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Loja de Comércio Justo do CIDAC: A dignidade humana antes do lucro

O espaço, situado na Rua Tomás Ribeiro, em Lisboa, faz esta segunda-feira, dia 29 de novembro, dez anos. Falámos com Stéphane Laurent sobre o que é o Comércio Justo e sobre o que podemos encontrar nesta loja. Por Mariana Carneiro.
Fotos Esquerda.net

A loja de Comércio Justo do Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (CIDAC) é tanto um espaço comercial como um espaço de informação. Dez anos após abrir portas, a iniciativa mantém-se fiel aos três elementos principais que norteiam a sua atividade: garantir um pagamento justo negociado com os produtores e as produtoras; assegurar o pré-financiamento das encomendas, até 50% do valor das mercadorias pago no ato da encomenda; e estabelecer relações de longo prazo com os grupos de produtores e de produtoras.

A estes três elementos acrescenta-se um conjunto de critérios éticos, entre os quais o respeito pelos direitos humanos, a igualdade de género, o respeito pela liberdade sindical, a promoção de produções ambientalmente sustentáveis, o reforço das capacidades organizativas e produtivas das produtoras e dos produtores.

Stéphane Laurent explicou ao Esquerda.net o que é o Comércio Justo, qual foi a trajetória deste movimento até aos nossos dias e que objetivos estiveram na génese da criação da loja de Comércio Justo do CIDAC. Falou-nos ainda sobre os produtos que podemos encontrar neste espaço e sobre as iniciativas que estão na sua origem.

Como é que surgiu a Loja do Comércio Justo do CIDAC?

A Loja de Comércio Justo do CIDAC existe há dez anos. Mas o Comércio Justo do CIDAC surgiu há mais de 25 anos. Portanto, a loja é, de uma certa forma, a última fase do nosso trabalho no domínio do Comércio Justo.

O Comércio Justo é uma alternativa muito desenvolvida desde os anos 1960 nos Estados Unidos e Norte da Europa, e desenvolveu-se, pouco a pouco, no sul europeu. Começámos a trabalhar esta temática em 1998, inicialmente, estritamente de um ponto de vista educativo, de sensibilização e mobilização sobre a questão das injustiças no comércio internacional e sobre as suas alternativas económicas. O objetivo era poder criar uma certa massa crítica em Portugal à volta desta temática, que pudesse fazer surgir iniciativas, organizações empenhadas, etc. Pouco a pouco, introduzimos esta dimensão do Comércio Justo no nosso trabalho de cooperação para o desenvolvimento, nomeadamente com Timor Leste e com a Guiné-Bissau. Na Guiné-Bissau, especificamente, com os produtos têxteis. Acompanhámos durante cerca de 15 anos uma cooperativa de exímios tecelãos da zona de Quinhamel que, simplesmente, não conseguiam dar um destino aos seus produtos.

Ou seja, começámos do ponto de vista da mobilização, sensibilização e denúncia, cooperação para o desenvolvimento.

De que forma faziam essa mobilização e sensibilização?

Tínhamos uma newsletter, intervenções um pouco por todo o país, parcerias com associações de desenvolvimento local, com colegas de Amarante, que abriram a primeira loja de Comércio Justo em Portugal, que, infelizmente, já não existe.

Quando é que abriu essa loja?

Em 1999. Na altura apoiámos a iniciativa e a sua divulgação. Participámos no movimento de desenvolvimento local com as nossas colegas ONGD, tentando intervir em todas as áreas.

Produzimos muitos materiais pedagógicos para uma intervenção em meio escolar, seja a nível do ensino primário, secundário ou com a população estudantil universitária. Era um trabalho multifacetado de mobilização e divulgação à volta do Comércio Justo.

No ano 2000, acolhemos aqui um veleiro de Comércio Justo. Foi uma iniciativa finlandesa com quem colaborávamos, que fez escala em vários sítios para dar algum destaque a esta temática, e que aproveitou para trazer alguns produtos do Comércio Justo.

A partir de um certo momento, em 2006/2007, começaram a surgir várias organizações especificamente dedicadas ao tema do Comércio Justo: no Porto, em Braga, Peniche, Coimbra, no Pragal, Almada, com os colegas da Mó de Vida, Évora, Faro, mais organizações em Lisboa, etc… e foram abertas várias lojas. Portugal chegou a ter 12 lojas de Comércio Justo. É pouco quando comparado com Espanha, França ou Alemanha, que têm centenas de lojas, mas já é alguma coisa. A presença do Comércio Justo no país começava a solidificar-se. Infelizmente, em períodos de crise, por falta de meios, de apoios, todas estas iniciativas fecharam, uma a uma.

