A longa tradição de anulação de dívidas na Mesopotâmia e no Egito entre o 3º e o 1º milénios a.C.

28 de agosto 2012 - 12:42

É essencial penetrar na cortina de fumo da história, contada pelos credores, e recuperar a verdade histórica. Anulações generalizadas de dívida ocorreram repetidamente ao longo dos tempos. Artigo de Éric Toussaint, publicado no site do Comité para a Anulação da dívida do Terceiro Mundo.

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Pedro de Roseta, Egito.

O Código de Hamurabi está no Museu do Louvre, em Paris. De facto, o termo "código" é inadequado porque Hamurabi deixou-nos um conjunto de normas e juízos sobre as relações entre os poderes públicos e os cidadãos. O reino de Hamurabi, "rei" da Babilónia (situado no atual Iraque), começou em 1792 a.C. e durou 42 anos. O que a maioria dos livros de história não revelam é que Hamurabi, como outros governantes das cidades-estado da Mesopotâmia, repetidamente decretou a anulação generalizada de dívidas dos cidadãos para com os poderes públicos, os seus altos funcionários e dignitários. O que é designado por Código de Hamurabi foi escrito provavelmente em 1762 a.C.. O seu epílogo proclama que "os poderosos não podem oprimir os fracos, a justiça deve proteger as viúvas e os órfãos (...) para que seja feita justiça para com os oprimidos". Devido à decifração de muitos documentos escritos em caracteres cuneiformes, os historiadores descobriram o rasto inegável de quatro anulações generalizadas de dívida, durante o reino de Hamurabi (em 1792, 1780, 1771 e 1762 a.C.).

Na época de Hamurabi, a vida económica, social e política organizava-se em torno do templo e do palácio. Essas duas instituições, muito interligadas, constituíam o aparelho de Estado, o equivalente aos nossos poderes públicos hoje, onde trabalhavam muitos artesãos e operários, sem esquecer os escribas. Todos se alojavam e alimentavam no templo e no palácio. Era aí que recebiam as suas rações alimentares, que garantiam duas refeições completas por dia. Trabalhadores e dignitários do palácio alimentavam-se devido à atividade de agricultores a quem os poderes públicos forneciam (arrendavam) terras, ferramentas de trabalho, animais de carga, gado, água para irrigação. Os agricultores produziam, sobretudo, cevada (cereal base), azeite, frutas e legumes. Após a colheita, os camponeses tinham de pagar uma parte ao Estado, a título de renda. Em caso de más colheitas, acumulavam dívidas. Para além do trabalho agrícola no templo e no palácio, os camponeses eram proprietários de terras, casas, animais e ferramentas. Outra forma de endividamento dos agricultores consistia nos empréstimos concedidos, a título privado, pelos altos funcionários e dignitários que, com o objetivo de enriquecerem, apropriavam-se dos bens dos camponeses em caso de não reembolso de dívidas. A impossibilidade de os agricultores amortizarem as dívidas podia levar ainda à escravatura (os restantes membros da família também podiam ser escravizados por dívidas). Para garantir a paz social, sobretudo para evitar a deterioração das condições de vida dos agricultores, o poder instalado anulava periodicamente todas as dívidasi e recuperava os direitos dos camponeses.

As anulações gerais de dívida e o seu escalonamento em 1000 anos

As proclamações de anulação geral de dívidas não se limitam ao reino de Hamurabi. Começaram antes e prolongaram-se depois. Existe prova de anulações de dívida desde 2400 a.C., seis séculos antes do reino de Hamurabi, na cidade de Lagash (Suméria). As mais recentes remontam a 1400 a.C.. Ao todo, os historiadores identificaram, com precisão, cerca de trinta anulações generalizadas de dívida, na Mesopotâmia, entre 2400 e 1400 a.C.. Podemos acompanhar Michael Hudsonii quando ele diz que as anulações gerais de dívida constituem uma das principais características das sociedades, na Idade do Bronze, na Mesopotâmia. Além de que encontramos, em diferentes línguas da Mesopotâmia, expressões que designam essas anulações, como limpar a ardósia e pôr os contadores a zero: amargi em Lagash (Suméria), nig-sisa em Ur, andurarum em Ashur, misharum na Babilónia, shudutu em Nuzi.

