Haitianos apontam saídas para a crise

24 de março 2024 - 17:56

Professores, intelectuais, militantes e líderes de movimentos dão as suas opiniões sobre o que fazer face à crise no país. Por Neno Garbers.

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Michel Soukar, Jacques Adler Jean Pierre, Camille Chalmers e Didier Dominique.
Michel Soukar, Jacques Adler Jean Pierre, Camille Chalmers e Didier Dominique.

Há duas semanas o Haiti vive um contexto de crise aguda que derrubou o primeiro-ministro do país, Ariel Henry, gerou uma onda de violência que obrigou milhares de pessoas a deixarem as suas casas e preocupa a comunidade internacional. A saída acordada por atores internacionais é o envio de mais forças de segurança, sejam soldados ou polícias, apressando o cumprimento de decisão do Conselho de Segurança da ONU que foi tomada em outubro passado a pedido do próprio Henry, com apoio dos Estados Unidos.

Apoiar a nova missão militar tornou-se exigência para quem quiser se tornar um dos sete integrantes do Conselho Presidencial Provisório. O órgão proposto pela Comunidade do Caribe (Caricom) deve assumir o poder em breve e, em tese, faria uma mediação entre diversos grupos haitianos.

Até agora a missão ainda não tem muitas definições – não se sabe quem mandará os soldados, com quais recursos e quais as suas obrigações e deveres. A única definição é que será voltada exclusivamente à segurança, fórmula adotada noutros momentos da história do Haiti que, segundo investigadores, teria deixado resultados catastróficos para o país.

Os grupos políticos haitianos, muitos divididos quanto a essa exigência, tiveram apenas 48 horas para decidir se estavam de acordo e indicar os nomes dos seus representantes. Muitos deles têm acusado essa de ser a mais nova chantagem política internacional.

Vale lembrar que Henry, visto como ilegítimo por boa parte da sociedade, foi nomeado por Jovenel Moïse, ex-presidente que já estava com o seu mandato terminado e continuou no poder até ao dia 7 de julho de 2021. Nesta data, Moïse foi assassinado, justamente três dias após a nomeação de Henry como primeiro-ministro, num crime até hoje não esclarecido, com vários indícios de obstrução da justiça e sem ter todos seus possíveis mandantes investigados. Henry também tem graves denúncias contra ele de ter fortes ligações com diversos desses grupos armados.

A sociedade civil do Haiti já tinha formulado em 2021 um conjunto de propostas não-violentas para viabilizar a transição política no país, presentes no Acordo de Montana.

Neste contexto, o Brasil de Fato ouviu atores políticos e intelectuais do país sobre o que fazer para resolver a crise atual.


Jacques Adler Jean Pierre, membro do partido Pitit Desalin (Filhos de Dessalines) que abandonou o acordo por discordar da exigência de que todos membros devam aceitar a missão estrangeira:

Hoje, mesmo se aceitássemos uma missão aqui, nós deveríamos decidir qual o tipo de missão que tem a ver com a gente. Depois de muitas missões, a situação política, social, etc, complicou-se e elas não trouxeram uma solução de verdade.

Não podemos dizer que o país não mereça ajuda, mas acreditamos que seja importante que os haitianos estejam unidos e a refletir sobre qual tipo de missão queremos, de qual país viriam [as tropas] e que tipo de ajuda [...]. Temos que ver com atenção quem é amigo de verdade, quem é mais sincero entre os amigos e quem tem vontade de ajudar de verdade,[...] porque as missões dos Nações Unidas, em particular as trazidas pelos EUA, nunca trouxeram nenhuma solução para o país.[...] depois delas a situação sempre se complicou.

Todos os haitianos deveriam unir-se, e é isso que é mais difícil, unir-se para dizer qual a ajuda precisamos. Mesmo que estejas com fome, correr para pegar algo venenoso para comer, só para ficar de barriga cheia, não resolve.

