Medicina dos nossos dias

31 de março 2024 - 17:41
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Se as condições de trabalho não melhoraram, nem os salários, para onde foi direcionado o orçamento da saúde? Para os convénios com os privados? Para as empresas de trabalho temporário? Por Ana Sofia Cunha.

cama de hospital
Foto de Paulete Matos.

Apesar de ser médica e exercer há mais de 10 anos, quando penso na figura típica de um/a médico/a ou cirurgiã/o imediatamente surge o a imagem de um homem de 50 anos de idade bem vestido e com um bom carro.

Esta personificação de privilégio e poder ainda se mantém, e a maioria de nós ainda associa esta imagem a quem pratica medicina: Um homem de 50 anos bem vestido com ar sábio que deixa o seu Maserati mal estacionado nas traseiras da urgência de um qualquer hospital público, que sai às pressas para dar consulta no privado.

Mas é mesmo assim?

Este estereótipo da classe médica tem sido utilizado nos últimos meses como propaganda política de forma a minar a luta das/os médicas/os do Sistema Nacional De Saúde (SNS). Somos gananciosos, privilegiados sem noção, sem resiliência.

Mas será mesmo assim?

Como “se faz medicina” nos dias de hoje

Nos últimos 50 anos assistimos a muitas alterações na organização dos cuidados de saúde, tremendos avanços tecnológicos e científicos. Há 50-60 anos atrás o atendimento em cuidados de saúde era mais focado na resolução de problemas agudos.

Com a melhoria das condições de vida e evolução cientifica continua trouxe-nos aos dias de hoje, onde temos uma população envelhecida com doenças crónicas que necessitam de cuidado continuo. Atualmente a prática da medicina inclui a prevenção de doença aguda bem como a prevenção de complicações no contexto de doenças crónicas. Para que isto seja possível é essencial uma boa rede de cuidados de proximidade, no SNS representadas pelos centros de saúde e os seus profissionais.

Nos primórdios da medicina e da cirurgia pequenos avanços permitiram excelentes melhorias nos resultados, atualmente são necessários investimentos consideráveis para conseguirmos atingir melhorias em diferentes indicadores de saude ou avaliação de qualidade.

Recordando os primórdios da cirurgia, Theodor Kocher ( professor e diretor de serviço de cirurgia do Inselspital Bern na Suíça) revolucionou a cirurgia com a introdução de grampos hemostáticos e desinfeção de campos cirúrgicos. Gestos que atualmente são rotina nos blocos operatórios de todo o mundo, tiveram na altura um impacto muito significativo na morbimortalidade cirúrgica de diversos procedimentos.

Atualmente os avanços cirúrgicos com a introdução da cirurgia robótica p.e. custam milhares de milhões de euros e os outcomes são menos expressivos. Se antes seria excelente evitar a morte de um paciente por hemorragia pós-operatória, hoje em dia almejamos retirar órgãos doentes e reconstrui-los através de 3 ou 4 incisões cirúrgicas.

A figura solitária do/a médico/a é obsoleta, a abordagem pontual de patologias crónicas são obsoletas. Trabalhamos em equipa com um grau de expertise cada vez mais exigente.

O SNS precisa de mais do que escalas de urgência completas, precisa também de cuidados primários robustos, acessíveis e de proximidade. Precisa de mais profissionais para abarcar as exigências técnicas atuais.
Não, as/os médicas/os mais novas/os não são preguiçosas/os, não são privilegiadas/os nem menos resilientes. A realidade é outra. A forma de exercer medicina é outra, é de máxima urgência adaptar o SNS a essa realidade!

As/os médicas/os são humanas/os

Não podemos negar que ser profissional de saúde sempre esteve associado a estatuto económico-social privilegiado. Temos pelo país fora ruas com nomes de médicos ilustres, até Paulo Portas confessou numa tertúlia organizada pelo Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos que a sua “hierarquia de respeito” é composta por “Deus, seguido dos Médicos e depois, as restantes profissões”.

