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Juiz insiste que mulher autónoma não pode ter sido vítima de violência doméstica

Uma decisão do Tribunal Judicial de Viseu, de 3 de outubro, põe em causa que uma mulher moderna e autónoma possa ser vítima de violência doméstica. Entretanto, foi interposto um recurso, que deu entrada no Tribunal da Relação de Coimbra, no qual se acusa o juiz de deturpar prova com base em preconceitos. O Tribunal da Relação de Coimbra ordenou que o Tribunal Judicial de Viseu fundamentasse as razões que levaram a descredibilizar o testemunho da vítima e das suas testemunhas.
A leitura do esclarecimento à sentença da primeira instância foi agendada para esta sexta-feira, às 14h, no Tribunal Judicial de Viseu.
O juiz especificou alguns factos da fundamentação, mas manteve a absolvição de todos os crimes de violência doméstica e perturbação da vida privada e injúria. O agressor foi apenas condenado por porte de arma, com uma coima de 1600€.
Uma mulher moderna e autónoma não pode ser vítima de violência doméstica
Susana saiu da casa onde vivia com o marido, Ângelo, no dia 7 de julho de 2014, e apresentou queixa por violência doméstica. Na sequência da denúncia, a GNR foi a casa do casal, tendo apreendido uma espingarda de caça e uma arma de ar comprimido, que pertenciam a Ângelo. Ficou provado que Ângelo mandou inúmeras mensagens a pedir desculpa e perdão, telefonou, de forma insistente, para o telemóvel, para casa e para o trabalho de Susana e procurou-a em diversos locais. No âmbito deste processo, foi acionado o Sistema Nacional de Vigilância Eletrónica.
Não obstante os relatos de insultos, ameaças e agressões de vária índole, o juiz baseou-se na versão do arguido e das duas testemunhas apresentadas pelo mesmo, que admitiram que Ângelo agredia Susana mas que não era “a sério” e não era gratuito, ela também lhe dava beliscões.
A versão de Susana, da mãe e a das testemunhas por si apresentadas foram recusadas. Foi ainda descartada a gravação que o irmão dela garante ter de um telefonema em que Ângelo a promete nunca mais bater a Susana.
O juiz acabou por absolver o arguido de dois crimes de violência doméstica, um crime de perturbação da vida privada, um crime de injúrias e o condenar por um crime de detenção de arma proibida.
A decisão parece basear-se no pressuposto de que uma mulher moderna e autónoma não pode ser vítima de violência doméstica e de que, para provar uma situação de violência doméstica, é necessário apresentar prova de dano físico.
“Denotou em audiência de julgamento ser uma mulher moderna, consciente dos seus direitos, autónoma, não submissa, empregada e com salário próprio, não dependente do marido”, lê-se na decisão, citada pelo Público.
"(...) cremos que dificilmente a assistente aceitaria tantos actos de abuso pelo arguido, e durante tanto tempo, sem os denunciar e tentar erradicar, se necessário dele se afastando”, sinaliza o documento.
“O seu carácter forte e independente foi mesmo confirmado por várias testemunhas [...]. Por isso cremos que dificilmente a assistente aceitaria tantos actos de abuso pelo arguido, e durante tanto tempo, sem os denunciar e tentar erradicar, se necessário dele se afastando”, sinaliza o documento.
“A senhora não tinha filhos, portanto, a primeira coisa que podia fazer era sair de casa”, lê-se, por outro lado, nas transcrições do julgamento.
O juiz insistiu na necessidade da prova de dano físico: “O que temos aqui são episódios em que a senhora aparece com dificuldades respiratórias, com crise hipertensiva, palpitações (…) “Qualquer coisa a ver com o sono, depois tem realmente a questão do aborto que fez, tem depois problemas psiquiátricos também aqui com receitas desse teor, mas não temos um único elemento clínico no processo em que se a senhora se dirigiu por ter uma lesão física”, aponta o juiz.
O relatório médico sobre o sacro partido é descartado por falta de referência a agressões: “Se alguém me empurrasse pelas escadas abaixo e eu me lesionasse no sacro, eu faria certamente queixa contra quem fosse”, notou o juiz, que também não acreditou que o aborto que Susana provou ter sofrido tivesse sido provocado por uma agressão.
As respostas de Susana não mereceram credibilidade junto do juiz: “Confrontada com o facto de ser uma mulher autónoma e com salário proveniente do seu trabalho, não dependente do arguido, e mesmo assim ter-se — alegadamente — submetido a tantos episódios de violência doméstica durante seis anos, a assistente afirmou que tinha esperança que o arguido se mudasse”, lê-se no acórdão. “Confrontada com a ausência de qualquer queixa ou denúncia por violência doméstica praticada pelo arguido antes de ter saído de casa, declarou que tinha receio dele, e sentia vergonha”, acrescenta o documento.
Durante a sessão, o juiz ainda achou por bem interrogar Susana sobre a sua vida amorosa: “Tem algum namorado? E alguma vez teve alguma relação com um seu colega de trabalho?”, questionou.
Contra uma justiça machista e patriarcal
A Plataforma Já Marchavas fez questão de estar presente para “assinalar uma posição de intransigência para com a violência doméstica e a justiça machista e retrógrada que dá sinais de tolerância a um crime que mata todos os anos dezenas de mulheres”.
“Exigimos que a aplicação da lei seja feita por juízes com a devida formação e assessorias técnicas, a criação de equipas multidisciplinares especializadas nas várias fases do processo e nas várias entidades, e que deixe de se fazer depender do consentimento do agressor a aplicação de medidas para a prevenção e fiscalização do seu comportamento criminoso”, lê-se em comunicado divulgado pela Plataforma.
Os e as ativistas defendem que “o sistema judiciário tem de ser mais eficaz e proactivo, deixando de vitimizar duplamente as mulheres, muitas vezes infantilizando-as e culpabilizando-as, ao obrigá-las a sair de casa e a esconderem-se em casas abrigo”.
No documento, sinalizam que o atual enquadramento legal potencia as penas suspensas (para penas abaixo de 5 anos), o que equivale a deixar as vítimas expostas a mais violência, que demasiadas vezes chega a ser letal”.
A Plataforma Já Marchavas convocou para o dia 8 de Março, pelas 17 horas, no jardim Tomás Ribeiro, junto à Câmara Municipal de Viseu, uma concentração integrada no evento Greve Feminista da Rede 8 de Março, que terá como objetivo, além do convívio e partilha, a reflexão sobre a atual situação das mulheres, nas várias vertentes sociais. O evento inclui um lanche partilhado e momentos culturais.
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