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Médio Oriente: O Califado aproxima-se do fim? (1ª Parte)

A guerra na Síria e no Iraque produziu dois novos Estados de facto nos últimos cinco anos – o Estado Islâmico e Rojava - e permitiu a um terceiro quase-Estado – o Governo Regional do Curdistão - ampliar substancialmente o seu território e poder. Artigo de Patrick Cockburn. A segunda parte deste artigo será publicada este domingo, dia 6 de março.
Foto da wikimedia.

Os dois novos Estados, ainda que não reconhecidos internacionalmente, são mais fortes militar e politicamente do que a maioria dos membros da ONU. Um deles é o Estado Islâmico (EI), que estabeleceu o seu Califado no este da Síria e no oeste do Iraque no verão de 2014 após capturar Mossul e derrotar o exército iraquiano. O segundo é Rojava, designação dada pelos curdos sírios à zona que controlam desde que o exército sírio se retirou em 2012, e que agora, graças a uma série de vitórias sobre o EI, se estende pelo norte da Síria entre o Tigre e o Eufrates. No Iraque, o Governo Regional do Curdistão (GRK), já muito autónomo, aproveitou a destruição, por parte do EI, da autoridade de Bagdad no norte do Iraque para expandir o seu território em 40 por cento, assumindo o controlo de áreas há muito disputadas com Bagdad, incluindo os campos petrolíferos de Kirkuk e alguns distritos mistos curdo-árabes.

A pergunta é se estas mudanças radicais na geografia política do Médio Oriente persistirão - ou até que ponto persistirão - quando o atual conflito terminar. É provável que o Estado Islâmico acabe por ser destruído, tal é a pressão dos seus desunidos mas numerosos inimigos, ainda que os seus militantes continuem a ser uma força no Iraque, Síria e no resto do mundo islâmico. Os curdos encontram-se numa posição mais forte, beneficiando do apoio dos Estados Unidos, mas esse apoio só existe porque os curdos proporcionam cerca de 120.000 tropas terrestres, que, em cooperação com as forças aéreas da coligação liderada pelos Estados Unidos, demonstraram ser uma forma eficaz e politicamente aceitável de luta contra o EI. Os curdos temem que este apoio desapareça se e quando o EI for derrotado e receiam ficar à mercê dos governos centrais ressurgidos no Iraque e na Síria, bem como da Turquia e Arábia Saudita. "Não queremos que nos utilizem como carne de canhão para tomar Raqqa", disse-me um líder curdo sírio em Rojava no ano passado. Ouvi o mesmo este mês a cerca de 805 quilómetros a este, no território do GRK, perto de Halabja na fronteira iraniana, de Muhammad Haji Mahmud, um comandante Peshmerga veterano e secretário geral do Partido Socialista, que liderou um milhar de combatentes na defesa de Kirkuk contra o EI em 2014. O seu filho Atta morreu na batalha. Preocupa-lhe que "uma vez que Mossul seja libertado e o EI derrotado, os curdos não tenham o mesmo valor a nível internacional". Sem este apoio, o GRK seria incapaz de manter-se nos territórios em disputa.

A expansão dos estados curdos não agrada nenhum dos países da região, ainda que alguns - incluindo os governos de Bagdad e Damasco – considerem que este desenvolvimento os favorece temporariamente e, em todo caso, são demasiado débeis para se oporem. No entanto, a Turquia ficou profundamente horrorizada ao descobrir que a revolta síria de 2011, que esperava que marcasse o início de uma era de grande influência turca em todo o Médio Oriente, produziu, em seu lugar, um estado curdo que controla metade do lado sírio da fronteira turca a sul (de 885 quilómetros). Pior ainda, o partido no poder em Rojava é o Partido da União Democrática (PYD), que é em tudo menos na designação, o ramo sírio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), contra o qual Ancara tem vindo a travar uma guerra de guerrilha desde 1984. O PYD nega a relação, mas em todos os escritórios do PYD há uma foto na parede do líder do PKK, Abdullah Ocalan, que está numa prisão turca desde 1999. No decurso do ano que se seguiu à derrota do EI no cerco da cidade sírio-curda de Kobani, Rojava expandiu-se territorialmente em todas as direções, com os seus líderes a ignorar constantemente as ameaças da Turquia de uma intervenção militar. Em junho passado, as Unidades de Proteção Popular (YPG) sírio-curdas tomaram Tal Abyad, um importante ponto de passagem na fronteira com a Turquia a norte de Raqqa, permitindo que o PYD unisse dois dos seus três enclaves principais, próximo das cidades de Kobani e Qamishli; agora está a tentar unir o terceiro enclave, mais a oeste, em Afrin. Estes avanços rápidos apenas são possíveis porque as forças curdas estão a operar sob a proteção aérea liderada pelos Estados Unidos, que multiplica massivamente o seu poder de fogo. Eu estava a este de Tal Abyad pouco antes do ataque final das YPG e os aviões da coligação passavam continuamente por cima. Tanto na Síria como no Iraque, os curdos identificam os alvos, chamam os ataques aéreos e depois atuam como uma 'força de limpeza'. Onde o EI resiste e combate, sofre muitas baixas. No cerco de Kobani, que durou quatro meses e meio, 2.200 combatentes do EI pereceram, a sua maioria pelos ataques aéreos dos Estados Unidos.