Se no passado o acesso ao ensino superior e por consequência ao curso de medicina só era possível ás elites, com a democratização do ensino superior vemos pessoas “comuns” a estudar medicina e a tornarem-se médicas/os.

Mais mulheres

Não dei preferência ao género feminino no meu texto ao acaso. Os dados da Pordata de 2022 mostram que as mulheres representam 57% dos médicos em Portugal. Desde 2010 que as mulheres estão em maioria nas fileiras da medicina. No entanto na comunicação social e mesmo nas revistas de divulgação dirigidas aos profissionais persiste o estereotipo do senhor de 50 anos.

A última edição da Revista da Ordem dos Médicos ( ROM 233 Agosto-Setembro- Outubro) é exemplo disso. Das 64 páginas nenhuma referência a colegas do género feminino que se têm destacado no SNS ou na sua área de expertise. Sobre os 85 anos da Ordem dos Médicos, nenhuma opinião de colegas do género feminino (até hoje nunca foi eleita uma bastonária).

Em suma, as representações do grupo profissional na sociedade estão longe da realidade. A maioria dos médicos é mulher e tem menos de 45 anos de idade (fonte Ordem dos Médicos)

Desigualdades dentro do grupo profissional e a falsa meritocracia

Cresci a ouvir os meus pais dizer: “estuda se queres ser alguém na vida”. A minha mãe dizia: “se tirares más notas vens para a fabrica apanhar alfinetes”. Nos anos 90 ter estudos universitários era sinónimo de uma vida estável e de fartura. Eu, como tantas outras pessoas nascidas nos anos 80, simbolizamos os sonhos dos nossos pais operários: somos Doutoras/es, Engenheiras/os, Arquitetas/os, Professoras/es. Todo o nosso mérito e esforço seria recompensado, certo?

Mais ou menos…

Chegar ao curso de medicina e fazê-lo realmente depende muito do nosso “mérito” e esforço. Existe de certa forma uma almofada social que permite a estudantes em situações económicas mais precárias formarem-se, mesmo com os constrangimentos que sabemos existirem. No último ano de curso as desigualdades económicas são determinantes para a nossa carreira.

O processo de seleção da formação especifica ou vulgo especialidade é aparentemente justo - existe uma prova de seriação e a ordem de escolha é em função do desempenho nessa prova.

A minha pessoa no 5º ano de universidade dizia: Justo, pois claro é um exame! Agora olho para trás e vejo as limitações que tive, que condicionaram o meu desempenho (e tantos outros colegas nas mesmas ou piores circunstancias):

- Menos tempo para dedicar ao estudo no contexto de estudante trabalhador;

- Menos dinheiro para investir em cursos de preparação para a prova;

- Menos dinheiro para investir em atividades de bem-estar ou consultas de psicologia. (Lembro bem o dia em que decidi parar de estudar porque estava a entrar em burn out).

Estas circunstâncias parecem ser triviais e de responsabilidade individual,  porém colegas vindos de famílias mais abastadas não se depararam com estes constrangimentos. Uma situação económica mais favorável vai facilitar a obtenção de melhores resultados.

Existem exceções com certeza, porém se formos analisar a genealogia de algumas famílias concluiremos que a dermatologia é genética?

Dentro da formação específica estas desigualdades sócio-económicas tornam a aprendizagem e a obtenção de melhores notas na avaliação do currículo mais desigual.

No currículo são valorizados cursos e formações, apresentações em congressos, publicações em jornais peer-review, estágios no estrangeiro.

Estas atividades têm custos associados, os hospitais de formação não têm fundos para financiar estas atividades/cursos. A sua execução depende dos patrocínios da indústria, do sindicato ou do próprio poder económico.  Aqui vemos que o mérito pouca influência tem sobre o acesso a estas atividades. Ou se arranja financiamento ou seremos ultrapassados.

É fácil concluir que as/os médicas/os vindos de famílias abastadas, tenham um começo mais folgado e poderão mais facilmente aceder a estas atividades que outros colegas de origens da classe trabalhadora.

Desde 2010 que em média as/os médicas/os do SNS perderam 1200 euros, o que condiciona não só o dia-a-dia destes profissionais como o seu desempenho para fins de avaliação curricular.

