Introdução
Este livro nasce de um diálogo natural entre pontos de vista diversos.
Um de nós tem defendido a saída do euro como a medida necessária para resgatar Portugal, enquanto o outro tem defendido a reestruturação da dívida como a medida prioritária para articular uma maioria e uma resposta às dificuldades imediatas. Para o primeiro (João Ferreira do Amaral), a degradação económica e as dificuldades europeias confirmam a insustentabilidade do modelo do euro e exigem a alternativa da saída. Para o segundo (Francisco Louçã), sendo o modelo do euro inaceitável, se a reestruturação da dívida continuar a ser bloqueada e recusada, as nossas escolhas ficam limitadas à saída como última opção, mesmo que difícil e com grandes custos.
São passos de um caminho comum de resposta democrática à crise, no quadro de uma análise convergente sobre a natureza das dificuldades económicas e sociais que têm sido impostas em Portugal. Num caso, aponta-se uma resposta estrutural e de longo prazo, no outro propõe-se um instrumento de conjugação de forças para procurar impor uma viragem.
Em ambos os casos, constatamos a gravidade da crise que nos é imposta e trabalhamos empenhadamente para formular uma alternativa realizável. Ora, não é tradicional no nosso país que propostas ou pontos de vista diferentes se articulem, procurem compreender-se com clareza, reconheçam as dificuldades, busquem soluções. Os autores deste trabalho entenderam, no entanto, que esse diálogo não só é produtivo como indispensável e trazem a público a demonstração desse processo.
Ambos reconhecemos que, por imposição externa ou por imperativo de escolha nacional, a saída do euro pode vir a ocorrer em prazos porventura curtos.
Há ainda duas boas razões para este esforço inédito, além do respeito pela capacidade do diálogo e da indagação científica para apresentar soluções consistentes. É que, apesar de propostas específicas para a resposta à crise nacional, ambos reconhecemos que, por imposição externa ou por imperativo de escolha nacional, a saída do euro pode vir a ocorrer em prazos porventura curtos. Mais ainda, pode mesmo ser a última ou a única das alternativas se fracassarem outras estratégias para corrigir os erros da austeridade, melhorar o desempenho económico corrigindo o défice externo e assegurar um modo de financiamento sustentável que preserve a democracia. Temos então a obrigação de nos preparar para essa eventualidade. Esses são os pressupostos essenciais deste livro. Por isso, sublinhamos que Portugal não pode aceitar mais sacrifícios em nome do euro e prosseguir a austeridade que tem destruído a economia e o emprego. Devemos contribuir para a reflexão sobre todos os caminhos possíveis e temos a mais forte motivação: o tempo para uma solução está a ficar curto.
Escrevemos então o que se segue para responder a estas questões: se Portugal quiser sair ou tiver de sair do euro, o que acontecerá nos dias seguintes? Em que direcção devemos caminhar? Como devemos responder aos novos problemas que se vão colocar na gestão económica, política e social, e como devem actuar o Estado e os grupos sociais?
Assim, partimos da hipótese de que ocorreu ontem a saída do euro, sem discutirmos aqui se é ou não a melhor estratégia ou sequer a melhor solução. Admitimos simplesmente que pode vir a ser a solução imposta pelas circunstâncias e que, caso se torne inevitável, Portugal deve ser capaz de tomar as melhores decisões, que queremos estudar e sugerir ao debate público sem mais demora. É disso que tratam as páginas que se seguem.
O livro que o leitor ou a leitora tem na mão é portanto sobre as dificuldades e algumas das soluções, sobre as estratégias e medidas possíveis e, sobretudo, sobre as respostas necessárias para uma política económica que respeite as pessoas, que mobilize capacidades e que resolva os problemas essenciais, como os do emprego, do financiamento e do investimento.
Este trabalho já devia ter sido começado e, pela nossa parte, entendemos que não se deve perder mais tempo. É preciso um plano de contingência. Para tanto, sugerimos estes pontos de partida para a reflexão e empenho em alternativas, que esperamos e desejamos que façam aproximar e convergir muitas outras opiniões.
É preciso um plano de contingência. Para tanto, sugerimos estes pontos de partida para a reflexão e empenho em alternativas, que esperamos e desejamos que façam aproximar e convergir muitas outras opiniões.