As decisões de anulação de dívida eram ocasião de grandes festividades, geralmente durante a festa anual da Primavera. Durante a dinastia da família de Hamurabi, foi instaurada a tradição de destruir as tábuas em que eram inscritas as dívidas. Com efeito, os poderes públicos possuíam uma contabilidade rigorosa das dívidas nessas tábuas que eram guardadas no templo. Hamurabi morreu em 1749 a.C., após 42 anos de reinado. O seu sucessor, Samsuiluna, anulou todas as dívidas ao Estado e ordenou a destruição de todas as tábuas de dívida, expecto as relativas às dívidas comerciais.

Quando Ammisaduqa, o último governante da dinastia Hamurabi, subiu ao trono, em 1646 a.C., a anulação generalizada de dívidas, que ele proclamou, era muito detalhada. Tratava-se, obviamente, de evitar que certos credores beneficiassem de algumas falhas. O decreto de anulação estipulava que os credores oficiais e os cobradores de impostos, que expulsassem os camponeses, deviam indemnizá-los e restituir-lhes os seus bens, sob pena de serem executados. Se um credor tivesse capturado um bem sob pressão, devia restituí-lo e/ou reembolsá-lo por inteiro, caso contrário, devia ser condenado à morte.

Na sequência desse decreto, foram criadas comissões para analisar todos os contratos imobiliários e eliminar aqueles que se inseriam no âmbito da proclamação de anulação de dívida e do restabelecimento do status quo anterior. A aplicação prática do decreto foi facilitada pelo facto de que, em geral, os agricultores, expropriados pelos credores, continuavam a trabalhar as suas terras, embora elas se tornassem propriedade do credor. Portanto, ao anularem os contratos e ao obrigarem os credores a indemnizarem as vítimas, os poderes públicos foram restaurando os direitos dos camponeses. A situação vai piorar um pouco dois séculos mais tarde.

Os limites dos atos de anulação das dívidas

Na Mesopotâmia, durante a Idade do Bronze, os escravos por dívidas eram libertados, mas o mesmo não acontecia com os outros tipos de escravos (incluindo os escravos de guerra). No entanto, os atos de anulação de dívida não devem ser vistos como decisões que contribuíam para a emancipação social. O objetivo era repor a ordem anterior, que previa muitas formas de opressão. Contudo, sem favorecer a organização dessas sociedades, de há 3.000-4.000 anos, deve-se sublinhar que os governantes tentavam manter a coesão social, evitando a constituição de grandes propriedades privadas, tomando medidas para garantir que os agricultores mantivessem um acesso direto à terra, limitando o aumento das desigualdades e garantindo a manutenção e desenvolvimento dos sistemas de irrigação. Michael Hudson sublinha que a decisão de declarar guerra voltou a ficar sob alçada da assembleia geral dos cidadãos e que o "rei" não tinha poder para tomar a decisão.

Parece que, segundo a mundivisão dos mesopotâmicos da Idade do Bronze, não houve criação original por parte de um deus. O governante (ruler), perante o caos, reorganizou o mundo para restaurar a ordem normal e a justiça.

Após 1400 a.C., não há registos de atos de anulação de dívida. As desigualdades acentuaram-se muito e aumentaram. As terras tornaram-se monopólio de grandes proprietários privados. A escravidão por dívida alastrou. Uma parcela significativa da população migrou para o noroeste, para Canaã, com incursões no Egito (os faraós reclamavam).

Ao longo dos séculos que se seguiram, considerados pelos historiadores da Mesopotâmia como tempos obscuros (Dark Ages) - devido à redução de testemunhos escritos-, consegue-se, mais ou menos, provar a existência de violentos conflitos sociais entre credores e devedores.

Egito : a pedra de Roseta confirma a tradição de anulação de dívida

A Pedra de Rosetta, que foi descoberta por membros do exército de Napoleão em 1799, durante a campanha no Egito, foi decifrada, em 1822, por Jean-François Champollion. Encontra-se, agora, no British Museum, em Londres. O trabalho de tradução foi facilitado pelo facto de a pedra apresentar o mesmo texto em três línguas: egípcio antigo, egípcio popular e grego do tempo de Alexandre, o Grande.

O conteúdo da Pedra de Roseta confirma a tradição de anulação de dívidas que se instaurou no Egito dos Faraós, a partir do século VIII a.C., antes da sua conquista por Alexandre, o Grande, no século IV a.C. Ela afirma que o faraó Ptolomeu V, em 196 a.C. anulou quantias devidas ao trono pelo povo do Egito e não só.