Não podia deixar de abordar brevemente os constrangimentos que muitas mulheres médicas têm na sua carreira fruto da sua condição biológica e social de serem mulheres.

Apesar das mudanças sociais e a participação dos pares nas tarefas domésticas e de cuidado, as mulheres portuguesas passam em média mais 2 horas do seu dia que os homens a executar estas tarefas.

No caso especifico das mulheres médicas existem 2 horas extra que poderiam ser dedicadas a atividades extra laboral importante para o seu futuro na carreira médica.

É ilusório pensar que todas/os as/os médicas/os tem acesso às mesmas oportunidades ou estão em pé de igualdade. A hierarquia sócio-económica do país espelha-se na classe médica quer no SNS quer fora dele.

A mercantilização da saúde das pessoas comuns

Em 2012 tinha terminado o curso e iniciado a minha carreira num hospital público. Na altura uma PPP com o Grupo Mello Saúde. Lembro bem o primeiro dia de trabalho em que foi passado um vídeo sobre as origens do grande grupo económico que teve o seu tempo de hegemonia durante a ditadura fascista de Salazar e viu o seu declínio no pós 25 de abril.

Não sei se por ter crescido a ouvir as histórias de privação dos meus avós e pais durante a ditadura, senti um desconforto. O discurso soava a propaganda. Na inocência dos meus 25 anos achava que tal não tinha lugar num hospital, que apesar de ter administração privada, era público e pertencia ao Serviço Nacional de Saúde algo de todos.

Durante esse ano de 2012 apercebi-me da quantidade de burocracia implicava a prestação de cuidados e o pouco tempo que sobrava para tentar observar doentes no limiar da privacidade e dos recursos. Nem a administração privada e hospital novo tinham melhorado esse aspeto.

10 anos passados e uma pandemia, assistimos ao declínio do estado social português.

Tem sido sem dúvida uma operação brilhante, esta de desacreditar o SNS e os seus profissionais. Aparentemente nem as injeções de capital são suficientes para garantir urgências em funcionamento ou atendimento a grávidas de risco como recentemente noticiados.

O fosso entre o orçamento e a realidade é gigante. A recusa dos profissionais em realizar ainda mais horas extraordinárias e os constrangimentos observados levam a uma conclusão: o funcionamento em pleno do SNS tem dependido da boa vontade dos profissionais.

Se as condições de trabalho não melhoraram, nem os salários, para onde foi direcionado o orçamento da saúde? Para os convénios com os privados? Para as empresas de trabalho temporário?

Como a doença é uma inevitabilidade (mesmo que nos abstenhamos de comer bacalhau à Gomes de Sá em Agosto) não existem muitas opções: os ricos e remediados fazem um seguro de saúde (E ate esses tem limite). Os pobres estão entregues à sua sorte. Soa familiar? Os EUA são exemplo do serviço de saúde transformado em mercado livre. Há quem defenda que os sistemas privados são mais eficientes e trazem melhores resultados. Sem dúvida que em termos económicos sim, não é à toa que o sistema de saúde americano é um dos mais caros do mundo e movimenta bilhões de dólares na economia. Porem os EUA é o país desenvolvido com piores indicadores de saúde. Num mundo regido pelo dinheiro tudo acaba por ter um preço. Os direitos constitucionais à saúde,
educação e habitação passaram a ser mercados especulativos ou “oportunidades de negócio”.

A desacreditação do SNS e dos seus profissionais faz parte da transição da Saúde para o mercado e oportunidade de negócio.

O exemplo americano é um vislumbre do que nos espreita: os nossos corpos, as nossas doenças serão bens transacionáveis num “mercado livre”, em que o valor monetário é justificação para negação de cuidados ou sobretratamento.

Dentro do sistema capitalista a democratização do acesso à medicina e ao seu exercício levou à degradação das condições de trabalho porém despertou consciências e um desejo de tornar o SNS mais do que caridade.

Este texto é dedicado a todas/os colegas em luta.