Por outro lado, não concordamos nem nunca concordámos com o federalismo como redenção da Europa. Nunca foi, nem é uma alternativa consistente a um autoritarismo crescente da Comissão Europeia e do Conselho, através dos quais os governos dos Estados mais poderosos, em particular o da Alemanha, impõem visões interesseiras, favorecendo rendas financeiras e a degradação da vida democrática. Pelo contrário, o federalismo, e a ideia de um “governo europeu” ou de um “Estado Europeu”, sempre foram motivo e justificação para o caminho que a União tem seguido. Em seu nome foi imposto o Tratado Orçamental ou, preparando-o, a regra do semestre europeu que determina a submissão das propostas de Orçamentos nacionais a fiscalização prévia pela Comissão.
Não aceitámos nem aceitamos uma forma de União que não respeite a existência de Estados com história, com nacionalidades, com cultura e com uma democracia que deve ter o poder soberano de tomar as decisões fundamentais que a afectam. Por isso, sempre defendemos que os tratados constitutivos da União deviam ter sido referendados e constatamos que o regime político português o prometeu mas nunca cumpriu.
Como veremos, a consequência deste autoritarismo e da sua política foi uma estrutura do euro que impõe a necessidade de uma desvalorização interna das economias mais frágeis, ou seja, reduz os salários e os rendimentos da maior parte da população para responder à recessão.
Impondo-nos esta política com a participação do governo que as aplicou, as autoridades europeias prosseguem assim a velha estratégia deflacionista de corrigir a recessão com medidas recessivas.
Transformaram o euro nessa “relíquia bárbara”, como Keynes chamava ao padrão-ouro nos anos vinte do século passado, e repetem os mesmos erros que causaram a primeira grande depressão e as tragédias dos anos trinta.
Acresce ainda que as condições institucionais na União Europeia se têm degradado rapidamente. Assim, o acordo sobre a união bancária retira aos Estados um dos seus instrumentos mais importantes de regulação sobre o sistema financeiro, que é o controlo sobre a actividade dos principais bancos que operam no seu território. Por outro lado, as precipitadas negociações do novo Tratado Transatlântico encaminham-nos para uma subordinação suplementar das regras ambientais e sociais às conveniências de mercado, além de aparentemente não terem em conta as questões monetárias, que são da maior importância nas relações entre os EUA e a Zona Euro.
Pior ainda, a obsessão da austeridade já se tornou a regra de ouro da Europa, propugnando um caminho de empobrecimento e desvalorização interna que constitui um status quo prejudicial e inaceitável.
Ora, esta desvalorização interna aumenta o peso da dívida dos Estados que praticam tal medicina. O que é absolutamente óbvio num exemplo inspirado em Tepper (2012): se um Estado tem um PIB de 100 e uma dívida de 100, o seu rácio de dívida é elevado, 100%; mas se, através de medidas recessivas, reduzir o seu PIB para 50, o seu rácio de dívida aumenta para 200% e só o idiota da aldeia pode propor esta estratégia para resolver o problema.
A obsessão da austeridade já se tornou a regra de ouro da Europa, propugnando um caminho de empobrecimento e desvalorização interna que constitui um status quo prejudicial e inaceitável.
Pior ainda, a recessão não corrige os problemas da competitividade externa, antes os agrava, porque destrói capacidade produtiva e reduz a compra de bens de equipamento indispensáveis, além de diminuir o emprego, reduzindo portanto a produtividade. Como estamos a ser governados por autoridades europeias que adoptaram a política do idiota da aldeia, este livro é uma reflexão e um manifesto contra a degradação do nosso país às mãos desta campanha destrutiva.
Estamos profundamente convencidos de que a estratégia da austeridade, antes e depois da troika, não tem nenhuma viabilidade e de que os factos o comprovam. A desvalorização interna desertifica o país e não pode resultar: só uma queda dos salários na ordem dos 60% é que alcançaria o efeito nos custos empresariais semelhante ao de uma desvalorização cambial de 20%, mas com enormes impactos sociais, pelo que é manifestamente inviável e absurdo conduzir uma política baseada no empobrecimento.
Assinalamos com toda a ênfase que a desvalorização interna da economia, como nos tem sido imposta, não é nunca uma forma de substituir uma desvalorização cambial, quando esta não é possível. Em primeiro lugar, ao contrário da desvalorização cambial, a desvalorização interna não constituiu um incentivo ao crescimento económico e muito menos ao crescimento económico baseado na produção de bens e serviços transaccionáveis.