O CIDAC, na altura, não estava envolvido na atividade comercial. Mas percebemos que, pouco a pouco, não haveria sequer um espaço onde pôr o consumo responsável em prática. Aproveitámos o espaço que temos aqui. Inicialmente, queríamos instalar no rés do chão uma livraria africanista e sobre os temas do desenvolvimento. No entanto, acabámos por fazer o switch para uma iniciativa ligada ao Comércio Justo.

A 29 de novembro de 2011, abrimos esta loja. Hoje em dia, infelizmente, é a única loja de Comércio Justo em Portugal com horário completo, ou seja, que abre de segunda a sábado. Existe uma iniciativa de colegas no Porto, de uma associação que se chama Diálogo Acontece, com uma loja no Parque da Cidade. O espaço abre aos sábados de manhã, o que já muito importante. Esperemos que possa crescer. A iniciativa é assegurada com voluntariado, o que implica muito trabalho e muito esforço para mantê-la.

Continua a haver procura da loja de Comércio Justo do CIDAC e deste tipo de oferta?

Há bastante procura, ainda que sempre abaixo daquelas que seriam as nossas expectativas. Quando a nossa loja abriu apercebemo-nos de que já existia um certo número de pessoas que já conheciam o comércio justo e que estavam interessadas. Já tínhamos tido em Lisboa uma loja gerida pela associação Cores do Globo, que começou num quiosque no Campo Grande e depois passou a ter um estabelecimento na Rua de São José.

Uma parte dos consumidores que frequentam a nossa loja são militantes. Outra parte ou são consumidores pela proximidade geográfica, pessoas que trabalham em empresas aqui à volta e que se interessam pela temática ou, pelo menos, gostam dos produtos, e, evidentemente, turistas ou pessoas que passam e que acabam por entrar.

Qual é a missão desta loja?

Consideramos a loja tanto um espaço comercial como um espaço de informação. Isto está embutido na identidade do Comércio Justo desde os anos 1960, em que a dimensão comercial é, absolutamente, indissociável da dimensão educativa e de sensibilização. Tentamos falar com todos os clientes que por aqui passam e explicar um pouco quais são os projetos associativos ou cooperativos dos produtores que estão por detrás destes produtos. Claro que continua a ser uma porção ínfima do potencial que existiria.

Para quem ainda não sabe do que se trata, podes explicar um pouco o que é o Comércio Justo?

Em termos muito simples, é um conceito e uma prática comercial que coloca a dignidade humana, a justiça social, económica, ambiental à frente dos processos de acumulação e do lucro. É a inversão da lógica do mercado capitalista. Para poder pôr isto em prática, é preciso ter em conta três grandes dimensões, em termos da prática comercial propriamente dita.

Uma pode parecer de uma simplicidade extrema, mas não é. Sabemos que não é prática no quadro do comércio internacional pagar um preço justo. Este preço é discutido, falado com os grupos de produtores. Não é uma imposição estrita das bolsas, digamos assim, ou de quem tem o poder económico para comprar. O primeiro ponto é, portanto, muito simples: o pagamento de um preço justo pelo trabalho dos produtores e das produtoras.

Um segundo elemento, que também contraria as práticas comerciais convencionais, é o pré-pagamento das encomendas. Isto é, se uma importadora de comércio justo compra vinte toneladas de café pode financiar até 50% da encomenda no momento em que a faz. Mesmo se o café só chegar daqui a seis meses. Assim permite-se que, enquanto o café está a amadurecer, as pessoas possam manter o seu nível de vida e aguentar os momentos entre a receita e a próxima produção. Na economia convencional em geral fazem-se pagamentos a 90 dias, quando não é pior.

E depois há um terceiro elemento que é fundamental, e que diz respeito a estabelecer relações de longo prazo. Não há compras oportunistas no Comércio Justo. Assume-se que, durante 10, 15 ou 20 anos, se mantêm relações com aqueles produtores e produtoras. Há relações no Comércio Justo que são históricas, com décadas e décadas de existência. Há um compromisso de comprar um volume a um preço garantido. Isto faz uma grande diferença, porque permite aos produtores e às produtoras projetarem-se no futuro. Não vão ter de aguentar estas flutuações tremendas nos mercados bolsistas em produtos como o café, o açúcar, entre outros.

Resumindo, são estas três dimensões: um preço justo, o pré-financiamento das encomendas e o estabelecimento de relações de longo prazo.

