1. No meu livro intitulado VASCO LOURENÇO-DO INTERIOR DA REVOLUÇÃO (Âncora/CD25A,2009) VL descreve, com exuberância de pormenores e impressivas marcas de oralidade, aquilo que considera uma das suas grandes façanhas: O confronto com Spínola num daqueles frequentes briefings que eram o cenário ideal para a exibição do consagrado talento do general/actor. Daí que, neste livro, VL seja uma das poucas vozes dissonantes nessa espécie de polifonia quase sempre afinada pelo elogio e pela admiração pelo general do (falso) monóculo, e cujo tom o eleva em tantos casos à dimensão de herói, se não mesmo de lenda!
De que trata então esta obra? De um personagem ou de um livro? Anunciada, e bem publicitada, como a história de um livro que, como nenhum outro, revolucionou este país, o autor vai muito para além desse objectivo, instalando desde o primeiro momento o leitor numa cadeia de equívocos nunca desfeitos. A começar logo no próprio titulo, o qual, estranhamente, nem sequer refere o tal famoso escrito Portugal e o Futuro de António de Spínola. Título enganador portanto, pois desloca o foco desse tal livro/bomba, concentrando-se de facto na figura do seu autor. Título mistificador, também, dado que coloca no peito já tão medalhado do ilustre cabo de guerra mais uma medalha, ofuscante sem dúvida, mas totalmente imerecida: a de ter começado o 25 de Abril dois meses antes dos capitães.
É este duplo equívoco que percorre desde a primeira à última página toda a obra, deixando nos leitores a pior das sensações: a de terem comprado o livro errado.
Explico-me: Um livro sobre um outro livro, quando este é Portugal e o Futuro, na data redonda dos 50 anos de Abril, só pode ter êxito garantido. É verdade que, passados todos estes anos, o estudo essencial sobre o 25 de Abril está feito, constituindo-se numa vastíssima e rica bibliografia proveniente de áreas tão diferentes como a história, a sociologia, a ciência política, os estudos culturais ou a economia, não esquecendo os valiosos contributos dos trabalhos jornalísticos e memorialistas. Contudo, permanecem desconhecidos muitos aspectos da "petite histoire" não negligenciáveis, e cujo contributo se revela precioso para o aprofundar do conhecimento sobre um fenómeno tão complexo como é a revolução. Além de que esse é um filão que apaixona os leitores em geral, sejam os estudiosos seja o grande público.
João Céu e Silva sabe disso e, por entre memórias, opiniões, recortes de imprensa, pequenas histórias e anedotas, traça um retrato vivo não só dos bastidores mas também das circunstâncias públicas e privadas da feitura deste livro. Convoca para tal um generoso painel de individualidades, quase todas da entourage política e militar do general, e que, compreensivelmente, são as que poderão ter acompanhado, e até participado de perto, na empreitada daquele que genericamente brindam com epítetos como "o derradeiro e poderoso cabo de guerra europeu".
2. Se o livro fosse isso, nada contra. Encontraríamos nele, se não grandes novidades, uma compilação útil do tanto que se tem dito e escrito em torno de Portugal e o Futuro, muito especialmente no que se refere à questão essencial da sua autoria. Com o tempo se foi desvendando o segredo de Polichinelo: que o livro
resulta de uma alargada colaboração, dando corpo afinal a uma prática à época muito corrente entre militares de topo (e não só!) de aporem a sua assinatura num conjunto de textos “encomendados” a subalternos escolhidos de acordo com as suas habilitações e competências específicas. “Escrevam, escrevam, que eu depois adelgaço!” A ordem em forma de conselho, atribuída a essa desconcertante figura que foi Humberto Delgado, era afinal o método comum entre gente que estava tão longe de ver a escrita como acto eminentemente pessoal e intransmissível, como de tirar daí a consequência lógica: a de reconhecer o carácter colectivo da obra. Se outros o não faziam, muito menos Spínola, reconhecido por amigos e inimigos como extremamente vaidoso, egocêntrico e autoritário, incapaz de qualquer hesitação ou desvio na prossecução do projecto de poder pessoal desenhado desde a juventude. “Ele volta e meio escrevia umas coisas, mas no fundo era um organizador”(p.60) afirma José Blanco, seu secretário, peça essencial na elaboração do livro, e insuspeito de qualquer sentimento de animosidade para com o comandante chefe e governador da Guiné, a quem serviu durante a sua comissão entre 1972 e 74, e de quem ficou amigo e admirador para a vida.
E, na verdade, como aqui se afirma também, é difícil imaginar Spínola sentado horas seguidas a uma secretária a escrever...
