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A humanidade não pode esquecer a barbárie de um tal pesadelo

São exíguas as notícias sobre a anunciada derrota do Estado Islâmico, depois de uma feroz batalha na cidade de Al Baguz. Estas notícias parecem fazer-nos esquecer um longo pesadelo da barbárie imposta pelo Daesh. Por José Carlos Lopes.
Comemoração da vitória das  Forças Democráticas da Síria em Kobane – Foto de ANF News
Comemoração da vitória das Forças Democráticas da Síria em Kobane – Foto de ANF News

São exíguas as notícias sobre a anunciada derrota do Estado Islâmico, depois de uma feroz batalha na cidade de Al Baguz, localizada na margem oriental do rio Eufrates, o seu último reduto na Síria perto da fronteira com o Iraque. As Forças Democráticas da Síria (FDS), aliança liderada por milícias curdas apoiadas pela coligação internacional que integra as Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG), assumiram esta derradeira operação de limpeza contra o movimento jihadista iniciada no dia 1 de março. Estas notícias parecem fazer-nos esquecer um longo pesadelo da barbárie imposta pelo Daesh depois de, em 2014, ter autoproclamado o seu “califado” com a conquista de um significativo território entre a Síria e o Iraque, quando ainda se faziam sentir os efeitos da Primavera Árabe e das ondas de protesto e derrubes de ditaduras árabes tradicionalmente aliadas dos EUA, que em alguns casos, abriam portas a partidos islâmicos moderados e noutros casos criaram vazios de poder, que o Estado Islâmico aproveitou para se instalar a ferro e fogo, na região do Médio Oriente.

Este pesadelo medieval deixou um rasto apocalítico na região, de milhares de mortos, de decapitações públicas, de ódio fundamentalista, de impiedosa violação de direitos humanos, de milhares de mulheres e raparigas transformadas em escravas sexuais, violadas e comercializadas como gado. Terror sádico exercido pelo Estado Islâmico de inspiração sunita, que exportou o terrorismo, o medo e a morte para países como a França, Espanha ou Alemanha, entre outros.

A influência do Estado Islâmico, que começou por conquistar Fallujah, no Iraque, depois Raqqa, na Síria, consolidou-se tempo suficiente para humilhar a humanidade com a conquista de Palmira, na Síria ou de Mossul, no norte do Iraque e depois Tikrit. Foi um repugnante reinado do terror que não pode ser, nem relativizado tal período de retrocesso medieval, nem simplesmente apagado na história deste início do século XXI, por mais que se queira deixar tão horrendo pesadelo no silêncio das memórias. A História da Humanidade não pode ficar com páginas em branco. Mesmo, como acontece por cá, se se desvaloriza a disciplina de História e Geografia de Portugal, reduzindo o tempo letivo.

O terror bárbaro que dominou no “califado”, ainda que com métodos pouco diferentes de regimes como o saudita aliado do ocidente, intimidou o mundo ao assistir à decapitação de prisioneiros estrangeiros ao vivo, perante critérios repugnantes, mas sempre influenciados pelas audiências das televisões, que acabavam por contribuir para promover tais atos de chantagem, através da divulgação da propaganda do próprio Estado Islâmico, ao mesmo tempo que na Síria eram massacrados centenas de membros da tribo Al-sheitaat, enquanto no Iraque o massacre recaía sobre milhares de yazidi. Um desastre irrecuperável para a humanidade e para a civilização, como os danos causados às ruínas de Palmira, classificadas pela UNESCO como Património da Humanidade.

Foi ainda um tempo de terror marcado cinicamente por continuadas disputas geoestratégicas, em que foram denunciados e acusados países por financiamentos ao grupo EI, como a Arábia Saudita e outros países do Golfo ou mesmo no ocidente em que os próprios EUA não se livram de acusações de colaboração. Assim como a compra de petróleo ao “califado”, como foi acusada a Turquia que simultaneamente persegue os combatentes curdos que deram lições ao mundo de resistência ao avanço do terror na região. Petróleo que não deixa de estar na base das disputas e intervenções geoestratégicas de russos e americanos. Um pesadelo que os exércitos imperiais pareciam impotentes para travar, tais eram e são os interesses na região e a aparente necessidade de uma gestão “adequada” deste terror, que deixou os povos atónicos, mesmo vivendo em liberdade e democracia.

Ainda que, entretanto, o Estado Islâmico viesse sofrendo derrotas desmoralizadoras para a sua causa jihadista, como Mossul, no Iraque, num complexo xadrez politico e étnico de relação de forças na região, cujo cenário mais dantesco está bem evidente na destruição de várias cidades da vizinha Síria, palco de guerra que mais contribuiu para a igualmente trágica rota dos refugiados que procuram sobreviver na Europa. E continua a haver “soldados do califado” e as chamadas “células adormecidas” disponíveis para sacrificar a humanidade com a barbárie em qualquer lugar, através do terror e do medo como meio de propaganda. As notícias de que os últimos combatentes do Estado Islâmico que faziam das populações locais, escudos humanos, acabaram cercados e derrotados no enclave do Eufrates em Baghouz, depois de terem controlado mais de 200 mil quilómetros quadrados no Iraque e na Síria, abrangendo cerca de dez milhões de pessoas. Por mais interrogações que fiquem por esclarecer para uma efetiva declaração da derrota do estado Islâmico que chegou a contar com 40 mil combatentes oriundos de países estrangeiros, o pesadelo, para já, foi atenuado particularmente para os povos que o califado transformou desumanamente em escravos de uma cruzada bárbara bem perto da Europa.

As causas e os riscos de vazio político, que escancararam portas ao Estado Islâmico, continuam a ser inquietantes na atual realidade geoestratégica, num planeta cada vez mais frágil e instável, em que se tenta moldar as pessoas a tornarem-se inertes e sobretudo indiferentes à violência e ao sacrifício humano. A este caminho de desumanização podem opor-se movimentos sociais, como a recente ação global juvenil que assumem exemplar consciência ambiental na defesa do Planeta, contra a inércia dos adultos e dos governantes, fazendo renascer a esperança de que a humanidade será dignificada por gerações futuras. Assim não vençam os diferentes fundamentalismos, e a humanidade não esqueça os pesadelos e as memórias de limiares tão ultrajantes, ainda bem recentes neste século XXI.

Contributo de José Carlos Lopes de Ovar

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