Hegemonia em risco: a China no relatório secreto do governo Trump

14 de fevereiro 2021 - 14:39

Este documento desclassificado em janeiro revela que a agenda estratégica de enfrentamento com a China não terminou com a saída de Trump. As propostas de Biden para a China são muito similares. Por Mateus de Paula Narciso Rocha.

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EUA versus China. Foto de CTB.
EUA versus China. Foto de CTB.

No último dia 12 de janeiro, o governo Trump desclassificou um relatório secreto sobre a sua política para a Ásia de fundamental importância para se compreender a política da Casa Branca para a China. Esse documento, o U.S. Strategic Framework for the Indo-Pacific (Enquadramento Estratégico dos EUA para o Indo-Pacífico), foi finalizado em fevereiro de 2018 e, em curso normal, seria tornado público somente em 2043. O relatório, de dez páginas, foi divulgado quase por inteiro, tendo poucos trechos suprimidos. Foi elaborado por H.R. McMaster, então conselheiro de Segurança Nacional, e Matthew Pottinger, então diretor para a Ásia do Conselho de Segurança Nacional.

Segundo Robert O’Brien – atual responsável por este órgão –, essa divulgação seria “um sinal da transparência e do compromisso” dos Estados Unidos com a liberdade e com a abertura na região Indo-Pacífico. Tendo em vista os debates historiográficos, as razões oficiais para a desclassificação devem ser vistas com ceticismo; e, pelos assuntos sensíveis, trata-se de decisão que somente um governo “pato manco” (lame-duck) poderia tomar. De qualquer modo, o documento merece ser avaliado.

China como desafio à primazia dos EUA

Ainda que o título do relatório faça referência a uma região, o documento propugna, sobretudo, uma estratégia para combater o fortalecimento da China. A estratégia é, portanto, direcionada contra a China, e a região é o palco onde as principais ações acontecem. Nesse sentido, diversos países têm relevância apenas indireta; não são citados como importantes em si mesmos, mas como contrapesos à China – sinal de que, na ausência da ascensão chinesa, o interesse dos EUA neles seria diminuto.

Na secção inicial, intitulada Desafios à Segurança Nacional, três desafios são mencionados. A China é discutida logo no primeiro, o qual é iniciado com a questão sobre “Como manter a primazia estratégica dos Estados Unidos na região Indo-Pacífico […]”. Questão respondida, no mesmo trecho, com a prescrição: os EUA devem atuar para “impedir” a expansão da influência antiliberal da China.

O diagnóstico tácito da “hegemonia ameaçada” – a ideia de que hegemonia dos Estados Unidos na Ásia estaria ameaçada pela China – perpassa todo o relatório, sendo afirmado que um futuro ideal é aquele no qual “os Estados Unidos mantêm sua proeminência militar, económica e diplomática na região que mais cresce no planeta”. A discussão das Premissas sobre o Futuro segue no mesmo sentido e é particularmente interessante. Entre outros pontos, é afirmado que os EUA trabalham com a ideia de que:

- A competição estratégica entre China e Estados Unidos irá permanecer;
- No curto prazo, a China continuará a expandir sua influência económica, militar e diplomática;
- A eventual perda da proeminência dos Estados Unidos na região asiática enfraqueceria a capacidade americana de defender seus interesses globais;
- A balança asiática de poder está a mudar e a gerar mais competição de segurança e investimentos de defesa;
- O domínio chinês de tecnologias avançadas geraria profundos desafios às sociedades livres.

