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Há 20 anos, o terror chovia sobre a Jugoslávia

Este ano, assinala-se a passagem dos 20 anos dos bombardeamentos da NATO na Jugoslávia (24/03 – 10/06 1999). Texto de Jorge Santos e João Pedro Martins.
Bombardeamento de Belgrado por aviões da Nato em 1999 – Foto de Darko Dozet, wikimedia
Bombardeamento de Belgrado por aviões da Nato em 1999 – Foto de Darko Dozet, wikimedia

Nessa operação militar, além dos EUA, participaram outros 18 Estados-membros da NATO, entre os quais Portugal.

Nas últimas duas décadas, muitas foram as agressões externas desta aliança imperialista e talvez por isso a maioria de nós já não se recorde ou nunca tenha ouvido falar desta campanha militar e das suas consequências, ainda hoje sentidas pela população.

Melhor será começar pelo início e explicar como as coisas chegaram a esse ponto.

Podemos recuar a 1981, período imediatamente após a morte do Marechal Tito, presidente vitalício da República Federal Socialista da Jugoslávia.

A Jugoslávia era constituída por seis Repúblicas e duas Províncias Autónomas, sendo uma delas o Kosovo.

A Província do Kosovo tinha beneficiado de maior autonomia com a reforma constitucional de 1974, e a construção da Universidade de Pristina tinha possibilitado à população o acesso ao ensino superior e ao estudo da língua albanesa, falada maioritariamente na região.

Mas as dificuldades económicas faziam-se sentir, com uma grande percentagem de jovens licenciados e desempregados que ansiavam por mudanças políticas e uma maior qualidade de vida. Ao mesmo tempo, os governantes locais exigiam que o Kosovo se tornasse também numa República, separada da Sérvia.

Os protestos dos estudantes albaneses de 1981 tiveram como palco a Universidade de Pristina, e foram violentamente reprimidos pelas autoridades, acabando por se converter em grandes manifestações nacionalistas por toda a Província.

Os albaneses, a etnia dominante, diziam-se tratados como cidadãos de segunda, e os protestos agudizaram o conflito entre albaneses e não-albaneses, originando uma crise política sem precedentes.

A resposta não se fez esperar. Um processo de revisão constitucional iniciado no ano seguinte, culminou em 1989 com o reforço do controlo legal e judicial da Sérvia sobre as Províncias do Kosovo e Vojvodina, na prática reduzindo a sua autonomia.

Em 1987, Slobodan Milošević tornou-se presidente da República da Sérvia. Líder forte e carismático, era defensor de uma atitude de maior confrontação, em oposição à negociação, quanto ao “problema do Kosovo”.

Certo é que o “problema do Kosovo” nunca ficou resolvido, mantendo-se um conflito étnico entre a população kosovar e a fuga de milhares de pessoas perante os atos de violência a que assistiam.

Após as sangrentas guerras que levaram à dissolução quase total da Jugoslávia, rebenta, em fevereiro de 1998, o conflito militar entre a milícia nacionalista auto-intitulada “Exército de Libertação do Kosovo” (ELK) e o Exército Jugoslavo.

O conflito armado no Kosovo já tinha começado antes, com o contrabando de armas vindas da Albânia e os ataques dirigidos às forças policiais e a políticos locais. Mas a intensificação das ações de guerrilha do ELK, que passou a controlar partes da Província, resultou no envio de um maior número de forças regulares e paramilitares sérvias para a região.

O ELK foi financiado com dinheiro do narcotráfico e das redes de crime organizado, chegando mesmo a estar na lista norte-americana de organizações terroristas. As suas ações incluem sequestros, atentados bombistas, assassinatos de civis, perseguição das minorias sérvia e cigana, e a destruição de igrejas e mosteiros ortodoxos.

Estes separatistas não queriam mais autonomia, defendiam uma “Grande Albânia”, composta pelo Kosovo, Montenegro e partes da Sérvia, Grécia e Macedónia.

Já as autoridades de Belgrado, não estavam dispostas a abdicar do Kosovo, que tinha um simbolismo importante para a Sérvia enquanto local histórico e sede da igreja ortodoxa.

Os EUA nunca tiveram verdadeiramente por objetivo chegar a acordo pela via diplomática. Os humilhantes acordos de Rambouillet, rejeitados pelas delegações Russa e Sérvia, foram descritos desta forma por Henry Kissinger:

“O texto de Rambouillet, que pede à Sérvia para admitir tropas da NATO na Jugoslávia, foi uma provocação, uma desculpa para começar os bombardeamentos. Rambouillet não é um documento que um qualquer anjinho sérvio pudesse ter aceite. Era um documento diplomático terrível que nunca devia ter sido apresentado naqueles termos.”

George Kenney, membro de um Departamento de Estado americano para a Jugoslávia admitiu, na altura, que os americanos tinham estabelecido “deliberadamente a fasquia demasiado alta para que os sérvios pudessem aceitar”.

A administração Clinton ignorou as violações dos direitos humanos cometidos pela milícia e ameaçou Milošević de que se não chegasse a acordo com os separatistas, “o que resta da Jugoslávia seria implodido”. Milošević, que até aceitava por princípio a autonomia, manteve-se firme na intenção de não abdicar do Kosovo, e o seu partido aliou-se à direita nacionalista do Partido Radical Sérvio, num improvável governo de coligação entre dois parceiros ideologicamente opostos.

