Islândia: O desastre dos Novos Bancos

19 de novembro 2011 - 17:23

Os abutres tornaram-se proprietários de dois dos três novos bancos Islandeses. Seguindo o conselho do FMI, o governo negociou um acordo frouxo ao ponto de lhes dar uma licença de caça sobre famílias e empresas islandesas. Artigo de Olafur Arnarson, Michael Hudson and Gunnar Tomasson.

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Da Grécia à Islândia, os governos estão a atuar como garantes ou mesmo como os agentes de cobranças em nome do setor financeiro. Foto siggimus/Flickr

O problema dos empréstimos bancários falidos, especialmente os que tinham garantias do governo como os empréstimos para estudantes dos Estados Unidos e as hipotecas da Fannie Mae, lançou o questionamento do que deve ser mesmo um “valor razoável” para essas obrigações de dívida. Deverá “valor razoável” refletir o que os devedores podem pagar – isto é, pagar sem ir à falência? Ou será razoável para os bancos e até para os fundos abutre sacar tudo o que podem espremer aos devedores?

A resposta dependerá muito do grau com que os governos apoiam as pretensões dos credores. A definição legal de quanto pode ser espremido está a tornar-se uma questão política que lança governos nacionais, o FMI, o BCE e outras agências financeiras num conflito que enterra bancos, fundos abutre e populações atadas pelas dívidas uns contra os outros.

Esta questão polarizante irrompeu agora especialmente na Islândia. O país está a sofrer agora uma segunda volta de sofrimento económico e financeiro com origem no colapso do sistema bancário em outubro de 2008. Essa crise causou uma enorme perda de poupanças não só para cidadãos nacionais como também para credores internacionais como o Deutsche Bank, Barclay's e seus clientes institucionais.

Presos a maus empréstimos e más obrigações de emissores falidos, os investidores estrangeiros nos velhos bancos venderam as suas obrigações e outras dívidas por tuta e meia a compradores cujos sítios Web se descreviam a si próprios como “especializando-se em ativos afligidos” comummente conhecidos como fundos abutre. (Rumores persistentes sugerem que alguns estejam a trabalhar com os antigos proprietários dos bancos Islandeses falidos, funcionando a partir de banca off-shore e de paraísos fiscais e atualmente sob investigação por um Procurador Especial.)

No momento em que aquelas obrigações eram vendidas no mercado, o governo da Islândia possuía 100% dos três novos bancos. Representando o interesse nacional, pretendeu que os bancos transmitissem aos devedores as depreciações que tinham descontado aos ativos que compraram aos velhos bancos. Isto era o que se pretendia que o “valor razoável” fosse: a baixa avaliação de mercado de então. Pretendia-se que tivesse em conta uma capacidade razoável de famílias e empresas para liquidarem empréstimos que se tinham tornado impagáveis dado que a moeda tinha caído e os preços de importação tinham subido em consequência.

O FMI entrou neste filme em novembro de 2008, aconselhando o governo a reconstruir o sistema bancário de forma que “incluísse medidas para assegurar a avaliação justa de ativos [e] maximizar a recuperação de ativos”. O governo criou três "bons" bancos novos a partir das ruínas dos seus bancos falidos, transferindo empréstimos dos velhos para os novos bancos com um desconto de até 70 por cento para refletir o seu valor razoável, baseado na avaliação duma terceira parte independente.          

Os abutres tornaram-se proprietários de dois dos três novos bancos Islandeses. Seguindo o conselho do FMI, o governo negociou um acordo frouxo ao ponto de lhes dar uma licença de caça sobre famílias e empresas islandesas. Os novos bancos atuaram tal como as agências de cobranças dos Estados Unidos quando compram dívidas de cartão de crédito más, empréstimos bancários ou contas por pagar a comerciantes por 30% do valor nominal e logo perseguem como cães de caça os devedores para lhes espremer tanto quanto possam, dê para onde der.

