Legalização da canábis em debate na AR

28 de setembro 2012 - 23:24

O anteprojeto de lei do Bloco para legalizar o autocultivo e criar clubes sociais de canábis foi debatido em audição pública no Parlamento. O presidente da Federação de Associações Canábicas de Espanha descreveu o funcionamento dos clubes sociais, uma experiência de sucesso desde há duas décadas.

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Foto Catarina Oliveira.

O deputado João Semedo apresentou a proposta do Bloco que está em debate público, numa audição moderada pelo dirigente bloquista José Soeiro que contou também com a participação ainda a deputada socialista Elza Pais e o ativista da Marcha Global da Marijuana Marco Pereira.



João Semedo reconheceu "os progressos enormes dos últimos anos para a prevenção e o tratamento" com a descriminalização do consumo de drogas, aprovada em 2001 no Parlamento, mas sublinhou que "há aspetos negativos a corrigir". "Queremos evitar que haja milhares de consumidores empurrados para o mundo clandestino do tráfico", afirmou o deputado, acrescentando que este projeto lei tem também por objetivo "questionar a doutrina proibicionista", dado que "o mundo do tráfico é mais poderoso hoje do que alguma vez foi".



Semedo apresentou as linhas gerais da proposta do Bloco, que visa legalizar o cultivo para consumo próprio e criar o enquadramento legal para a criação dos clubes sociais de canábis, associações de consumidores sem fins lucrativos, que organizam o cultivo para os associados e têm regras e limitações próprias. A entrada é restrita a maiores de idade e faz-se por proposta de outro sócio, com uma limitação do número total de associados por clube, para garantir o controlo dos consumos problemáticos e evitar a lógica comercial. Nestes clubes, as doses dispensadas não podem exceder o limite do consumo para 30 dias e não é permitida a venda de bebidas alcoólicas nem a presença de máquinas de jogo.  



Marco Pereira, da MGM Lisboa, afirmou ue com a lei atual os consumidores continuam a ser perseguidos, quer através das coimas e sanções administrativas, quer através de penas de prisão devido ao limite legal para a posse de canábis ser pequeno. "Há muitos casos de consumidores condenados a penas de prisão por tráfico de menor gravidade sem que existam indícios de tráfico", afirmou o ativista da Marcha que todos os anos junta milhares de pessoas em defesa da legalização da canábis. Marco Pereira saudou a iniciativa do Bloco e deixou algumas propostas para o projeto a apresentar nas próximas semanas na Assembleia da República, no que toca à definição dos limites para o autocultivo - que no anteprojeto bloquista é de dez plantas por pessoa -, propondo uma distinção entre o cultivo no exterior e o cultivo indoor, com os limites definidos de acordo com a potência da iluminação utilizada.



Em seguida, o dirigente da Federação das Associações Canábicas (FAC) de Espanha fez um breve historial da legislação em vigor no país vizinho, que abriu espaço ao nascimento dos clubes sociais desde o início dos anos 90. Mas fez notar que apesar desta experiência ser marcada pelo sucesso, existe ainda uma insegurança jurídica muito grande, dado que os clubes não estão regulamentados na lei. E mesmo acontece no autocultivo, já que "não há um limite de plantas para consumo pessoal, ou seja, depende da interpretação do polícia de cada local", afirmou Martín Barriuso.



O dirigente associativo basco defendeu ainda que os clubes sociais são uma alternativa concreta que respeita a legislação internacional, dado que "cada Estado da União Europeia tem soberania para decidir sobre o consumo, pois os tratados internacionais só obrigam a punir o tráfico". Sobre o funcionamento destes clubes, Barriuso diz que "são associações legalizadas em que os seus membros decidem em Assembleia a criação da plantação coletiva com base na previsão de consumo dos seus membros". As quotas pagas pelos associados cobrem os custos com o cultivo e o funcionamento da associação, que paga impostos como o IVA ou o IRC e a segurança social dos seus funcionários. A cada sócio é exigida a participação num curso de formação inicial acerca das formas e dos riscos do consumo, bem como informação sobre a o uso e a história da canábis.



"Como se trata de um círculo fechado, é mais fácil detetar consumos problemáticos", acrescentou Barriuso, que vê aí uma grande vantagem em relação ao modelo holandês dos coffee-shops. "Trata-se de um sistema opaco em que ninguém controla a produção e tem como finalidade o lucro", diz o presidente da FAC, lembrando que hoje em dia "há donos de coffee-shops ameaçados pelas mafias para lhes comprarem o produto deles". "Nós não queremos um modelo como o que existe para o tabaco, nas mãos das grandes companhias. Uma substância aditiva não pode ser um negócio", concluiu Barriuso, alertando para o desvirtuamento das características dos clubes quando se expandem demasiado, como acontece já em Espanha devido à falta de regulação. "Um clube de dez mil pessoas nunca vai ser um círculo fechado em que as pessoas se preocupam umas com as outras", rematou. Pelas contas da FAC, "se os 23 milhões de consumidores de canábis na União Europeia fossem membros de clubes, as receitas dos Estados aumentariam 8400 milhões de euros, numa estimativa conservadora".



A deputada socialista Elza Pais interveio saudando a proposta do Bloco por vir "aprofundar o debate num tema onde ainda há muito por fazer". "É nos momentos de crise que devemos discutir mais, porque é aí que estes direitos ficam mais ameaçados", acrescentou, notando que "a criminalidade e o consumo injetável de drogas" estão de novo a aumentar à medida que piora a situação económica e se agrava a exclusão social. Elza Pais fez ainda notar que o uso de drogas tem acompanhado desde sempre a história da Humanidade, ao contrário da proibição que surgiu no século passado. "A estratégia deve passar pela aposta na prevenção e na redução de riscos, porque se os meios aplicados na repressão são muitos, os meios usados pelos cartéis para fugir a essa repressão são muito superiores", declarou a deputada socialista e antiga responsável pelo Instituto Português da Droga e Toxicodependência (atual IDT).



Elza Pais destacou ainda que a experiência portuguesa de descriminalização do consumo é reconhecida hoje a nível internacional como um exemplo de sucesso, mas que deixou por resolver o problema da aquisição legal para consumo próprio, uma lacuna que este projeto do Bloco, na sua opinião, vem agora preencher. "Concordo com esta proposta porque respeita as convenções internacionais, retira negócio aos traficantes, é apoiada em experiências bem sucedidas e adota uma estratégia de prevenção e diminuição da procura", afirmou, acrescentando que a considera "um passo significativo, como foi o da descriminalização, para lutar contra a hipocrisia e os preconceitos, acautelando a questão da saúde individual e da saúde pública".



No debate que se seguiu, foram colocadas questões sobre o anteprojeto de lei em discussão pública, nomeadamente sobre os limites no autocultivo, a questão das sementes - atualmente proibidas em Portugal - ou o acesso à canábis para fins terapêuticos, bem como questões relacionadas com o funcionamento dos clubes sociais. No fim do debate, o deputado João Semedo aformou que ele irá continuar com outras sessões em várias cidades - Braga e Leiria têm já agendados debates para dia 6 de outubro e no Porto já se realizou no dia 27 - para recolher mais contributos para melhorar a proposta, antes do Bloco a apresentar no fim deste período de discussão pública.