Por que a comunidade internacional, que não conseguiu dar respostas ao problema, agora nos dá apenas dois dias para tomar uma decisão? Percebe-se que eles querem fazer-mos tomar uma decisão à pressa para depois, graças à decisão rápida e de cabeça quente, terem o controle da situação.

É quando eles têm o controle da situação que se sentem à vontade [...] controlam a crise e recriam a crise, aí não é bom para a gente.

Camille Chalmers é referência como economista e sociólogo, faz parte do PAPDA (Plateforme haïtienne de Plaidoyer pour un Développement Alternatif), que reagrupa diversos movimentos sociais e organizações civis, do partido de esquerda Partido Rasin Kan Pèp (Raiz do Campo Popular, em tradução livre) e da Alba Movimientos. O seu partido faz parte do Acordo do Montana.

Demissão do primeiro-ministro Ariel Henry; estabelecimento de um governo de transição legítimo com uma série de acordos de governança; que cesse o fluxo internacional de armas em direção ao Haiti; rompimento com o controle dos narcotraficantes e com outros setores corruptos da elite haitiana que interferem no sistema político.

Garantia que não haja nenhuma intervenção militar externa; investimento e fortalecimento imediato da capacidade das instituições haitianas, incluindo a Polícia Nacional do Haiti (PNH), para fazer frente aos gangues.

Didier Dominique é professor universitário, houngan (pai de santo vudu), sindicalista e dirigente da organização Batay Ouvriye (Batalha Operária, em tradução livre), grupo especialmente ligado à luta dos trabalhadores urbanos e que não participou de nenhum dos acordos que terão representantes no Conselho Presidencial.

Há duas respostas atualmente em jogo: uma para a classe dominante, quer dizer, para o Conselho Presidencial, para antigos parlamentares, ou ainda capitalistas, globalmente, imperialistas. Eles vão tentar sair da crise de forma organizada entre eles, encontrarem-se frente aos grupos armados, os quais eles mesmos colocaram em funcionamento e agora abandonaram.

Mas para nós, massa popular, trabalhadores, operários, camponeses, que estamos a ser desalojados, a insegurança é a primeira coisa a ser resolvida. Em seguida há uma série de reivindicações de salário, condições laborais, transporte, que a população deve encontrar os resultados que deseja.

Este é um segundo tipo de solução e é a massa popular organizada que pode permitir que isso aconteça, não o Conselho Presidencial, imperialista. Pelo contrário, estas pessoas estão contra a população, elas é que colocaram os gangues aí justamente para a população não se conseguir mobilizar. Então são duas soluções diferentes.

Michel Soukar é historiador e um dos jornalistas e intelectuais mais influentes do país

Não sei se é sonho, mas gostaria que o povo, vendo quem o colocou na situação de hoje, haitianos e estrangeiros, identificasse um líder que deseja e seja da sua confiança. E que de uma maneira ou de outra o impusessem, formando uma massa crítica para apoiá-lo, organizando-se e controlando-o.  [...] Além disso, na cena internacional a única pessoa em que tenho confiança é Lula [...] ele gostaria de fazer alguma coisa por este país, e eu adoraria que fizéssemos um retângulo: Haiti, Cuba, Colômbia e Brasil. Uma cooperação Sul-Sul, embora existam países no Sul Global que não estão nessa proposta.

A primeira coisa é cuidar da segurança, e para isso e todo o resto vai-se precisar dos jovens, que são a fundação, num projeto que coloque a juventude como agente no projeto de nação. Pela primeira vez na história do Haiti teríamos uma juventude que criaria o Estado em fundação com a nação e isso traria um sentimento de que tudo isto é dela.

Construir uma nação é construir algo que todos reconheçam como seu. Ao contrário de 2004 [ano do golpe que derrubou o então presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide], os EUA não são os únicos que cantam de galo.


Neno Garbers mora no Haiti desde 2012, onde é investigador, editor, jornalista /correspondente e mediador de comunicação não-violenta pela organização Transfòmatis.

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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