Em segundo lugar porque, de novo ao contrário da desvalorização cambial, a desvalorização interna faz recair todo o peso do ajustamento sobre os salários (e de forma derivada sobre as pensões de reforma) numa dimensão tal que rapidamente se torna socialmente inaceitável.
Em terceiro lugar, porque coloca a sociedade numa trajectória de elevado nível de desemprego, perpetuado ao logo de décadas, condenando centenas de milhares de pessoas a uma vida sem perspectivas e pondo em causa a sustentabilidade do Estado social.
Ora, para além das razões indicadas, há mais duas que justificam que se estude os efeitos da saída de Portugal do euro. Em primeiro lugar, a permanência do nosso país na Zona Euro corresponde a uma situação paradoxal que não terá provavelmente paralelo algum, nem
no mundo actual, nem no passado.
Ou seja, a situação de um país que, em contexto de comércio livre, sendo um dos países mais endividados do mundo em termos de dívida externa, usa como sua a moeda mais forte do mundo (se considerarmos apenas as mais importantes). O carácter paradoxal desta situação impõe, no mínimo, que nos interroguemos sobre a possibilidade da sua sustentação.
A segunda razão tem a ver com a própria sustentabilidade da Zona Euro. O presente trabalho estuda os efeitos da saída do euro supondo, no entanto, que a Zona Euro se mantém, embora sem Portugal.
Mas o próprio futuro da Zona Euro está em causa. Os riscos são muitos. E basta pensar que, com toda a probabilidade – face às políticas de austeridade que têm sido seguidas e que se pretende prosseguir atravésdo cumprimento do Tratado Orçamental – a próxima crise financeira mundial encontrará a Zona Euro muito debilitada.
Não sabemos quando ocorrerá tal crise nem o seu grau de gravidade. Mas, a atentar na história das últimas décadas, uma nova crise não estará muito afastada no tempo. E o seu impacto, devido ao contínuo aprofundamento da globalização, será quase certamente profundo, mesmo que não atinja o nível da crise de 2007.
A ocorrência de um desastre sério é pois possível, podendo implicar inclusivamente o desmantelamento caótico da Zona Euro.
A Zona Euro, nessa quase certa eventualidade, não terá margem de manobra para aprofundar as políticas de austeridade. Nem margem económica, nem social. Mas ao mesmo tempo não terá alternativa, porque o governo da Alemanha e outros não aceitam outra via.
A ocorrência de um desastre sério é pois possível, podendo implicar inclusivamente o desmantelamento caótico da Zona Euro. Desta forma, é útil estudar a saída de Portugal do euro, ainda que noutro contexto, porque tal estudo nos trará elementos úteis para avaliar os efeitos se houver um desastre geral.
Em todo o caso, uma saída do euro e a consequente adopção de uma moeda própria não são processos fáceis. Têm vantagens e inconvenientes que devem ser cuidadosamente avaliados.
As vantagens principais são:
a) readequirir um instrumento essencial (a taxa de câmbio) para se estimular o crescimento económico baseado na produção de bens transaccionáveis;
b) ter capacidade de, através da emissão monetária própria, garantir que o Estado nunca deixe de satisfazer os seus compromissos internos (vencimentos de funcionários, pagamento de pensões, etc.) mesmo que possa ter dificuldades em satisfazer os seus compromissos externos ou em recorrer aos mercados financeiros;
c) ter a possibilidade de, ao melhorar a situação das contas externas do País, facilitar por essa via o financiamento bancário da actividade económica, rompendo o círculo vicioso das restrições de financiamento. A principal desvantagem tem a ver com a aceleração da inflação nos primeiros anos a seguir à saída da moeda única, em virtude do impacto interno da desvalorização cambial. Em todo o caso, conforme se referiu, não é intenção deste trabalho avaliar detalhadamente todos os benefícios e os custos da saída do euro. Porém, o leitor interessado encontrará aqui – segundo esperamos – elementos úteis para ajudar a formular a sua opinião sobre esta questão.
No pressuposto de permanência na Zona Euro, a total ausência de propostas de alternativas que assegurem a sustentabilidade do país nos domínios económico, financeiro, social, demográfico e político deixa aos defensores da obediência às regras do euro o ónus de esclarecer quais as condições que asseguram a sustentabilidade do país na moeda única.
