Menos de um mês antes da revolução de 25 de Abril, a Casa da Imprensa organizou o 1º Encontro da Canção Portuguesa, para entrega dos prémios de imprensa. Acabou por constituir uma ruidosa manifestação pública contra a ditadura, por vontade dos 5000 assistentes que sobrelotaram o Coliseu.
A Direção Geral dos Espetáculos manteve a possibilidade de proibição até à hora do início.
A Casa da Imprensa bem insistiu em esclarecer a situação. Em ofício de 27 de março, assinado por Mário Cardoso (Presidente da Direção da Casa da Imprensa), dirigido a Caetano de Carvalho, Subsecretário de Estado da Informação e Turismo, solicita os seus “bons ofícios” para a realização do espetáculo, “destinado a angariar fundos para a obra assistencial da nossa instituição”, com “numerosos artistas representativos da moderna canção portuguesa”.
Coliseu de Lisboa, 29 de março de 1974.
Relata ter cumprido as obrigações com a censura, tendo submetido as canções à “Comisão de Exame e Classificação de Espetáculos”. Pede que seja levantado “o embargo em relação aos artistas José Afonso e Adriano Correia de Oliveira”.
Ofício da Casa da Imprensa em 27/03/1974.
A expetativa do público era grande. Os bilhetes, ao preço de 20 escudos, estavam esgotados. Segundo o Diário de Lisboa desse dia, “raramente terá havido oportunidade de juntar nomes tão representativos”, prevendo que o espetáculo seja “um marco memorável da canção portuguesa”i.
Diário de Lisboa, 29 de março de 1974.
“Foram muitos os que se sentaram no chão dos corredores e cochias da enorme sala” e o ambiente “era de euforia e de autêntica festa”, diz o Diário Popularii.
Entre as 21h30 e as 22h é o público que canta. “Cantava-se em coro, Canta, Canta, Amigo Canta…Era assim que os 5 mil pediam que o espetáculo começasseiii.
O espetáculo começou pelas dez horas, com um momento instrumental, com o conjunto de Marcos Resende que acabou por ser vaiado por um público ávido de outras músicas. Maria do Amparo e Carlos Alberto Moniz, tranquilizaram os ânimos, mas a primeira ovação da noite foi para Carlos Paredes.
De seguida, o jornalista Joaquim Furtado (que em 25 de Abril daria voz aos comunicados do MFA, no Rádio Clube Português), leu a lista de premiados pela Casa da Imprensa. A maioria dos prémios e premiados não provocou grande entusiasmo no público. Porém, o prémio atribuído a Adelino Gomes e ao programa Página Um, entusiasmou a sala.
Adelino Gomes tinha sido despedido por motivos políticos, mas não teve receio em afirmar que:
“esta distinção não premeia o trabalho individual de uma pessoa, mas aquilo que alguns de nós tentámos dizer e fomos proibidos de dizer. Homenagem ainda aquilo que muitos de vocês gostariam de ter ouvido e não vos foi reconhecido o direito de o ouvirem”iv.
Adelino Gomes e Joaquim Furtado, no Coliseu, em 29 de março de 1974.
A condenação aberta da censura mereceu uma ovação estrondosa da sala.
Outros nomes muitos aplaudidos foram os de Sérgio Godinho e José Mario Branco, pelos seus LP – Os Sobreviventes e Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades – ausentes porque se encontravam exilados.
Depois do grupo espanhol Vino Tinto, subiu ao palco o poeta Ary dos Santos. Conhecido então sobretudo pelas letras de canções para o Festival da Canção da RTP, foi recebido com assobios e saíu com uma grande ovação depois de dizer “S.A.R.L.”
Barata Moura, Vitorino, José Jorge Letria, Manuel Freire, Fausto, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, no Coliseu, em 29 de março de 1974.
Cantaram depois José Barata Moura e o grupo Intróito. Manuel Freire afirmou que, como vinha do norte, se tinha esquecido de letras de canções no comboio, alusão aos cortes da Censura, levando a assistência a aplaudir e cantar em coro as letras proibidas.
Seguiram-se Fernando Tordo e José Jorge Letria. Segundo o jornal A Capital, “quando José Jorge Letria se preparava para cantar a sua segunda canção, foi ele que teve que acompanhar o espetacular coral de cinco mil pessoas que lhe impuseram a canção”v.
Diário de Lisboa, 30 de março de 1974.
Adriano Correia de Oliveira cantará a seguir, quase sempre acompanhado pelo coro dos 5 mil. Durante a sua atuação lembrou os milhares de exilados, mencionando especialmente José Mário Branco, Sérgio Godinho, Francisco Fanhais e Luís Cília.
Por fim, o mais esperado da noite, José Afonso. A Casa da Imprensa enviou várias canções de Zeca para aprovação da Censura. As únicas aprovadas foram “Milho Verde” e “Grândola, Vila Morena”.
“Grândola, Vila Morena”, composta em 1964, depois de uma atuação de José Afonso em Grândola, organizada pela Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, foi gravada em 1971, em Hérouville (França), com arranjos e direção musical de José Mário Branco, sendo a primeira faixa do lado B, do álbum Cantigas do Maio, editado pela Orfeu em 1973. Foi cantada em público, pela primeira vez em Santiago de Compostela (capital da Galiza), em 10 de maio de 1972vi.
Zeca cantou primeiro “Grândola”, depois “Milho Verde” e acabou por ter de repetir “Grândola”. Alguns dos oficiais do MFA “implicados” na Revolução que eclodiria em 25 de Abril, estavam na sala.
“Grândola, Vila Morena”, no Coliseu, em 29 de março de 1974.
Segundo A Capital, do dia seguinte:
“Quando José Afonso se aproximou dos microfones e disse que só ia cantar uma canção, “Grândola, Vila Morena”, os seus companheiros de espetáculo aproximaram-se, deram os braços e, de imediato, a sala toda se levantou, imitou-os e entoou com eles o canto alentejano, acompanhado com o ritmado do corpo balançado. Filas e filas da plateia, das bancadas, dos camarotes, das galerias, eram massas de gente, de braços dados, com que a participar de um fantástico cerimonial.”
Para o Diário de Lisboa, também do dia seguinte:
“Era como se em Grândola estivessem no pino do Verão.
Grândola , vila morena / terra da fraternidade /
O povo é quem mais ordena / dentro de ti ó cidade.
O público foi quem mais ordenou. À falta de cantigas, Zeca Afonso teve de repetir a que do Alentejo veio. Nessa altura as luzes apagaram-se. Mas, quando a luz regressou à sala, viam-se na plateia e na geral, os corpos cerrados acompanhando o ritmo. Ao lado da de Zeca Afonso, muitas vozes se elevavam. Mas não eram apenas um conjunto de vozes. Era como que um grande canto coletivo.”
i Diário de Lisboa, 29 de março de 1974.
ii Diário Popular, 30 de março de 1974.
iii Cinéfilo, 6 de abril de 1974.
iv Antena 1 – programas especiais. 1º Encontro da Canção Portuguesa.
https://www.rtp.pt/play/p337/e148979/antena-1-programas-especiais
v A Capital, 30 de março de 1974.
vi Ver o documentário galego da NOS Telévision, “Zeca 1972 Galiza – o Zeca além do Grândola”, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=phUGPk91C8c