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"Lei Trans" aprovada em Espanha

O Projeto de Lei para a Igualdade Real e Efetiva das Pessoas Trans e para a Garantia dos Direitos das Pessoas LGTBI foi aprovado esta quinta-feira no Congresso espanhol. Apesar do texto ainda ter de passar pelo Senado, esta votação é já vista como o capítulo derradeiro de um debate que se arrastou ao longo de meses, tendo dividido o governo, o PSOE e mesmo o movimento feminista.
A chamada “Lei Trans” contou com 188 votos a favor, 150 contra, do PP e do Vox, e sete abstenções. Entre estas, para além de deputados do Ciudadanos, contava-se a de Carmen Calvo, ex-vice-presidente do governo, atual presidente da Comissão de Igualdade do Parlamento espanhol, e que foi a principal voz da oposição do PSOE a algumas das disposições contidas na lei.
Calvo destoou assim do sentido de voto do seu partido que acabou por aceitar a 12 de dezembro a derrota das emendas que tinha apresentado à lei. Em causa estava a tentativa do PSOE de alterar a proposta de forma a que a mudança de sexo no Documento Nacional de Identificação, o correspondente ao Cartão do Cidadão, para os menores entre os 14 e os 16 necessitasse de aval jurídico. Depois da votação, a deputada declarou à Cadena SER que escolheu a abstenção porque não está de acordo com a lei, “mas não posso coincidir com o “não” das direitas que não querem proteger nunca estes coletivos”.
Do lado dos vencedores do duro braço de ferro está Irene Montero, a ministra da Igualdade, dirigente do Podemos, que contrapôs “a forma mais contundente de fazer frente aos reacionários e continuar a avançar em democracia. Hoje esta Câmara diz que os direitos trans são direitos humanos”. Contudo, trata-se de uma vitória que não é em toda a linha. De fora da lei ficou a proposta de reconhecimento das pessoas não binárias. E foi sobre esse ponto que a governante fez questão de terminar o seu discurso no debate: “hoje é um dia difícil para as pessoas não binárias. Vocês conseguiram que a sociedade saiba que existam mas estou consciente de que necessitam o reconhecimento dos vossos direitos”.
A questão da mudança de sexo por vontade da pessoa tinha dividido ainda o movimento feminista. Um sinal disso, quer no 8 de março quer no passado dia 25 de novembro, Dia Internacional Contra a Violência Machista, foi a realização de marchas separadas.
O que a "Lei Trans" espanhola estabelece
- Autodeterminação de género
Passa a ser possível mudar o nome e o sexo no DNI com aval judicial entre os 12 e os 14, com consentimento dos pais ou representantes legais entre os 14 e os 16 e a partir daí livremente.
- Despatologização
Esta mudança deixa de precisar de aval médico, ao contrário da situação atual em que eram necessários pelo menos dois anos com tratamento hormonal e um relatório médico ou psicológico que diagnosticasse “disforia de género”, termo que já não é aceite pela comunidade científica nem pela Organização Mundial de Saúde.
- Reversibilidade
Voltar atrás na decisão de mudança de sexo será possível apenas através da expressão da vontade da pessoa interessada. Contudo, uma terceira mudança só poderá ser feita passando por um tribunal de primeira instância.
- Proibição das terapias de conversão
A “promoção ou prática de métodos, programas ou terapias de aversão, conversão ou contra-condicionamento, sejam psicológicos, físicos ou através do uso de fármacos, que tenham como finalidade modificar a orientação sexual, a identidade sexual, ou a expressão de género das pessoas, independentemente do consentimento que as mesmas ou os seus representantes legais possam ter prestado” é proibida, instituindo-se pena de multa até 150.000 euros.
- Filiação das crianças filhas de casais lésbicos que não casaram
Altera-se a situação atual em que a companheira de mãe biológica precisava de passar por um processo de adoção do bebé e passa a ser apenas necessário que “no momento da inscrição do nascimento o pai ou progenitor não gestante” preencha uma declaração. Abre-se assim a “possibilidade, para os casais de mulheres e casais de homens quando um dos membros for um homem trans com capacidade de ter uma gestação, de proceder a uma filiação não matrimonial por declaração conforme nos mesmos termos ao que acontece no caso dos casais heterossexuais”.
