha, Frank Cavaquinho, Chico Serra, Luis Rendall, Celina Pereira, Mariana Ramos, Teófilo Chantre, ou mais novos como Lura, Mayra Andrade, Bilan, entre tantos outros e outras.

Parabéns a todos os promotores da candidatura pela elevação da morna ao lugar onde inquestionavelmente ela tem igualmente de estar: o de património cultural imaterial da Humanidade. Viva!

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