China como ameaça multidimensional

O relatório também discute, em secções separadas, os objetivos e as linhas de ação para cada região, sendo a China o único país abordado numa secção individual. Os objetivos dos EUA relativamente à China são, por ordem de apresentação, os seguintes:

  1. 1. Prevenir as políticas industriais e as práticas comerciais injustas da China de distorcerem os mercados globais e prejudicarem a competitividade dos EUA;
  2. 2. Construir um consenso internacional de que essas práticas prejudicam o sistema de comércio global;
  3. 3. Manter a vantagem inovadora industrial americana perante a China;
  4. 4. Promover os valores americanos na região para manter a influência e contrabalançar os modelos chineses de governo;
  5. 5. Impedir a China de usar a força militar contra os Estados Unidos, seus aliados e parceiros, assim como desenvolver capacidades e conceitos para derrotar as ações chinesas pelo espectro do conflito;
  6. 6. Aumentar a participação dos EUA na região Indo-Pacífico e educar governos, empresas, universidades, imigrantes chineses, canais de notícias e cidadãos em geral sobre o comportamento coercivo da China e as suas operações de influência;
  7. 7. Cooperar com a China quando isso for benéfico para os Estados Unidos;
  8. 8. Manter a vantagem de Inteligência dos EUA perante a China.

Nessa secção, observa-se a grande preocupação com a dimensão económica e tecnológica da ascensão chinesa, em particular com as políticas industriais e comerciais da China; dimensão que é a primeira a ser discutida na “secção China” do documento e que compreende três dos oito objetivos. Além disso, essa é a única dimensão, conforme os trechos públicos, que faz referência a outro documento: o relatório secreto U.S. Strategic Framework for Countering China’s Economic Aggression, o qual não foi desclassificado.

Isso indica que o fortalecimento económico/tecnológico da China é percebido como o processo mais ameaçador à primazia dos Estados Unidos – diagnóstico que está em conformidade com as principais ações do governo Trump na política para a China e com as mudanças na dinâmica de poder estrutural observadas na nossa investigação anterior. Nesse sentido, o documento propugna o endurecimento da regulação sobre o investimento chinês nos Estados Unidos – responsabilidade do CFIUS –, medida que, de facto, foi implementada e gerou uma redução assimétrica nos fluxos de investimento entre os dois países. Ainda na “secção China” do documento, é destacada a “disputa ideacional”, ou a guerra de narrativas. Num dos objetivos (“iv”), afirma-se que os Estados Unidos devem promover ativamente os seus valores na região para manter a sua influência, enquanto noutro (“vi”) a Casa Branca deveria atuar para “educar” governos e sociedade civil sobre a coerção da China. Também é reafirmado que os Estados Unidos devem combater a narrativa de que a China irá dominar a região asiática de modo inevitável – narrativa que provavelmente favorece o indesejável bandwagoning dos países da região. E, como sugerem sondagens recentes, o enfrentamento ideológico parece ter sido eficaz e deve-se tornar uma das marcas indeléveis do governo Trump na política para a China.

Quatro contrapesos à China e a defesa de Taiwan

A China surge, portanto, como uma ameaça grave e multidimensional que precisa ser combatida em diversas arenas, do comércio à cultura. A forma de responder a essa ameaça, não se afasta, porém, de ideias lançadas por outros governos, tendo muita similaridade com conceitos e ideias lançados no governo de George W. Bush. O próprio conceito de “Indo-Pacífico” da administração Trump é uma materialização tardia de ideias lançadas pelos “assessores vulcões” de W. Bush que outrora defendiam superar o conceito de “Leste da Ásia” e inserir a Índia no processo de balanço da China.
No mesmo sentido, a ideia de que Índia, Austrália e Japão são um contrapeso fundamental à China remonta à agenda Andrew Marshall elaborada no final dos anos 1990. Esses países – que associados aos Estados Unidos formariam os Quatro, ou “Quad” – são apresentados no relatório como cruciais na defesa da ordem americana e, assim, a Casa Branca deveria construir uma “estrutura quadrilateral de segurança” com eles. A coordenação de segurança entre esses países foi uma iniciativa lançada no governo de George W. Bush, a qual, reavivada recentemente, a China denuncia como uma tentativa de criar uma mini-NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) para contê-la.