Acontece, porém, que JCS vai muito para lá da história de Portugal e o Futuro e alonga-se na biografia de cada uma das personalidades escolhidas, a qual por sua vez se cruza a par e passo com a própria biografia de A. Spínola. Um longo, acidentado e muito polémico percurso, onde a publicação deste livro não passa obviamente de um episódio. Estamos já num outro registo. De forma quase labiríntica e não poucas vezes repetitiva, o que dificulta bastante a leitura, somam-se testemunhos pessoais (antigos ou recolhidos para esta obra), os quais, a partir da pergunta inicial “quem é o autor do livro?” se alargam em considerações e análises sobre aquele complexo período da nossa história, os quais, directa ou indirectamente, pretendem ilustrar e legitimar o improvável e mistificador título: O General que começou o 25 de Abril dois meses antes dos Capitães.
3. A pergunta torna-se, pois, inevitável: Como fazer de Spínola o inspirador do MFA, ignorando toda a fase clandestina do movimento, como se este começasse no próprio dia do golpe, ou seja, dois meses depois da publicação do livro? Bem sei que esta não é uma opinião consensual entre os muitos depoimentos coligidos pelo autor, mas só o facto de existir e ser maioritária é já por si extraordinário.
Ouçamos um dos mais ilustres “minoritários”: “O golpe do 25 de Abril não necessita da legitimação do Spínola ou do seu programa. O grupo que faz o 25 de Abril não é spinolista e a nossa legitimação não deriva de estarmos a legitimar o Spínola. Ele é chamado porque a sua presença é conveniente para os militares por ser um suporte nacional e internacional. Contudo, sem os capitães, Spínola também nada seria. Ou seja, o 25 de Abril far-se-ia sem o livro, e este não determina o golpe” (p. 101). Bem pode Carlos Matos Gomes contrariar a narrativa induzida por um título de pura ficção. O seu testemunho, a par de alguns outros, apenas dão a falsa ilusão de pluralismo numa obra cuja marca de água será sempre a da recuperação, se não mesmo da reescrita do papel histórico de António de Spínola.
Não há, quanto a mim, outra forma de entender o claro enviesamento no tratamento do seu percurso, com os seus lances mais negros, se não esquecidos, muito cirurgicamente atenuados.
Basta determo-nos um pouco naquela que é a causa maior de toda a sua sinuosa caminhada: a questão africana. Foi ela que lhe ditou o livro Portugal e o Futuro, plataforma de entendimento estratégico com os verdadeiros autores do golpe.
Mas foi também ela o principal pomo de discórdia (não o único) da guerra aberta e sem tréguas que Spínola, apenas Presidente da República, desencadeou contra todas as estruturas do poder político/militar saídas da revolução. Uma guerra que iniciada logo no próprio dia 25 de Abril só terminou no fiasco de uma das sua mais arriscadas encenações: o golpe de 28 de setembro.
Alguns exemplos: O modo como surge como Presidente da Junta de Salvação Nacional e consequentemente como PR, “empalmando”, para usar a exacta expressão de Otelo, os próprios capitães que o não tinham escolhido mas sim Costa Gomes, atingiu o Movimento num dos seus princípios estruturais: a democraticidade das suas escolhas. Na verdade, e esse é o pecado original de Spínola, ele não foi investido pelos vencedores, mas sim pelos vencidos. Foi o próprio Marcelo Caetano que o mandou chamar “para que o poder não caísse na rua”! Mais próximo afinal desse seu émulo do que dos capitães revolucionários, Spínola nunca abandonou as teses federalistas. Feitor Pinto di-lo de forma algo bizarra e muito pouco lisonjeira para o próprio Marcelo: “o livro foi escrito para pôr o poder nas mãos de Marcelo Caetano, só que ele pensou que tinha sido um golpe de estado. (...)Trazem-lhe numa bandeja de prata o que o senhor Presidente não pôde ou não quiz fazer” (p. 198)
Por essas teses lutou totalmente à revelia da orientação do MFA. Fê-lo logo no dia 26 de Abril, ao declarar-se adepto da “sobrevivência da nação no seu todo pluricontinental”. Fê-lo a 11 de junho, na tomada de posse dos governadores de Angola e Moçambique ao defender uma consulta popular nas colónias. Fê-lo nos famosos encontros com Nixon nos Açores, e com Mobutu na ilha do Sal, respectivamente a 19 de junho e 15 de setembro, e sobre os quais se recusou sempre a fornecer informações precisas. Fê-lo no ambiente favorável dos quartéis, onde lançava mensagens incendiárias, num crescente de dramatismo muito próximo do desespero. Essa perigosa escalada culmina num pouco conhecido episódio descrito pelo historiador Sanchez Cervelló: “Chega a congeminar um plano para decapitar a direcção do MFA por meio de acções terroristas, tendo para o efeito contactado Alpoim Galvão. Após num primeiro momento ter, alegadamente, pedido ao operacional da Operação Mar Verde que eliminasse Vasco Gonçalves e Melo Antunes, manda suspender a operação e mudar de alvo: a neutralização de Costa Gomes”. (1)