Por outro lado, no Comércio Justo há a promoção das formas de organização coletiva na produção. Isto é muito importante, porque, na sua génese, o objetivo do Comércio Justo é contribuir para reforçar os movimentos de produtores e de produtoras. E as cooperativas, onde todas as pessoas se juntam, aumentam o seu poder de reivindicação. As cooperativas ou associações são, por isso, as formas privilegiadas no quadro do Comércio Justo. Seja junto dos produtores e produtoras, seja por parte dos atores do Comércio Justo, aos quais chamaríamos de atores militantes, porque, como mais adiante veremos, infelizmente, o movimento também sofreu algumas cooptações por parte da economia convencional.

O Comércio Justo é uma iniciativa que, como já tinha referido anteriormente, nasce nos anos 60 com organizações dos Estados Unidos, Reino Unido e Holanda, inicialmente. Em geral, movimentos internacionalistas anti-capitalistas que podem ter uma matriz cristã progressista ou de movimentos da esquerda. São as duas grandes matrizes históricas deste movimento que, basicamente, parte da revolta de perceber que não é possível, para produtores e produtoras de África, Ásia ou América Latina, viver com dignidade do seu trabalho. E que começa a pensar em formas de inverter os termos do comércio de modo a que a acumulação de riqueza seja feita a montante da cadeia produtiva e não a jusante.

O Comércio Justo desenvolveu-se a partir dos anos 1970 com muita força, sempre através de um movimento bastante politizado: nos Estados Unidos, na Europa, noutras regiões do mundo... O movimento associativo e cooperativo também desenvolveu aqui na Europa uma rede do que se chamou durante muito tempo “lojas do mundo”, que vendiam produtos alimentares e artesanais. Este foi um modelo que funcionou até aos anos 1980.

No final dos anos 1980, início dos anos 1990, constatou-se que o Comércio Justo começou a ser relevante do ponto de vista económico. Não só político, mas no sentido de gerar números que têm muitos zeros. A esfera da economia convencional começou a interessar-se pelo Comércio Justo. Os anos 1990 foram também um momento em que as campanhas de denúncia das práticas das multinacionais, da grande distribuição alimentar, começaram a intensificar-se. E então surgiu aqui uma grande oportunidade para os atores da economia convencional, por um lado, branquearem a sua imagem, e, por outro lado, captarem uma parte do potencial económico gerado historicamente no seio da economia solidária. E resultou lindamente. Foi servido por iniciativas que conhecemos muito bem noutras dimensões da produção, que são as certificações. Como dizia há pouco, a dimensão educativa, política, no Comércio Justo é tão importante como a dimensão comercial. E as lojas sempre foram sítios de politização: de denúncia, de alerta, de conversa, de debate, etc. Essa não é a vocação dos supermercados. Não vão alertar para os grandes dramas do neoliberalismo quando eles são peças centrais deste sistema. Então, criou-se um sistema de certificação, um logotipo, com critérios, com listas, verificado por parte terceira e caímos, de certa maneira, de num processo educativo complexo para o “pronto a pensar” e num mercado mais da “boa consciência” do que de outra coisa. Hoje em dia, uma boa parte dos fluxos financeiros gerados pelo Comércio Justo são feitos através da grande distribuição alimentar.

Neste contexto, em meados dos anos 2000, deu-se uma espécie de cisão no seio do comércio justo. Por um lado, uma espécie de comércio justo a que poderíamos chamar de paliativo, que se acomoda muito bem na economia de mercado e que reconhece que podem existir alguns problemas e, portanto, tem como vocação amenizar esses problemas. Por outro lado, um Comércio Justo a que chamaríamos de transformador. Este Comércio Justo questiona as regras da economia convencional e do sistema capitalista e tenta propor uma alternativa que possa mudar as regras do jogo e mobilizar as pessoas com base num entendimento profundo das lógicas económicas e do que é a alternativa de Comércio Justo, e não no mercado da boa consciência.

Este é mais ou menos o patamar em que estamos agora. É interessante, porque grandes organizações históricas de Comércio Justo a nível europeu decidiram deixar de utilizar o sistema de certificações. Falou mais alto o consenso sobre a transmissão da confiança e percebeu-se que o processo de certificação, pouco a pouco, diluiu-se para servir os interesses dos atores dominantes da economia, mais do que o dos pequenos produtores. E que, por esta via, se estava a desvirtuar definitivamente o Comércio Justo. É o caso da rede Artisans du Monde em França, nascida em 1974, como o CIDAC, que deixou de utilizar esta certificação.