Apesar de a sociedade egípcia, do tempo dos faraós, ser muito diferente da sociedade mesopotâmica da Idade do Bronze, encontram-se vestígios evidentes de uma tradição de declaração de amnistias, que precedia as anulações generalizadas de dívida. Ramsés IV (1153-1146 a.C.) proclamou que aqueles que fugiram podiam regressar ao país. Aqueles que estavam presos eram libertos. O seu pai Ramsés III (1184 a.C. -1153. a.C.) fez o mesmo. De notar que, no 2º milénio, parece que não houve escravidão por dívidas no Egito. Os escravos eram presos de guerra. As proclamações de Ramsés III e IV previam a anulação por atraso no pagamento de impostos devidos ao faraó, a libertação dos presos políticos, a possibilidade de as pessoas condenadas ao exílio voltarem ao país.

Apenas depois do século VIII a.C., foram encontradas, no Egito, declarações de anulação de dívida e libertação de escravos por dívida. É o caso do reinado do faraó Bocchoris (717-711 a.C.), cujo nome foi helenizado.

Uma das motivações fundamentais para a anulação de dívida era o faraó pretender dispor de um campesinato capaz de produzir comida suficiente e disponível para quando fosse necessário participar nas campanhas militares. Por essas duas razões, era preciso evitar que os agricultores fossem expulsos das suas terras a mando dos credores.

Noutra zona da região, constata-se que os imperadores assírios, do 1º milénio a.C., também adotaram a tradição de anulação de dívida. Aconteceu o mesmo em Jerusalém, no século V a.C.. Prova disso mesmo, em 432 a.C., Neemias, certamente influenciado pela tradição da Mesopotâmia antiga, proclama o perdão de dívidas dos judeus para com os seus compatriotas ricos. É, nesse momento, que a Torah é escrita. A tradição de anulação generalizada de dívida fará parte da religião judaica e dos primeiros textos do cristianismo, através do Levítico que prevê a obrigação de anular as dívidas, a cada sete anos e em cada jubileu, ou seja, a cada 50 anos.

Conclusão

Hoje, o pagamento da dívida é definitivamente um tabu. É apresentado pelos Chefes de Estado e de Governo, os bancos centrais, o FMI e a imprensa dominante como inevitável, indiscutível e obrigatório. Os cidadãos e as cidadãs devem resignar-se a pagar a dívida. A única discussão admitida diz respeito ao modo de repartir os sacrifícios necessários, de maneira a gerar recursos orçamentais suficientes, para cumprir os compromissos assumidos pelo país devedor. Os governos intervencionados foram eleitos democraticamente. As suas opções são, por isso, legítimas. É necessário pagar.

É preciso penetrar na cortina de fumo da história, contada pelos credores, e recuperar a verdade histórica. As anulações generalizadas de dívida ocorreram repetidamente ao longo da história. Essas anulações correspondem a diferentes contextos. Nos casos mencionados, as decisões de anular, de forma generalizada, a dívida foram iniciativas de governos ansiosos por preservar a paz social. Noutros casos, as anulações resultaram da luta social, agravada pela crise e o aumento das desigualdades. É o caso da Grécia e de Roma Antiga. Outros cenários são também de ter em conta: a anulação de dívida decretada pelos países endividados, configurando um ato soberano e unilateral; a anulação de dívida concedida pelos vencedores a um país derrotado e/ou aliado... Uma coisa é certa: ao longo da história, a dívida tem tido um papel fundamental em muitas convulsões políticas e sociais.

Tradução Maria da Liberdade

 

i As dívidas entre comerciantes não eram objeto de anulação.

ii Este artigo baseia-se principalmente na síntese histórica feita por Michael Hudson, Doutor em economia, em vários artigos e livros cativantes: «The Lost Tradition of Biblical Debt Cancellations», 1993, 87 pages ; «The Archaeolgy of Money », 2004. Michael Hudson faz parte de uma equipa científica multidisciplinar (ISCANEE, International Scholars’ Conference on Ancient Near Earstern Economies), que integra filólogos, arqueólogos, historiadores, economistas que investigam as economias e as sociedades antigas do Médio Oriente. Os seus trabalhos são publicados pela Universidade de Harvard. Michael Hudson insere o seu trabalho no seguimento das investigações levadas a cabo por Karl Polanyi. Michael Hudson analisa também a crise contemporânea. Veja-se sobretudo «The Road to Debt Deflation, Debt Peonage, and Neoliberalism», Fevereiro 2012, 30 p. Entre as obras de outros autores que, desde o início da crise económica e financeira em 2007-2008, escrevem sobre a longa tradição de anulação de dívida, leia-se: David Graeber, Debt : The First 5000 Years, Melvillehouse, New York, 2011, 542 p. Francisco Louça, Mariana Mortagua, A Dividadura, Bertrand Editora, Lisboa, 2012.