Este conturbado período de Abril a Setembro de 1974 encerra-se com a saída de cena de Spínola, a qual, apesar de violenta, traz consigo um regresso quase anunciado. O 11 de Março de 1975 é esse regresso. E desta vez desferindo o golpe fatal no colectivo do MFA, na sequência do qual, acusado de traição, sofre a penalização máxima entre militares, a expulsão das FAs. Depois foi a fuga rocambolesca e humilhante e o mergulho no submundo da contra-revolução, sobre a qual possuímos hoje contributos historiográficos impossíveis de ignorar. Que o diga por ex Eduardo Dâmaso(2), Gunter Walraff(3), ou mais recentemente Miguel Carvalho (4), entre tantos outros. Daí que me pareçam incompreensíveis, num livro basicamente centrado em A. de Spínola, as gritantes omissões e imprecisões que reduzem o MDLP a"um movimento considerado terrorista"(p.173), ou a"uma força clandestina anti-comunista" (p.253), ou o Maria da Fonte a"um movimento de extrema direita" (p.16)
4. Finalmente: Com tanta informação carreada sobre Spínola, seus projectos de poder, seus encontros e desencontros, aliados e adversários, cúmplices e traidores que foi coleccionando no quase psico/drama em que a sua acção se transformou após o 25 de Abril, como entender por exemplo o tratamento que nesta obra merecem duas das mais notáveis figuras com quem teve de partilhar o palco: Costa Gomes e Vasco Gonçalves. O primeiro reduzido a um papel subalterno de Spínola, quando era seu chefe hierárquico, como que ofuscado pelo brilho da estrela maior. Como afirma Seixas da Costa, “sentia-se diminuído perante ele” (p. 83). E lá desfila a propósito um conjunto de clichés com muito discutível adesão à realidade - personalidade indecisa, hesitante, obscura, pouco carismática - sem qualquer preocupação de confronto com as opiniões de tantos que consideram Costa Gomes o mais notável militar das FAs, possuidor de um currículo invejável e de uma rara intuição política. E sobretudo sem considerar a prova inequívoca dos factos: a forma como desempenhou o papel arbitral que a história lhe destinou, e que o consagrou como o marechal que evitou a guerra civil, um caminho percorrido no sentido rigorosamente inverso ao de Spínola, cuja actuação pisou todas as linhas vermelhas do compromisso sagrado entre os militares de Abril de não colocarem nunca portugueses contra portugueses.
Quanto a Vasco Gonçalves, as raras e breves referências oscilam entre a caricatura e a anedota, culminando com esta “pérola”: “Vasco Gonçalves, o protagonista polémico que muitos recordam desgrenhado a distribuir molhos de cravos ao povo que o aplaudia no comício de Almada. "(p. 232).
J. Céu e Silva é jornalista e escritor. Sabe o poder das palavras e quanto elas remetem para imagens que, longe de um reflexo, são antes reveladoras de sentidos, em certos aspectos até mais fecundos do que os próprios conceitos. Este simples mas elucidativo parágrafo reforça a imagem que a direita anda há cinquenta anos a fazer passar. Cabe também ao autor não vogar nas alterosas ondas do populismo emergente e apontar o azimute do rigor historiográfico. Para mais, quando se respalda em tantos historiadores, num alargado leque que vai de Jaime Nogueira Pinto e Rui Ramos, a Fernando Rosas e Manuel Loff. É certo que chamar para aqui a história, numa obra quase exclusivamente baseada em memórias e opiniões pessoais, tão claramente parcelares e até facciosas, só complica. Além de que o olhar de autor que qualquer livro tem de expressar, resulta neste caso irremediavelmente obnubilado pelos olhares sobrepostos dos seus numerosos convidados. E não basta a curta e pouco explícita nota final : “Os depoimentos que se reproduzem neste livro não veiculam (sic) quem os deu com a narrativa do autor”. É que, como afirma o grande historiador Tony Judt, “um historiador, como qualquer outra pessoa, sem opinião não é muito interessante”. (5)
Notas:
1. Cervelló, Josep Sanchez, A Revolução Portuguesa e a sua influência na Transição Espanhola, Lisboa, Assírio e Alvim, 1993, p. 2008.
2. A Invasão Spinolista, 1997
3. Descoberta de Uma Conspiração, 1976
4. Quando Portugal Ardeu, 2017
5. No momento em que terminava esta recensão, veio a público a notícia da condecoração de António de Spínola com a Cruz da Ordem da Liberdade. Esta iniciativa, deliberadamente ocultada pelo PR, procurou contornar uma anterior tentativa de 2022 que ao tempo levantou uma onda de protestos. Resolve-se na secretaria o que a sociedade condena. E “inocenta-se” Pacheco de Amorim que, em resposta às acusações de actividades terroristas contra o 25 de Abril, se escuda na legitimidade do gesto presidencial, declarando-se um simples colaborador às ordens do general condecorado! Entretanto, na sua morte, com este mesmo PR, Otelo não teve direito a cerimónias oficiais nem luto nacional!