Estes necrófagos do sistema financeiro são o veneno de muitos estados. Mas há agora o perigo da sua subida ao topo da pirâmide legal internacional, a um ponto onde estejam em posição para oprimir economias nacionais inteiras.

O caso da Islândia tem um toque especial. Segundo a lei as hipotecas islandesas e muitos outros empréstimos ao consumo estão ligados ao índice de preços no consumidor em alta no país. Os proprietários desses empréstimos não só podem exigir 100 % do valor facial, como também podem acrescentar o aumento no valor emprestado pela atualização de preços. Milhares de famílias enfrentam a pobreza e perda de propriedade por causa de empréstimos que, em alguns casos, mais que duplicaram em consequência da crise da moeda e subsequente inflação de preços. Mas o FMI, o Governo e o Supremo Tribunal da Islândia declararam firmemente a atualização pelo índice de preços do valor emprestado e das taxas de juro usurárias, para que o sistema bancário reestruturado não padecesse.

Isto não é o que se esperava. Em 2009 o governo "esquerdista" que entrou negociou um acordo com credores para relacionar pagamentos de empréstimos com o valor da transferência descontado. Seguindo o conselho do FMI, o governo entregou o controle de interesses nos novos bancos aos credores dos velhos bancos. O objetivo era minimizar o custo de refinanciar o sistema bancário – mas não era destruir a economia. Empréstimos que foram transferidos dos velhos bancos para os novos depois da crise de 2008 com um desconto até 70% para refletir o seu valor de mercado depreciado. Este desconto era para ter ser transmitido aos tomadores dos empréstimo (famílias e empresas) que enfrentam valores de empréstimos e de pagamentos a subir em flecha por causa da  atualização dos empréstimos pelo Índice de Preços no Consumidor.

Mas a sobrevivência da economia não é um interesse supremo dos agressivos fundos de cobertura [hedge funds] que substituíram os bancos estabelecidos que originalmente emprestavam aos bancos islandeses. Em vez de passarem as reduções de dívidas às famílias e a outros devedores, os novos bancos estão a reavaliar esses valores emprestados em alta.

As suas exigências estão a manter a economia num colete de forças.

Em vez de haver lugar à reestruturação da dívida como originalmente se esperava, está-se a montar o cenário para uma nova crise bancária.

Algo vai ter de ceder. Mas por enquanto é a economia de Islândia, não os fundos abutre. Com o FMI a insistir que o governo se abstenha de intervir, a avaliação da aprovação do governo desceu a pique para apenas 10% dos islandeses, por se comportarem de forma tão errada, enquanto os novos proprietários ditam as regras.

Os Novos Bancos reduziram dívidas a grandes devedores de grupos económicos cujas operações contínuas lhes asseguraram um papel como árvores das patacas para os novos proprietários abutre. Mas as dívidas das famílias adquiridas entre 30 a 50 por cento do valor facial foram reavaliadas até 100 por cento. O valor da share equity dos proprietários subiu em flecha. O Governo não interveio, aceitando a afirmação dos bancos de que têm falta de recursos para conceder um alívio significativo à dívida das famílias. Assim altas dívidas impagáveis são mantidas nos livros, a preços de transferência que permitem uma sorte grande para os rapinantes financeiros, condenando os devedores a uma década ou mais de situação líquida negativa.

Com o trabalho preparatório feito, o tempo chegou para os Abutres embolsarem com a revenda das equity shares dos Novos Bancos por volta do fim do ano. Os Novos Bancos mantiveram as suas árvores das patacas corporativas à tona da água enquanto enfeitavam as frações dos proprietários  com avaliações irrealistas de dívidas de consumidores que não conseguem ser pagas, exceto à custa da falência da economia.

Há a sensação de que o governo da Islândia deixou de ter capacidade para atuar como um corretor honesto, como os lobistas da banca fizeram com a informação provilegiada de Althing – agora apoiado pelo FMI – para fornecer uma sorte grande aos credores.