Com o apoio dos aliados garantido, e precipitado pelo escândalo do caso Monica Lewinsky, Bill Clinton procurou desviar as atenções do público para os Balcãs, anunciando a “Operation Noble Anvil”, que supostamente tinha alvos militares mas massacrou a população sérvia sem nenhum pudor.

Note-se que o equipamento militar Jugoslavo era relativamente obsoleto à época. Somente dispunham de 14 caças, parte dos quais tinha problemas com os radares. Mesmo assim, a defesa anti-aérea conseguiu abater um caça-bombardeiro Lockheed F-117 Nighthawk nos primeiros dias da operação. A única vez na história que um destes modernos aviões “invisíveis” e de enorme alcance, a tecnologia de ponta da altura, foi abatido.

Para toda uma geração, é ainda difícil falar do inferno de 78 dias em que o país foi sistematicamente bombardeado por mais de 600 bombardeiros e aviões de combate. Só a cidade de Belgrado, foi bombardeada 212 vezes ao longo de três meses.

Violando o Direito Internacional, os aliados do imperialismo bombardearam zonas residenciais de cidades densamente povoadas, gerando um elevado número de “danos colaterais”, como cinicamente lhes chamaram.

Pontes, hospitais, escolas, mercados, mosteiros e estações de televisão, até mesmo comboios e autocarros cheios de passageiros foram atingidos. Tudo o que mexia era um alvo da NATO, mesmo quando se encontrava a milhares de quilómetros de edifícios militares.

Nem mesmo a embaixada da China em Belgrado escapou às bombas. Três pessoas morreram e outras 20 ficaram feridas num ataque. Inicialmente, os porta-vozes da NATO descrevem-no como um “acidente inevitável, ainda que lamentável”. Contudo, quando ficou provado que o bombardeamento do edifício foi intencional, Clinton justificou o sucedido dizendo que se tratou de um engano, porque as forças militares norte-americanas tinham um mapa desatualizado de Belgrado.

Sempre que as sirenes soavam, dia e noite, o pânico daqueles que não tinham por onde fugir instalava-se. Quase todos perderam familiares ou amigos nos bombardeamentos da coligação.

As bombas de fragmentação eram particularmente insidiosas. Cada uma delas continha dentro dezenas de pequenas submunições que se espalhavam por uma área correspondente a um campo de futebol. Apesar de estarem proibidas por convenções internacionais, foram usadas em larga escala nesta operação.

Durante os bombardeamentos, foram ainda lançadas entre 10 a 15 toneladas de urânio empobrecido, o que fez aumentar cinco vezes os casos de patologias oncológicas. Estima-se que todos os anos, na Sérvia, 33.000 pessoas adoecem devido ao contacto com esta substância.

O balanço dos ataques resultou em mais de 2.500 civis mortos, mais de 12.500 gravemente feridos e 40.000 casas danificadas ou destruídas.

Mais de 300 escolas e bibliotecas e 30 hospitais (incluindo o hospital pediátrico de Belgrado) foram atingidos por bombas. Cerca de 90 monumentos históricos ou arquitetónicos do país sofreram danos.

A Sérvia já tinha sido muita afetada pelas sanções internacionais durante a guerra na Bósnia, mas os bombardeamentos causaram danos catastróficos à economia do país, que mesmo hoje não consegue recuperar da crise.

Para parar o massacre, o Governo sérvio teve de ceder, assinando o acordo de Kumanovo, que implicou a retirada total das tropas sérvias estacionadas no Kosovo e a entrega do território à administração das Nações Unidas.

O Kosovo declarou unilateralmente a independência em 2008, levando a que milhões de sérvios saíssem às ruas em protesto. O novo Estado não foi reconhecido nem pela Sérvia nem por outros 90 países.

A pedido da Assembleia Geral das Nações Unidas, o Tribunal de Haia pronunciou-se sobre a declaração unilateral de independência em 2010, concluindo que esta não tinha violado as regras do Direito Internacional. A opinião consultiva do Tribunal foi contestada por alguns dos juízes, que consideraram a pronúncia deveria ter ido mais longe. Para estes juízes, a resposta não pesou as consequências do exercício de uma tal declaração, e perdeu uma oportunidade de estabelecer limites ao exercício do Direito à Autodeterminação dentro dos Estados, o que poderia prevenir o seu uso indevido por grupos que promovem divisões étnicas e tribais.

A Sérvia e o Kosovo assinaram, em 2013, o acordo de Bruxelas para a “normalização” das suas relações diplomáticas, com o propósito de aderirem à UE.

Em 2006, um grupo de economistas estimou que, no total, os danos dos bombardeamentos para a Sérvia ascendiam a 29,6 mil milhões de dólares, incluindo danos económicos indiretos como a perda de capital humano e a contração do PIB.

Este crime hediondo lembra-nos a todos e todas que não existe nenhum lugar do mundo que esteja a salvo da barbárie imperialista. Pelo menos enquanto o mundo for um lugar em que se permite e aceita que haja uma superpotência que assume uma influência política, militar e cultural hegemónica.

Lembra-nos também que, apesar de nos dizerem que as Forças Armadas portuguesas são forças de paz, com um papel humanitário nas suas missões, elas não deixaram de ser parte ativa no massacre do povo sérvio. E nada nos garante que, enquanto Portugal estiver na NATO, os militares portugueses não terão mais as suas mãos manchadas de sangue por interesses económicos que não são seguramente nossos.

Texto de Jorge Santos e João Pedro Martins

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