Estes atores do Comércio Justo transformador deram um outro salto na conceção do Comércio Justo. Historicamente, o Comércio Justo insere-se nas relações geopolíticas Sul-Norte, mas chegou-se à conclusão óbvia de que as dinâmicas que excluem os pequenos produtores africanos, sul americanos e asiáticos são as mesmas que excluem os produtores camponeses familiares na Europa. Sabemos que em cada país europeu fecham duas quintas familiares por semana. A agricultura camponesa não consegue resistir. Conhecemos as políticas de preços sobre o leite, sobre as produções agrícolas, de um modo geral. Então, estas organizações abrangeram também no leque das suas práticas relações de parceria com produtores e produtoras nacionais.

Isso acontece aqui na vossa loja?

Sim. Temos produtos do Comércio Justo internacional e também produtos oriundos da agricultura camponesa ou da produção artesanal tradicional portuguesa. Encontramos esta tendência em muitos países, de não sucumbir à dicotomia Sul-Norte mas pensar que, simplesmente, a predação do modelo neoliberal abrange todo o setor da produção, estejamos no Sul ou no Norte. Isto tendo, obviamente, consciência de que o impacto desta economia globalizada é, sem dúvida, muito mais forte nos países do Sul, comparativamente aos países onde o Estado Social, pelo menos, ainda consegue colmatar alguns destes problemas. De uma certa maneira, voltou-se a colocar nesta definição do Comércio Justo que nós defendemos, no seu centro, a defesa da soberania alimentar. Ou seja, o direito dos povos a produzirem para satisfazer as suas próprias necessidades e a não dependerem das exportações como motor do desenvolvimento.

Quem vem à vossa loja o que é que encontra, concretamente? E conseguimos perceber a sua origem, temos acesso a essa informação?

Sim, as cadeias de produção estão perfeitamente traçáveis, transparentes. Conhecemos muitas das iniciativas pessoalmente, ou então temos uma grande proximidade com as cooperativas de importação a quem compramos os produtos para os quais, simplesmente, não temos escala. Na loja encontramos café de Cuba, Nicarágua, Chiapas – café produzido por comunidades zapatistas -; chá da Índia, do Vietname; chocolate do Equador; açúcar de Cuba… Um leque relativamente amplo de produtos. Na produção nacional temos azeite de produção de pequena escala, sal artesanal, aguardente de medronho, oriunda de uma pequena produção do Alentejo, águas florais, óleos essenciais, ervas aromáticas, vinhos… Isto na parte alimentar. Na área artesanal temos também um leque muito amplo de têxteis, por exemplo, produções vindas da cooperativa das Capuchinhas, de Castro Daire, que é uma iniciativa muito interessante. Temos cerâmicas e produtos têxteis do Perú. Estabelecemos uma relação direta com uma cooperativa peruana histórica no seio do Comércio Justo, e já vamos na segunda importação a este grupo de produtores, sem nenhuma intermediação. Também importamos diretamente produtos de Timor Leste, da Guiné-Bissau.

O que tentamos fazer, no domínio alimentar, sobretudo, é ter uma oferta complementar entre os produtos internacionais e os produtos nacionais. Não temos compotas que vêm da Bolívia, por exemplo, temos compotas que vêm de Setúbal. O azeite não vem da Palestina, vem do Alentejo. No entanto, temos sabonetes feitos com o azeite da Palestina, de uma organização israelo-palestiniana, porque, para nós, é um projeto fundamental, e que quereremos apoiar.

Na loja encontramos ainda livros e jornais.

Em termos de modelo de organização, como funciona o CIDAC e, mais especificamente, a loja de Comércio Justo?

O CIDAC é uma organização que nasceu em 1974, a partir de grupos que lutavam na clandestinidade contra as guerras coloniais, o colonialismo e a ditadura. Mas é uma pequena organização em termos do volume e da massa salarial, digamos assim. Somos quatro a trabalhar em permanência e temos atualmente uma equipa de cerca de oito voluntários e voluntárias, que integra pessoas dos dezoito aos setenta anos, e que nos apoia na loja e noutras dimensões do nosso trabalho. E as quatro pessoas permanentes que aqui trabalham têm um alto nível de polivalência: trabalhamos na esfera educativa, em escolas, seja no ensino formal como não-formal, continuamos o nosso trabalho de cooperação para o desenvolvimento, dinamizamos este centro de documentação histórico, onde continuamos a receber pessoas. Esta é, aliás, a raiz do CIDAC. Ele nasceu à volta do núcleo histórico documental.

A loja de Comércio Justo é um projeto a manter?

Sem dúvida. E esperamos que outras iniciativas assim se possam multiplicar no país.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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