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"Janelas Fechadas", por José Luís Peixoto

Vou no banco de trás, não estou atento à estrada, não ouço as conversas das pessoas que vão comigo na carrinha. Não sei se parámos por causa de um semáforo, se o carro da frente abrandou, se alguém ia a atravessar a estrada e tivemos de parar. Por José Luís Peixoto. 
Foto de Jeffrey Riley, via www.joseluispeixotoemviagem.com
Foto de Jeffrey Riley, via www.joseluispeixotoemviagem.com

Joanesburgo, África do Sul

Vou no banco de trás, não estou atento à estrada, não ouço as conversas das pessoas que vão comigo na carrinha. Não sei se parámos por causa de um semáforo, se o carro da frente abrandou, se alguém ia a atravessar a estrada e tivemos de parar. Sei que os meus olhos se cruzaram com os dele. Foi enorme esse instante. Os nossos olhos encontraram-se, estiveram no mesmo lugar. Eu, dentro da carrinha, no banco de trás, janelas fechadas, rodeado de conversas que não ouço, e ele, num passeio do centro de Joanesburgo.

Avisaram-me para ter cuidado com pessoas como ele. Disseram-me que, no centro da cidade, não se pode andar a pé. Os títulos dos jornais, pendurados nos postes elétricos, substituídos todos os dias, resumem crimes horríveis numa frase. Contaram-me crimes ainda mais horríveis, um conhecido estava lá, assistiu a tudo. E tenho de ter sempre as janelas fechadas, não posso abri-las por nenhum motivo. Se tiver calor, ligam o ar condicionado.

Mas os nossos olhares cruzaram-se. Ele não tem medo de andar a pé nas ruas do centro da cidade. Dirige-se a algum lugar que ignoro, onde eu não poderia ir. Aqui, na carrinha, olhamos pelas janelas fechadas e apenas imaginamos o que existe por detrás das portas por onde entram multidões. Nas conversas que deixei de ouvir, estes sul-africanos referem-se a esses sul-africanos como «eles».

Duvido dessa distância. Os olhos transportam uma humanidade que custa a descrever mas que se partilha instantaneamente.

Talvez venha de Alexandra, o imenso bairro da lata que, na estrada entre Pretória e Joanesburgo, espanta pela superfície de telhados de zinco até ao horizonte, a refletir o sol. Imagino caminhos estreitos de terra vermelha, entre barracas de madeira, chapas de madeira reaproveitadas. Em Joanesburgo, vivem milhões de pessoas nesses bairros, as townships. Há crianças que nascem lá, crescem lá, mas nós não podemos entrar nessas ruas, nem pensar, essa é uma ideia inconcebível, que não pode sequer ser colocada.

O retrato de Joanesburgo, aquilo que há para visitar ou fazer na cidade, excluí todas essas áreas, a realidade da maioria. Se houver uma festa nesses bairros, não será anunciada nos jornais, quem lê os jornais não pode ir lá; se houver um crime ou uma desgraça, virá nos jornais, quem lê os jornais tranquiliza-se por não estar lá. Mas não posso garantir que ele venha de algum desses bairros. Essa suspeita é parte do meu próprio preconceito, avaliando-o pela sua aparência e pelo pouco que sei acerca de quase nada.

O que pensará ele sobre mim? A carrinha continua o seu caminho. As pessoas que vão comigo sentem-se aliviadas por estarmos de novo em movimento. Ele fica lá, mistura-se com outros rostos, dirige-se para um lugar que ignoro. Eu continuo o meu caminho, por detrás destas janelas fechadas. Existiu um instante em que estivemos no mesmo lugar. Agora, esse instante passou, é um instante irrepetível, coberto por um peso, pela certeza triste e banal de que nunca mais nos encontraremos.

Texto de José Luís Peixoto, publicado no seu blogue de viagens

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