Ancara advertiu várias vezes que se os curdos se moverem para oeste na direção de Afrin, o exército turco intervirá. Em concreto, estipulou que as YPG não devem cruzar o Eufrates: esta é uma "linha vermelha" para a Turquia. Mas quando em dezembro as YPG enviaram as suas milícias árabes, as Forças Democráticas da Síria (SDF), através do Eufrates pela barragem de Tishrin, os turcos não fizeram nada - em parte porque o avanço foi apoiado em diferentes fases por ataques aéreos norte americanos e russos contra alvos do EI. As objeções turcas tornaram-se cada vez mais descontroladas desde o início do ano, na medida em que as YPG e o exército sírio, ainda que a sua colaboração ativa não tenha sido comprovada, puseram em marcha o equivalente a um movimento de pinçai contra as linhas de abastecimento mais importantes do EI e da oposição síria, que passam por um estreito corredor entre a fronteira turca e Aleppo, outrora a maior cidade síria. A 2 de fevereiro, o exército sírio, apoiado por ataques aéreos russos, cortou o principal caminho para Aleppo e uma semana mais tarde o SDF conquistou a base aérea de Menagh da célula da Al-Qaeda na Síria, a Frente al-Nusra, que a Turquia tem vindo a ser acusada de apoiar de forma encoberta no passado. A 14 de fevereiro, a artilharia turca começou a disparar projeteis contra as forças que tinham capturado a base e a exigir a sua retirada. A complexa combinação de milícias, exércitos e grupos étnicos que lutam pelo controlo desta pequena mas vital área a norte de Aleppo faz com que os combates sejam confusos, mesmo para os padrões sírios. Mas se a oposição não tiver qualquer comunicação com a Turquia por algum tempo ficará seriamente, se não fatalmente, debilitada. Os estados sunitas - concretamente a Turquia, Arábia Saudita e Qatar – fracassarão na sua longa campanha para derrotar Bashar al-Assad. A Turquia enfrentará a perspetiva de um pequeno Estado hostil controlado pelo PKK ao longo do seu flanco sul, o que torna mais difícil sufocar a insurreição de nível reduzido mas de longa duração dirigida pelo PKK entre a minoria curda de 17 milhões existente no país.

Diz-se que Erdogan queria que a Turquia interviesse militarmente na Síria desde maio do ano passado, mas até agora foi travado pelos comandantes do exército. Eles argumentam que a Turquia estaria a entrar numa guerra muito complicada, na qual se oporia aos EUA, Rússia, Irão, ao exército sírio, ao PYD e EI, enquanto os seus únicos aliados seriam a Arábia Saudita e algumas das monarquias do Golfo. A participação na guerra da Síria seria, sem dúvida, um grande risco para a Turquia, que, apesar de todas as suas estrondosas denúncias do PYD e das YPG como "terroristas", se limitou em grande parte a pequenos atos de retaliação vingativa. Ao turco Ersin Umut Güler, um ator e diretor curdo em Istambul, foi negada autorização para levar para casa o corpo do seu irmão Aziz para ser enterrado, que tinha morrido a lutar contra o EI na Síria. Antes de pisar uma mina terrestre, Aziz tinha estado com as YPG, mas era um cidadão turco e pertencia a um partido radical socialista turco - não ao PKK. 'É como Antígona,' diz Ersin. O seu pai viajou para a Síria e nega-se a regressar sem o corpo, mas as autoridades turcas não cedem.

A resposta da Turquia à ascensão de Rojava é beligerante no tom, mas ambivalente na prática. Num dia, um ministro ameaça com uma invasão terrestre em grande escala e, no seguinte, outro responsável descarta essa hipótese ou condiciona-a à participação dos Estados Unidos, o que é pouco provável. A Turquia culpou as YPG pelo ataque com um carro bomba em Ancara que matou 28 pessoas a 17 de fevereiro, o que poderia aumentar as hipóteses de intervenção, mas, nos últimos tempos, as ações turcas foram incoerentes e contraproducentes. Quando, a 24 de novembro, um F-16 turco derrubou um bombardeiro russo, no que parece ter sido um ataque cuidadosamente planeado, o resultado previsível foi o envio, por parte da Rússia, de aviões de combate sofisticados e de sistemas de mísseis anti aéreos para garantir a sua supremacia aérea sobre o norte da Síria. Isto significa que se a Turquia lançasse uma invasão por terra, teria de fazê-lo sem cobertura aérea e as suas tropas ver-se-iam expostas aos bombardeamentos dos aviões russos e sírios. Muitos líderes políticos curdos argumentam que uma invasão militar turca é pouco provável: Fuad Hussein, chefe de gabinete do presidente do GRK, disse-me em Erbil no mês passado que "se a Turquia fosse intervir, tê-lo-ia feito antes de derrubar o bombardeiro russo” - ainda que isto pressuponha, certamente, que a Turquia sabe atuar em defesa dos seus próprios interesses. Ele argumenta que o conflito será decidido por dois fatores: quem está a ganhar no campo de batalha e a cooperação entre os EUA e a Rússia. "Para solucionar a crise, referiu, “terá de ser através de um acordo entre as super potências” - e, pelo menos no Médio Oriente, a Rússia recuperou o status de super potência. A nova aliança flexível entre os EUA e a Rússia, ainda que interrompida por episódios de rivalidade ao estilo da Guerra Fria, resultou num acordo em Munique a 12 de fevereiro no sentido de fazer chegar ajuda a povos e cidades sitiados da Síria e de um 'cessar de hostilidades' seguido por um cessar fogo mais formal. Será difícil alcançar uma inversão da escalada da crise, mas o facto de os EUA e a Rússia copresidirem ao grupo de trabalho que supervisiona este processo mostra até que ponto estão a substituir os poderes locais e regionais enquanto entidades decisoras na Síria.

Leia aqui a segunda parte deste artigo: Médio Oriente: O Califado aproxima-se do fim? (2ª Parte)


Artigo publicado no Counter Punch.
Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net.

i Manobra militar na qual os flancos do exército oponente são atacados simultaneamente por duas alas defensivas que se movimentam como braços de uma pinça.

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