- Direitos das pessoas intersexuais
As pessoas com anatomia reprodutiva ou sexual com carácteres sexuais de ambos os sexos passam a ter direitos reconhecidos pela primeira vez. Proíbem-se as práticas de modificação genital em menores de 12 anos “exceto nos casos em que indicações médicas exijam o contrário para proteger a saúde da pessoa”. Entre os 12 e os 16 estas práticas são permitidas por solicitação do menor “sempre que, devido à sua idade e maturidade, possa consentir de maneira informada”. Antes do início de que qualquer tratamento que comprometa a capacidade reprodutiva “garantir-se-á que as pessoas intersexuais contem com a possibilidade real e efetiva de aceder a técnicas de congelamento de tecido gonadal e de células reprodutivas para sua futura recuperação”.
- Contra o “sexilio” e defesa das pessoas sem abrigo
A nova lei contém ainda propostas de defesa dos direitos das pessoas LGBT+ que vivem em contexto rural, obrigando as instituições públicas a garantir “igualdade efetiva no acesso a recursos e serviços” “nas mesmas condições que as pessoas residentes em ambientes urbanos”. O termo “sexilio” refere-se precisamente ao “abandono das pessoas LGTBI do seu lugar de residência por sofrerem rejeição, discriminação ou violência, especialmente nas zonas rurais”. Promover-se-á um estudo deste fenómeno para que, no prazo de um ano, através do Conselho de Participação das Pessoas LGTBI “se estabeleçam mecanismos adequados para recolher dados sobre a migração de pessoas LGTBI dentro de Espanha. Tendo em conta os dados obtidos, o sexilio será considerado, quando apropriado, como uma causa de despovoamento no âmbito das medidas sobre políticas de despovoamento do Governo espanhol”. Também se irá promover uma investigação sobre a realidade das pessoas em situação de sem abrigo LGBT+, prevê-se formação especializada para quem trabalhe com estas populações e medidas para prevenir crimes de ódio.
- Protocolos de cuidados com a saúde
As campanhas de educação sexual, estratégias e planos de saúde passam a ter a obrigação de incluir as pessoas LGBT+ e os profissionais de saúde deverão ter formação sobre diversidade. Haverá protocolos específicos para as pessoas intersexuais e trans sob a base da “não patologização, autonomia, decisão e consentimento informados e não discriminação”. A Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos Sanitários é responsabilizada por garantir o abastecimento dos medicamentos habitualmente utilizados nos tratamentos hormonais para pessoas trans.
- Diversidade nas aulas
Conteúdos sobre diversidade serão incluídos nas aulas, incluindo nas universidades e nas formações para profissões docentes, sanitárias e jurídicas. Nos materiais escolares haverá materiais sobre o respeito da “diversidade sexual, de género e familiar”. No âmbito escolar, os menores trans deverão ser tratados de acordo com a sua identidade e as autoridades escolares deverão implementar protocolos de acompanhamento dos alunos trans e contra o assédio.
- Planos de igualdade LGBT+ nas empresas
Para além da criação de códigos éticos na administração pública, empresas com mais de 50 trabalhadores terão de implementar “um conjunto planificado de medidas” para garantir a igualdade das pessoas LGBT+ e para prevenir o assédio. Prevê-se a “implantação progressiva” no plano laboral de indicadores que tenham em conta esta realidade e formação de inspetores do trabalho sobre esta questão.
- Medidas contra a LGTBIfobia
As vítimas de “LGTBIfobia” terão direito a cuidados especializados como informação sobre direitos e recursos disponíveis, assistência psicológica e orientação jurídica. Haverá multas para quem a pratique. De entre 10.001 a 150.000 euros, para a “elaboração ou utilização em colégios de materiais discriminatórios ou a denegação de acesso a estabelecimentos por motivo de orientação sexual ou identidade de género. De entre 2.000 a 10.000 euros para a imposição de cláusulas discriminatórias em negócios. De entre 200 e 2.000 euros por se emitir “expressões vexatórias” na “prestação de serviços públicos ou privados” ou “por causar estragos a bens móveis ou imóveis de pessoas LGTBI por causa da sua pertença coletiva, a centros associativos ou símbolos da memória histórica”. Para além disso, proíbe-se a atribuição de subvenções, recursos ou fundos públicos a qualquer pessoa física ou jurídica que “incite ou promova a LGTBIfobia”, incluindo o fomento das terapias de conversão.
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