A verdade é que não nos têm esclarecido, pois as propostas dos defensores do continuismo oscilam apenas entre uma ameaça de vinte ou mais anos de austeridade e a hipótese de uma milagrosa transformação da União Europeia num espaço ao serviço dos países devedores menos competitivos. Nenhum dos cenários é consistente. E daí que os defensores do status quo continuem sem nos informar cabalmente sobre como pretendem assegurar a sustentabilidade do país na moeda única.
Como a sustentabilidade não está assegurada, interessa estudar cenários de saída do euro. Consideramos que devemos ao debate público este esforço de formular alternativas claras. Não aceitamos a continuação da austeridade, das privatizações de bens e serviços públicos estratégicos, da degradação dos contratos de trabalho, da fragilização do emprego, da emigração forçada de jovens.
A resposta começa pela formação de uma opinião pública forte, que é a parte essencial da democracia, e pela apresentação de uma alternativa praticável. Estamos mesmo convencidos de que não há outra via senão esse esforço e essa mobilização para uma resposta nacional que permita enfrentar as orientações do Directório e dos interesses financeiros e económicos que representa. Na configuração dos poderes europeus, ninguém ouvirá o povo português se este não se fizer ouvir.
O primeiro capítulo aprecia as condições políticas em que pode ter decorrido a saída do euro. Não pretendemos apresentar cenários, sempre complexos, mas antes situar o mapa das decisões e dos caminhos políticos que podem balizar as escolhas fundamentais.
No segundo capítulo tratamos a questão do contexto constitucional e legal de uma eventual saída do euro tanto para Portugal como para a União Europeia e ainda vários debates europeus sobre a crise do euro, as suas contradições e algumas tentativas de solução.
Como veremos, algumas dessas propostas respondem razoavelmente à situação portuguesa, outras serão mais desadequadas, mas o debate é em todo o caso interessante e ilustrativo. Há muita gente na Europa a procurar soluções para este tipo de problemas, como os que decorrem de uma arquitectura errada, contraditória e prejudicial do euro e das políticas de austeridade desenvolvidas em seu nome.
O terceiro capítulo inventaria os grandes problemas que decorrem da decisão da saída do euro: a impressão das novas notas e moedas de escudo, a escolha da paridade e do regime de câmbios, a desvalorização e as suas consequências nos depósitos, dívidas, pensões e salários,
entre outros temas.
Procuramos definir as melhores formas de responder às dificuldades criadas no contexto da saída do euro, sem qualquer facilitismo. São decisões difíceis, com consequências sociais de grande impacto e, nesse contexto, queremos melhorar a capacidade de defesa do país, de protecção dos trabalhadores e pensionistas e de gestão de uma economia virada para a reindustrialização, para a criação de emprego e para a promoção de políticas sociais assentes na democracia.
Tratamos destas medidas como se fossem a recuperação da economia depois da devastação de uma guerra ou de uma outra tragédia, porque, infelizmente, é numa situação desse tipo que temos vivido.
Depois, o quarto e o quinto capítulos apresentam os resultados dos nossos cálculos sobre os efeitos a curto prazo de uma saída do euro – no contexto de um acordo com a União Europeia ou sem esse acordo –,e resumem as propostas que fazemos para enfrentar as dificuldades em cada uma dessas situações.
O sexto capítulo trata das medidas que vão ser necessárias a médio prazo para estabilizar a economia e para conseguir a recuperação do emprego e do valor dos salários e das pensões.
Finalmente, na conclusão, voltamos ao nosso tema de partida, perguntando quem ganha e quem perde com esta nova situação após a saída do euro. Procuramos demonstrar como se pode melhorar a parada para os que têm sempre perdido e não merecem continuar a ficar a perder, ou como se pode mudar a relação de poder na gestão económica, para favorecer a democracia. É ainda apresentado um resumo dos caminhos que propomos nesta eventualidade.
No conjunto, este livro não é um texto técnico. Apesar de incluir alguma informação especializada, procurámos escrevê-lo de modo a poder ser lido e discutido por qualquer pessoa interessada. Limitamo-nos assim a desenhar um mapa dos problemas e das soluções que propomos, que exigirão muito mais detalhe e cálculos do que os que aqui apresentamos. Esperamos que o debate seja estimulado por esta reflexão e que ajude a determinar as melhores escolhas para resolver a crise nacional e europeia.
Não se encontrará então neste livro nem transigência nem condescendência.
Também não hesitamos perante as dificuldades, porque temos consciência das exigências da transformação profunda que as nossas respostas representam. Essa deve ser a atitude prudente que inspire a decisão democrática nos dias que correm.