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A intervenção político-cultural – um terreno em vias de extinção (II)

Publicamos a segunda de quatro partes de um texto lido por Eduarda Dionísio em Abrantes, durante o Festival do Imaginário, em novembro de 1999, publicado ainda nesse ano na publicação digital Non! Revista crítica de opinião, ideias e artes.
Eduarda Dionísio.
Eduarda Dionísio. Foto da Casa da Achada,

Parte II: De que se fala quando se fala de cultura

Deixemos o imaginário repousar e regressemos à realidade da cultura.

1.

Até há relativamente pouco tempo, no enorme saco da "intervenção político-cultural" que conhecíamos e que pressupunha, de um modo geral, que o saber era, em si e por si, emancipador (o que resta provar...), mesmo quando encarada como o substituto possível (e portanto menor) duma intervenção política impossível ou excessivamente arriscada, cabiam actividades muito diversas que tinham como espaços físicos privilegiados lugares tão diversos como as escolas e os jornais, as livrarias e os cineclubes, as associação recreativas e as sociedades de artistas, os teatros e os cinemas, e, a partir de certa altura, os centros paroquiais ou até as ruas.

A distância entre o simples e duro trabalho de "alfabetização" nas aldeias (pedra-base da luta contra a "ignorância" e o "obscurantismo") e o trabalho "elitista" de criação e imposição de rompimentos de linguagens no domínio das artes (provocando e inquietando) não era assim tão grande porque pelo meio se distribuíam muitas outras modalidades de "intervenção político-cultural" mais correntes: umas de (maiores ou menores) implicações "pedagógicas" (da simples "divulgação" aos programas estéticos que apontavam para a "formação do público", a "educação do gosto"); outras de (maiores ou menores) implicações ideológicas (das polémicas ou debates de ideias em suplementos literários de jornais e algumas revistas aos inúmeros colóquios); outras que procuravam a inserção da "cultura" nos quotidianos e nos tempos livres (da ambígua "animação cultural" às "jornadas", "festas populares" e incipientes festivais).

A "cultura" que resultava destas gama de múltiplas intervenções e de múltiplos autores e intenções - sem liberdade antes do 25 de Abril, com liberdade depois - por um lado, desconfiava da cultura académica e institucional, da cultura que fosse ou parecesse "do regime"; por outro lado, opunha-se à "cultura massificada" enquanto "pobre produto do mercado" (que era função da cultura rejeitar) e a todas as manifestações culturais fomentadas pelo poder com vista à sua autoconservação usando para tal o "empobrecedor divertimento do povo".

Esta cultura era "obra" de amadores - fossem "criadores", fossem "distribuidores", "divulgadores" ou "animadores". E era muitas vezes a costela "amadora" (a até militante) que funcionava nos "comerciantes das artes" - editores, livreiros, galeristas, empresários de espectáculos…

2.

As actividades destes "amadores" (e quase todos os "criadores" também o eram) permitiam, mesmo quando não praticada, a desobediência, a transgressão, a subversão. A cultura não amava nem venerava a "ordem estabelecida".

Se para uns se tratava simplesmente de "tentar fazer um mundo melhor", para outros a questão era de "mudar o mundo". Mesmo sem a ideia de "combate" ou de "revolução", o gosto da "transformação" ou pelo menos da "inovação" (por muito limitada que fosse) e a vontade de não coincidir com a maioria ganhava à lógica da "tradição" e da "integração", que não eram valores. A própria descoberta da "cultura tradicional popular", que não se confundia com qualquer adesão ao "folclore oficial" e ao nacional-cançonetismo, esse antepassado da música "pimba" que hoje pouco aflige, fazia-se em nome da "novidade" e da "mudança" - e não do gosto das "antiguidades".

Com mais ou menos restos de iluminismo (ensinar a razão aos que não sabem), com mais ou menos heranças dos romantismos (usar a marginalidade e a maldição do artista enquanto parente das revoluções), com mais e mais ou menos rastos de uma cultura operária de princípio de século (associar-se para aprender porque do saber depende a emancipação e o poder dos explorados), esta "cultura" não tinha como função contentar as gentes com o mundo adverso (eventualmente contentá-las-ia consigo próprias através do fazer) nem distraí-las dos problemas do mundo.

Este entendimento da cultura está obviamente extinto. E, naturalmente, a "intervenção político-cultural" correspondente. Hoje já não se trata de apetrechar "pessoas" através da "cultura" que deixou de ser uma "ferramenta de transformação social".

Fará então algum sentido pensar em "intervenção político-cultural"? Para responder é preciso perceber em que é que a "cultura" se transformou.