De facto, do ponto de vista geopolítico, esses países compõem um cerco “oeste, sul, leste”, o qual propicia projetar poder nas rotas marítimas cruciais para a economia chinesa e para a capacidade estratégica do país – tendo em conta as grandes quantidades de petróleo que a China importa pelo mar. Além disso, esse cerco distrai a atenção e os escassos recursos chineses para múltiplas frentes de preocupação, extenuando e dissuadindo Pequim. Outrora, um processo de cerco foi implementado pelos Estados Unidos contra a União Soviética na Guerra Fria com a busca de alianças no Oeste (Europa Ocidental), Sul, (Irão/Afeganistão) e Leste (China), de modo a pressionar o Estado-alvo (União Soviética).

Do ponto de vista económico, porém, o entendimento dos Estados Unidos é “trabalhar com o Japão e a Índia para financiar projetos de conectividade regional” – trecho que pode ser interpretado como o interesse em criar alternativas ao projeto chinês da “Nova Rota da Seda” (Belt and Road Initiative). A Austrália, portanto, parece ser um parceiro importante para o enfrentamento geopolítico à China, mas não necessariamente na contraposição económica às iniciativas chinesas.

Outra ideia aventada pelo governo Bush – em particular na Revisão Quadrianual de Defesa de 2001 –, e não discutida explicitamente em documentos estratégicos desde então, é o tema sensível da “defesa de Taiwan” num eventual ataque da China. No documento desclassificado, é afirmado que os EUA devem criar uma estratégia de defesa para dissuadir, ou derrotar, a China e que essa estratégia deve buscar: “negar o domínio aéreo e naval da China na primeira cadeia de ilhas num conflito; defender as nações da primeira cadeia de ilhas, incluindo Taiwan; e dominar todos os domínios fora da primeira cadeia de ilhas”.

Ofensiva crónica

Os elementos mencionados não esgotam a importância do relatório, o qual será dissecado pelos analistas da política externa dos Estados Unidos. Nesse sentido, outro ponto digno de nota é que, após reafirmar o interesse dos Estados Unidos em acelerar a ascensão de Nova Deli, esse é o primeiro documento público desde o acordo civil nuclear americano-indiano de 2006 que coloca a Índia explicitamente como um contrapeso à ascensão da China – uma ideia geralmente descartada dos pronunciamentos diplomáticos.
Trata-se de um documento muito significativo, porquanto, entre outros pontos, é recente; apresenta um nível de detalhe estratégico raro vis-à-vis documentos como a Estratégia de Segurança Nacional (NSS); está em consonância com a NSS 2017; e, ademais, antecipou diversas ações do governo Trump. Nesse sentido, observa-se que a Guerra Comercial contra a China foi lançada no mês seguinte ao término do relatório e que começaram, no mesmo ano, a campanha diplomática contra a Huawei no 5G e o endurecimento do CFIUS contra o investimento chinês. Destarte, o documento ajuda a evidenciar que a Guerra Comercial contra a China deve ser avaliada mais em termos político-estratégicos do que de um debate essencialmente económico. Ela é menos uma política irracional de Trump do que um elemento na agenda estratégica de enfrentamento com a China, a qual, com forte enraizamento burocrático no Pentágono e no Representante Comercial (USTR), busca impor custos e desacelerar o fortalecimento relativo chinês.

O documento revela, portanto, que, a despeito da retórica hiperbólica e inconstante de Trump, existe uma agenda estratégica forte de enfrentamento à China, a qual, em contraposição ao senso comum, não nasceu no governo Trump e não termina com ele, visto que as propostas de Biden para a China são muito similares àquelas deste relatório. Como explicitamente apresenta o relatório, trata-se de uma agenda spykmaniana de defesa da hegemonia dos Estados Unidos na Ásia e no mundo. Defesa que – conforme as ideações dos assessores vulcões e de geopolíticos clássicos – é mais bem implementada pelo ataque antecipado, isto é, a antecipação do enfrentamento de modo a impedir que, com o tempo favorável, o rival reúna forças para uma batalha mais equilibrada no porvir. Numa imagem, é, mutatis mutandis, a estratégia do titã Cronos para não ser destronado.


Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia, doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e investigador do INCT-INEU.

Texto publicado originalmente na página do Observatório Político dos Estados Unidos. Publicado também na Carta Maior. Adaptação para português de Portugal pelo Esquerda.net.