Maria Teresa Horta: a censura de “O delator”

"É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.", pode ler-se num parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

08 de novembro 2019 - 17:16
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O delator (1962)

Maria Teresa Horta publicou a peça O delator na antologia Novíssimo teatro português (1965). Vendo os seus textos impedidos de chegarem ao palco, não raras vezes os autores tentavam guardar o seu repertório textual em livro, fosse para garantir alguma forma de existência das suas criações, fosse para garantir memória futura. Este livro de 1962 é um desses casos e a peça O delator viria a contar com dupla censura: em 1964, o guião da peça viria a ser censurado pela PIDE; em 1965, era o livro Novíssimo teatro português que chegava às mãos do poder censório, contando a peça de Maria Teresa Horta com nova censura. Ainda assim, o texto conseguiu ir a cena duas vezes, no Bairro do Castelo, em Lisboa, por um grupo de amadores. De resto, os efeitos dos mecanismos censórios fizeram-se sentir e a peça foi impedida de ir a cena.

No enredo da peça, um grupo de jovens revolucionários planeia um ataque a um regime autoritário. Acredita-se que há um delator, o que vem a confirmar-se, e essa crença funciona como mote para que sejam discutidos motivos revolucionários, o papel da revolução e o objectivo da revolução, para além do papel do indivíduo, e das suas motivações individuais, dentro desta. Jaime, uma das personagens, respondendo a Miguel, outra das personagens, que afirma ter o direito de escolher com quem luta, afirma:

JAIME

Uma revolução não se faz por desporto, ou heroísmo, Miguel. Na revolução, cada um de nós só conta num conjunto, nunca individualmente. Não se faz o que gostamos, mas o que for melhor para essa revolução. Queres a liberdade, a razão, o direito, apenas para ti? (p. 109)

De facto, Miguel, que vem a ser confirmado como delator, está nos planos revolucionários por amor a Inês, que simboliza a abnegação dos projectos revolucionários, desejando afastá-la de Raimundo. Quando lhe sugere fugirem os dois do país para “um sítio onde não sejam precisas revoluções” (p. 127), esta enfurece-se:

INÊS

(gritando) Eu não quero revoluções para me entreter, nem colaboro com elas por obrigação, amo-as neste país, agora, porque há homens que precisam delas, aqui. Apenas uma e tudo poderia ser diferente... não as provoco sem serem necessárias nem fujo quando é necessário lutar!” (p. 127)

Esta peça, curta (23 páginas), é particularmente incisiva: não só fala da necessidade da revolução para benefício de um povo inteiro, enquanto necessidade histórica de milhares, como ainda mostra que esta não pode ser instrumentalizada, que os interesses individuais não podem sobrepor-se aos colectivos nem podem comprometê-los. A traição à revolução, esta sobreposição dos interesses individuais aos colectivos, é apresentada como algo pérfido, egoísta, auto-centrado, imoral. No final, com a traição de Miguel, a revolução fica comprometida, comprometendo-se o futuro de milhares de pessoas. No mesmo movimento, o seu intento não é cumprido: Inês não lhe perdoa a traição, vira-lhe as costas.

A censura de O delator

Como consta no Processo 7596 no arquivo do SNI/SGE da Torre do Tombo, a peça O delator foi recebida pela PIDE no dia 16 de Junho de 1964. Dias mais tarde, a 6 de Julho de 1964, havia sido proposta uma decisão de proibição:

Ainda que pudesse propor para maiores de 17 anos esta peça, com os cortes indicados no texto a pgs. 13, atentando apenas à sua contextura moral, julgo que se deve notar que se trata de uma revolução social, contra, digo, que não se localiza ou por outra que se evita localizar, e que portanto poderia ser até em Portugal. Depois, … que o diálogo expressa uma linguagem marxista e a9jda q8e 9a ser exibido na Sociedade Musical Fraternidade Operária de Grândola, em meio de trabalhadores rurais onde são frequentes certas agitações sociais. Nestes termos, se bem que considere melhor, a leitura desta peça por outro membro da Comissão, julgo que será melhor reprová-la.

Na página 13, salientada pelo censor literário, foi feito um rectângulo à volta do seguinte excerto:

MIGUEL

Mas então porque não me impedes quanto te beijo?

(Começa a desapertar-lhe o fato.)

MIGUEL

Abre-se como uma concha, assim... quero-te totalmente nua...

(O fato cai, beija-a nos ombros e leva-a para cima do sofá, acariciando-a nos seios.)

A proposta de proibição foi aceite no dia 9 de Julho do mesmo ano, tendo o segundo censor feito o seguinte comentário:

É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.

No dia 11 de Julho de 1964, foi feito um pedido de licença de representação da peça no salão de festas do Grupo Cénico da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, em Grândola:

Exmo Senhor INSPECTOR CHEFE DOS ESPECTÁCULOS

LISBOA

O Grupo Cénico da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, de Grândola, vem requerer a V. Exa. Se digne conceder-lhe licença de representação no seu salão de festas, da peça de Teatro, original de Maria Teresa Horta, O Delator.

Espera Deferimento

Grândola, 11 de Junho de 1964

Pel'A Direcção

José da Conceição

(Vice-Presidente)

Na mesma data, o pedido foi rejeitado:

1842/64/CV

Exmo. Senhor

Delegado da Inspecção dos Espectáculos

GRANDOLA

A fim de informar o Presidente da Direcção do Grupo Cénico da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, comunico a V. Exª. que a Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos deliberou reprovar a peça “O DELATOR” de Maria Teresa Horta, pelo que a referida peça não pode ser representada.

Junto devolvem-se dois selos fiscais de 5$00 por desnecessários.

Inspecção dos Espectáculos, 11 de Julho de 1964

A Bem da Nação

O INSPECTOR CHEFE

De acordo com o relatório, a parte salientada, da página 13, seria suficiente para que a peça, não sendo proibida, pudesse estar ao alcance de maiores de 17. Contudo, a identificação do seu carácter revolucionário determinou-lhe de imediato a proibição. Para mais, a “linguagem marxista” faria de imediato com que estivesse de estar longe do público e o lugar onde seria representada, a Sociedade Musical Fraternidade Operária de Grândola, reforçava, na perspectiva do censor, intuitos marxistas, já que ali costumava haver “agitações sociais”. Contudo, o censor não fica totalmente convencido da necessidade de proibição da obra, recomendando que esta passe pelas mãos de outro censor, que, como vimos, reitera a necessidade de proibição, considerando O delator “uma peça nitidamente marxista”.

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