3.

«"Quando oiço falar de cultura, saco do revólver". Invertendo-lhe os termos, poder-se-ia parafrasear a célebre profissão de fé do doutor Goebbels para resumir a filosofia de uma estratégia que faz furor entre certos pacificadores das "periferias". "Quando oiço falar de violência, saco do meu projecto cultural de bairro" poderia ser, com efeito, a divisa de inúmeros "actores" da política dita "da cidade", que estão convencidos de que podem dar cabo dos tumultos que agitam as cidades graças às virtudes eminentemente calmantes da intervenção artística»[1].

Quem o afirma é Jean-Pierre Garnier, arquitecto de formação, sociólogo na prática, prática de investigador numa instituição de prestígio chamada CNRS. E é de uma parte importante da Europa, a França, que fala.

«Com a sub-proletarização, a pauperização e uma certa "etnicização" dos meios populares, a "acção cultural" mudou de sentido. Hoje, já não tem a função de acompanhar, para a facilitar ou completar, a promoção económica e social da população dos bairros sociais (…). A finalidade doravante atribuída aos "projectos" culturais é "restaurar a comunicação social" e, por esta via, contribuir para travar o desenvolvimento da violência num contexto em que as camadas populares já não tiram qualquer proveito do desenvolvimento capitalista»[2].

Se estas observações só em parte se aplicam à realidade portuguesa actual (até porque, para o mal e para o bem, as realidades dos HLM, casas de jovens, casas da cultura, centros socio-educativos, etc. nunca existiram com a mesma filosofia e importância em Portugal), elas apontam para a função "pacificadora" ou simplesmente geradora de consenso que a "cultura", pelo menos a cultura visível, tem hoje nas sociedades "em chamas" ou a "rebentarem pelas costuras".

O facto é que, se estávamos habituados a utilizar a "cultura" contra o poder, contra o "totalitarismo" ou a tendência totalitária do poder político qualquer que ele fosse (lembrem-se algumas lutas pós-25 Abril no campo da cultura), habituámo-nos depressa a que o poder político tenha passado ele a utilizar a cultura de forma mais ou menos "totalitária".

Que outra coisa é a imposição de uma cultura "do regime" (coincidente, aliás, com a cultura "do príncipe") como a "verdadeira" cultura? Que outra coisa é a proliferação dos grandes edifícios e empreendimentos do Estado que albergam a única cultura "digna" e de "qualidade"? Que outra coisa é a redução da vida cultural a um desfile de grandes festivais pelos anos fora, chamem-se "capitais da cultura", "expos" ou "campeonatos de futebol", onde os ex-animadores e os actuais artistas vão encontrando emprego como agentes de "desígnios nacionais"? Que outra coisa é a reprodução pelo país fora, em zonas urbanas, em zonas rurais, votem à esquerda, votem à direita, dos formatos (em miniatura) que saem da capital, e que por sua vez já saíram de outras capitais maiores? Que outra coisa é a multiplicação das seguras instituições culturais que absorvem os saberes "poéticos" dos que se tinham arriscado a inventar e a descobrir até há pouco tempo contra ventos e marés?

A "cultura" (mesmo quando se limita a ser um discurso sobre a cultura), se não passou ainda a ser uma "paixão" dos governos que temos tido, como a educação ou a saúde, passou pelo menos a ser um ponto programático importante de qualquer governo.

Ou seja, o poder político tomou consciência de que, para se manter como é, tem de trabalhar os "campos de marginalidade" que são "verdadeiras faixas de segurança", para retomar a terminologia de João Martins Pereira, num livro não tão antigo como isso, mas esgotado e bastante esquecido, No Reino dos Falsos Avestruzes:

«Nas sociedades em que se tende à produção de massa não só de mercadorias mas de comportamentos e atitudes, em que a ordem social tende a apoiar-se no cidadão-médio-"serializado", a própria sociedade (com mais rigor a ideologia dominante, normativa) define dois campos de marginalidade, um "superior" e outro "inferior", (…), "verdadeiras faixas de segurança", que é legítimo qualificar como áreas de marginalidade funcional, integrada. O campo superior é o que tem a ver com as artes»[3].

O que dá que pensar - e isso talvez seja novo – é o campo "superior" de marginalidade e o campo "inferior" poderem conviver nos mesmos "projectos culturais" do poder que visam naturalmente a manutenção da sociedade tal como ela existe.

4.