Problema que se torna global. Muitos países europeus e Estados Unidos enfrentam caíram bancos em colapso e sistemas bancários fora dos carris. Como deverão responder o FMI e o BCE? Prescreverão o modelo de tipo islandês de colaboração entre governo e fundos de cobertura? Ou deverá ser dado ao governo o poder para resistir à pulsão dos fundos abutre de se aproveitarem da situação a uma escala internacional, apoiados por sanções internacionais contra a sua rapina?



O perigo político que a Europa enfrenta agora

Uma crise económica é o equivalente financeiro da conquista militar. É uma oportunidade para elites financeiras arrebatarem propriedade à medida que a Era da Execução de Hipotecas chega. Também se torna um arrebatar político para tornar verdadeiras as dívidas financeiras que se tinham tornado incobráveis e portanto contabilidade “mark-to-model" basicamente fictícia. A retórica populista é trabalhada para mobilizar a aflição financeira disseminada e o descontentamento geral como uma oportunidade para virar perdedores uns contra os outros e não contra os credores.

Este é o ponto em que todos os anos de propaganda financeira dão resultado. Os Neoliberais persuadiram o público a acreditar que os bancos são necessários para “olear as engrenagens do comércio” – isto é, fornecer a circulação de crédito que traz nutrição às peças em movimento da economia. Só em tais condições críticas podem os bancos cobrar o que se tornou um aumento fictício de reclamações de dívidas. O crescimento excessivo das dívidas de hipotecas, de dívida de grandes grupos econnómicos, de empréstimos a estudantes, de dívidas de cartão de crédito e outras dívidas é fictício porque em circunstâncias normais não há forma nenhuma de serem pagos.

A Era da Execução de Hipotecas não é suficiente, porque muita propriedade caiu em situação líquida negativa – aproximadamente um quarto da propriedade imobiliária dos Estados Unidos. E para a Irlanda, o valor de mercado da propriedade imobiliária cobre apenas 30% do valor facial das hipotecas. Por isso

A Era dos Resgates torna-se necessária. Os bancos entregaram os seus maus empréstimos ao governo em troca de dívida do governo. A Reserva Federal arranjou mais de 2 trillões de dólares em tais trocas favoráveis à banca. Os bancos recebem obrigações do governo ou depósitos do banco central em troca das suas dívidas más, aceites pelo valor nominal e não em preços "mark-to-market".

Pelo menos nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha o banco central pode imprimir tanta moeda nacional como a necessário para pagar os juros e manter estas obrigações do governo líquidas. As agências públicas então assumem a posição do credor face aos devedores que não podem pagar.

Essas agências públicas têm então uma escolha. Podem procurar reunir o montante total (ou pelo menos, tanto quanto consigam arranjar), como no caso de Fannie Mae e Freddie Mac nos Estados Unidos. Ou o governo pode vender as más dívidas aos fundos abutre por uma fração do seu valor nominal.

Depois da crise de setembro de 2008 o governo da Islândia pegou nos bancos velhos em colapso e criou outros novos no seu lugar. Os obrigacionistas originais dos velhos bancos desfizeram-se das obrigações bancárias islandesas no mercado por tuta e meia. Os compradores foram fundos abutre. Esses obrigacionistas tornaram-se os proprietários dos velhos bancos, à medida que todos os acionistas foram varridos. Em outubro, a autoridade monetária do governo nomeou novos Conselhos para controlar os bancos. Três novos bancos foram criados e todos os depósitos,  hipotecas e outros empréstimos bancários foram transferidos para esses bancos novos, mais sãos – com um desconto elevado. Esses novos bancos receberam 80 por cento dos ativos, os velhos bancos 20 por cento.