Este fenómeno só é possível pelo facto de os "intermediários" entre os "produtores" e os "consumidores" culturais já não serem os próprios produtores (amadores) nem as associações amadoras de "consumidores". A nova função política de uma "cultura", "pacificadora" e "integradora", gerou uma verdadeira cultura de "intermediários", norteados pelo princípio da "integração": instituições estatais (que podem recorrer a dinheiros privados) ou privadas (normalmente subsidiadas pelo Estado) e empresas comerciais (incluo aqui a Comunicação Social) cujo negócio é "produzir" ou "distribuir" cultura, ou que financiam, a troco de benefícios fiscais, de prestígio ou de tranquilidade, actividades culturais que, para serem "patrocinadas", adoptam os perfis mais favoráveis. Estas instituições e empresas, de dimensões muito variadas e com projectos que têm algumas variações, empregam hoje "profissionais" de muitas áreas, não necessariamente culturais ou artísticas. As populações, as pessoas são também aqui "clientes" (mesmo quando as actividades são gratuitas, o que cada vez menos acontece). A noção de "público-alvo" passou a ser operativa. E também a de rentabilidade, que pode não ser financeira, mas política. Esbatida também a equívoca noção de "serviço público" (de que a nossa experiência é pequena), mesmo quando o Estado é o grande empreendedor (e joga nalguns casos a fundo quase perdido), resta o império do mercado.

As regras do mercado passaram, de facto, a governar quase toda a produção cultural, o que em Portugal só recentemente passou a acontecer de forma tão evidente e tão violenta. E se há quem neste velho esquema de "livre concorrência" aplicado agora também à cultura e às artes veja uma saudável libertação do totalitarismo do Estado, há quem tenha fortes razões para se assustar ao ver nele novas formas de censura: riscar do mapa tudo o que não é produzido pelo mercado, que o mercado não acolhe e não promove.

Que outra coisa é a imposição da lógica das audiências, dos best-sellers e dos tops, que diz que o que é bom é o que se vende, e que só vale a pena comprar o que outros já compraram e falar do que muita gente comprou? Que outra coisa é a imposição da lógica da "encomenda" e dos "prémios" que diz que bom é o que o poder (ou um júri, o poder do momento) escolhe, gente imaculada e insuspeita, sem interesses próprios, precisamente porque tem poder? Que outra coisa é a imposição da lógica do espectáculo de grande aparato (ou da edição de luxo) que diz que bom é o que é grande e enche o olho e que as ideias que não recorrem à banca e a imaginação que não recorre às tecnologias de ponta são prazeres ultrapassados? Que outra coisa é a imposição da lógica dos congressos, seminários, colóquios, em hotéis e outros espaços similares, com pausa para café antes de terem programa, que diz que nada do que ali se diga serve para o que quer que seja, que tudo há-de ser decidido noutro lugar e que, com cultura ou sem ela, ninguém alguma vez poderá ter o mundo na mão se já não o tiver agora?

Ora, como lembra Pierre Bourdieu, que não é propriamente um "artista maldito", «historicamente, todas as produções culturais (…) que um certo número de pessoas considera como sendo as produções mais altas da humanidade, as matemáticas, a poesia, a literatura, a filosofia, todas essas coisas foram produzidas contra o equivalente dos níveis de audiência, contra a lógica do comércio»[4].

5.

E é essa lógica do comércio que acaba por ditar o "conteúdo" (e as linguagens) da cultura que nos mostram e a hierarquia das suas "componentes": com o "Património" à cabeça (e a valorização das "raízes" que vão desde os heróis dos descobrimentos e consequentes nacionalismos até aos vinhos e à culinárias), a cultura far-se-á mais das artes "sem palavras" (ou em que as palavras não contam) como certa Música, como a Dança (para não falar da moda) do que das disciplinas ou expressões em que as palavras podem eventualmente perturbar ou incomodar. Com o seu ar de "festa" (seus efeitos especiais e seus recursos tecnológicos "som et lumière") e dizendo querer entrar pelo nosso dia-a-dia adentro, a cultura que nos oferecem não altera o nossos mais que cinzento quotidiano nem nos leva a querer utilizar a curiosidade nem a crítica, nem a imaginação nem os desejos, a capacidade de criação que há em todos as pessoas. Isto porque esta "lógica do comércio" torna invisíveis os objectos e os discursos que querem defender-se dela precisamente por verem nessa lógica uma nova forma de totalitarismo. E é assim que a indústria cultural em florescimento domina um "artesanato" cultural cada vez mais decrépito.

«Provavelmente, dizia o texto fundador da Associação Cultural Abril em Maio, em 1994, ano de Lisboa Capital da Cultura, os filmes que vemos, os legumes que cozinhamos, as peças de teatro que nos são aconselhadas, a roupa que compramos, os livros que encontramos nas lojas, as aulas que temos, as conferências a que vamos, os jornais a que nos vamos habituando, não são aqueles que nos dão respostas mais nítidas às inquietações que temos, ou que põem as perguntas mais intrigantes às certezas com que vamos vivendo».

Porque, explicita ou implicitamente, aceitamos a "cadeia" (no duplo sentido da palavra) que Bourdieu tão bem descreve:

«Através da pressão dos níveis de audiência, o peso da economia exerce-se sobre a televisão e, através do peso da televisão, sobre o jornalismo, exerce-se sobre os outros jornais, até mesmo sobre os mais "puros", e sobre os jornalistas, que pouco a pouco se deixam impor problemas de televisão. E, da mesma maneira, através do peso do conjunto do campo jornalístico, pesa sobre todos os campos de produção cultural.»[5]

Em Portugal, não foi o aparente florescimento da "cultura" e das suas indústrias, de uma cultura que, neste caso, vai vivendo de sucessivos balões de oxigénio europeus, subsídios necessários à conveniente "construção" da Europa (e que de tão contínuos se tornaram normalidade e rotina) nem a multiplicação dos "acontecimentos" culturais daí decorrentes, nem a "liberdade de expressão" que alterou esta situação em que mais ou menos imperceptivelmente se vão fixando modelos, formatos e limites (quanto mais não seja) necessariamente empobrecedores.

«"Espaços" novos ou renovados foram de facto arranjados para estender e embelezar o espaço público urbano. Instituíram-se igualmente rituais: celebrações e comemorações, desfiles, feiras e carnavais, exposições e espectáculos ao ar livre, etc. Muita gente para encenar este convívio citadino reencontrado e mais gente ainda para "participar" nele. Mas o "elo social" sai reforçado? A "cidadania" faz parte do encontro?»[6] - pergunta Jean-Pierre Garnier.

E não será isto mesmo que Jorge Silva Melo, de outra perspectiva e com outra linguagem, diz do teatro?:

«Ao deixarmos fugir a palavra e a literatura do coração do teatro, prescindimos da sua necessidade política. Entregámos o palco às artes decorativas, as quais se apoderaram da função do encenador. Fugimos da escrita contemporânea. Esvaziámos a "comunidade dos espectadores" do seu sentido cívico e apelamos agora àquilo a que chamam o seu sentido lúdico. Ou noutros tempos, nem por isso mais puritanos, chamaríamos frívolo. Ou até "piroso".»[7]

Por isso nascem da "cultura", como ramo do mercado, as profundas alterações naquilo a que Jean-Pierre Garnier chama os "actores do teatro do mundo":

«À internacionalização da finança, da indústria e do comércio, acrescenta-se misturando-se com ela muitas vezes a da ciência, da arte, da informação, da moda e das variedades. Daí a "presença cada vez mais massiva", no teatro do mundo, de actores "nem todo-poderosos nem impotentes": artistas, investigadores, universitários, jornalistas e ‘estilistas’ de todos os géneros"[8].

Se, neste quadro, ainda continuar a haver espaço e oportunidade para uma "intervenção político-cultural", não se tratará já muito provavelmente de intervir politicamente na sociedade "com" cultura (esta cultura), "através" da cultura (esta cultura), mas de, se ainda se for a tempo de suster a "extinção" deste campo, de intervir politicamente na cultura.

Mas será que para isso se poderá contar nalguma medida com os "intelectuais e artistas" como até há pouco aconteceu? E que papel lhes estará reservado agora?

Leia aqui a terceira parte deste artigo.


Notas:

  1. ^ Jean-Pierre Garnier, La Bourse ou la Ville, Paris Méditerranée, 1997.
  2. ^ Idem.
  3. ^ João Martins Pereira, No Reino dos Falsos Avestruzes - um olhar sobre a política, A Regra do Jogo, 1983.
  4. ^ Pierre Bourdieu, Sobre a Televisão, trad. Miguel Serras Pereira, Celta, 1997.
  5. ^ Idem.
  6. ^ Jean-Pierre Garnier, La Bourse ou la ville, Paris-Méditerranée, 1997.
  7. ^ Jorge Silva Melo, “Teatro para os novos reis, religião dos novos papas” in Essas outras Histórias que há para contar, edição Abril em Maio/SOS Racismo/Salamandra, Lisboa, 1998.
  8. ^ Jean-Pierre Garnier, La Bourse ou la ville, Paris-Méditerranée, 1997.  

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