Então aos proprietários dos velhos bancos foi dado o controle de dois dos novos bancos (87% e 95% respetivamente). Aos proprietários desses novos bancos chamou-se abutres não só por causa do desconto elevado com que os ativos financeiros e as dívidas dos velhos bancos foram transferidos, mas principalmente porque eles já tinham comprado o controle dos velhos bancos por tuta e meia.

O resultado é que em vez do governo manter os bancos e simplesmente limpá-los da falência, o governo manteve-se à parte e deixou investidores abutre colherem uma sorte grande gigantesca – que agora ameaça mergulhar a economia da Islândia na austeridade financeira crónica. Olhando para trás, nada disto era necessário. A pergunta é o que o governo pode fazer para limpar a bagunça que criou por ter tão credulamente tomado o mau conselho do FMI?

Nos Estados Unidos os bancos que receberam dinheiro para resgate do TARP deveriam negociar com os devedores de hipoteca para reduzir as dívidas para preços de mercado e/ou de acordo com a capacidade de pagar. Isto não foi feito.

De mesmo modo na Islândia os fundos abutre que compraram os maus empréstimos dos “ bancos velhos” deveriam transmitir as reduções nas dívidas aos devedores. Isto não foi feito também. De facto, os montantes emprestados continuaram a ser reavaliados em alta de acordo com a indexação de preços única da Islândia, concebida para evitar aos bancos de sofrer perdas – isto é, para assegurar que a economia no seu conjunto sofre, sofrendo mesmo um ataque de austeridade fatal, para que os banqueiros se mantenham “restaurados”. Isto significa fazer uma sorte grande para os abutres que compram  empréstimos maus ao desbarato.

É este o futuro da Europa também? Nesse caso a crise financeira presente tornar-se-á sorte grande para os bancos abutre e para os bancos em geral.

Enquanto que uns quantos séculos passados viram crises financeiras limpar as economias e demandas dos credores (obrigações, empréstimos bancários, etc.) que são o equivalente das dívidas más, hoje estamos a ver as más dívidas a continuar nos livros, mas os bancos e obrigacionistas que forneceram os maus empréstimos a serem restaurados às custas dos contribuintes.

Não era assim que se esperava que a democracia económica funcionasse durante o impulso do século XIX para reforma Parlamentar. E no alvor do século XX os partidos sociais-democratas e trabalhistas deveriam ter tomado a dianteira em levar banca e crédito junto com outra infraestrutura básica para o domínio público. Mas hoje, da Grécia à Islândia, os governos estão a atuar como garantes ou mesmo como os agentes de cobranças em nome do setor financeiro – como o movimento Ocupar Wall Street exprime o “1% ” no topo não os 99% de baixo.

A Islândia serve como ensaio a este arrebatar de poder. O FMI e o governo da Islândia fizeram uma conferência em Reykjavik no dia 27 de outubro para celebrar o êxito ostensivo da sua reconstrução da economia e sistema bancário da Islândia.

Nos Estados Unidos, a crise que o Chefe de Gabinete de Obama, Rahm Emanuel, celebrou como “demasiado bom para deixar ir para o lixo” será rematada reduzindo a Segurança Social e  Assistência Médica [Medicare] logo que o Relógio do Dia do Juízo Final de outono pare e o Super-comité de 12 do Congresso (com o Presidente Obama a deter o 13º voto em caso de empate) se entenda para fazer a população trabalhadora pagar a Wall Street pelos seus maus empréstimos.

O plano de austeridade grego serve assim de ensaio aos Estados Unidos – com o Partido Democrático a desempenhar o papel de duplo do Partido Socialista de Grécia que está a patrocinar a austeridade e a expulsar líderes sindicais das suas fileiras se eles objetarem à grande traição.



 


*Olafur Arnarson é um autor e colunista na Pressan.is. Michael Hudson é Prof. de Economia na UMKC. Gunnar Tomasson é um consultor aposentado do FMI.

Tradução de Paula Sequeiros. Versão original aqui.