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Ganhar cidades de futuro: a esquerda, a habitação e a mobilidade face à crise climática

O encontro promovido pelo Partido da Esquerda Europeia e pela transform! europe, em Viena, entre 22 e 23 de outubro, debateu as cidades do futuro, partindo do pressuposto de que é hoje que ele é construído e que o passado de políticas neoliberais tornaram as cidades menos inclusivas, mais segregadoras e, por tudo isto, menos democráticas.
Respeitando a especificidade de cada país e de cada cidade, há, contudo, algumas ideias que ficaram claras:
1) As cidades são um espaço de disputa central que tem de contar com a força da esquerda
As experiências de cada cidade mostram como foi importante construir caminho em conjunto com as pessoas, debatendo as soluções das suas vidas. O trabalho local agrega forças e tem a capacidade de arrancar vitórias em temas e lugares que pareciam dominados pela agenda neoliberal ou conservadora.
Da aplicação da tarifa gratuita de transportes públicos no Luxemburgo, até aos superquarteirões – forma de reorganização da cidade que privilegia a mobilidade suave face ao carro –, em Barcelona, passando pela proposta maioritária de expropriação dos fundos especulativos em Berlim, todas estas ideias assentaram num trabalho duradouro, empenhado, verdadeiramente militante que desconstrói as narrativas dominantes e que deu um caminho político à mobilização que as pessoas iam tendo sobre a sua cidade. De facto, não existe fórmula mágica e todas as vitórias são impostas pela força da construção de maiorias sociais sobre certo tema. Nalguns casos, como em Graz, aquele trabalho duradouro conseguiu mesmo impor uma vitória eleitoral na cidade e o partido comunista austríaco lidera hoje a segunda maior cidade da Áustria, tendo este feito modificado a dinâmica nacional que permite hoje ao KPO crescer em toda a Áustria, mesmo em locais tradicionalmente de direita.
2) A proximidade e a informação como força à esquerda
Outra conclusão importante é que a construção das maiorias sociais se faz através da proximidade entre movimentos sociais e partidos políticos e que a partilha de informação em cada campanha conta. A esquerda ganha quando respeita a sua essência de trabalho coletivo e de construção de maiorias pela raiz, ao lado de quem, diariamente, ultrapassa ou esbarra nos obstáculos das cidades contemporâneas. Recolher informação, passá-la às pessoas, discuti-la coletivamente, faz toda a diferença. Foi importante o movimento do referendo em Berlim recolher a informação sobre os fundos imobiliários que, como abutres, atacavam a cidade; foi igualmente importante, em Graz, estar ao lado dos inquilinos que tinham problemas na sua habitação, acompanhar a sua situação concreta e nunca abandonar as pessoas à sua sorte; em Barcelona, foi importante que se percebesse o quão desproporcional eram as vias reservadas aos carros, que essa monocultura do carros desregulava a cidade e era prejudicial à saúde das pessoas. Cabe à esquerda fazer esse trabalho, pois é a esquerda que sabe como os interesses que se apoderam da habitação e da mobilidade convivem muito bem com a ausência de escrutínio e de democracia.
3) Intransigência com meias respostas
Em vários casos, há vitórias que apenas surgem parcialmente e que exigem que a esquerda não deixe que a resolução dos problemas fique pela metade. É o caso dos transportes públicos no Luxemburgo. Uma vitória que se não for apetrechada das infraestruturas necessárias para receber o maior número de pessoas, se não tiver o investimento necessário para executar a medida e, sobretudo, se permitir que se mantenha o investimento em vias para carros, torna-se insuficiente. Uma implementação sem o necessário investimento público nos transportes coletivos, pode fazer fracassar uma boa ideia. É também o caso da vitória do Bloco de Esquerda em Lisboa, no que ao alojamento local diz respeito: é certo que foi uma vitória forçar uma regulamentação desta política que tornou a cidade num hotel, mas tal não basta. Por um lado, porque o Partido Socialista e a direita tudo fizeram para não atuar enquanto era tempo, o que fez com que a regulamentação chegasse tarde demais; por outro, porque os problemas estruturais que o alojamento local criou, e que retiraram milhares de casas da sua função de habitação, só podem ser respondidos com medidas também elas estruturais, que recuperem essas casas para a sua função de habitação.
4) A imaginação ao poder ou políticas de esquerda transformadoras
Em Helsínquia, uma política que responde às pessoas em situação de sem-abrigo pode levar-nos a imaginar cidades diferentes, em que a dignidade básica é garantida. Entre 2008 e o ano atual, reduziram de 18.000 para 1.500 as pessoas nesta situação – segundo Mia Haglund, vereadora municipal da Left Alliance, com a política também implementada em Lisboa no último mandato: “Housing First”. Helsínquia também antecipou as metas para a neutralidade carbónica de 2040 para 2030.
De Barcelona chegou a proposta de uma cidade para a mobilidade suave, com uma redução brutal das vias rodoviárias através da aplicação do conceito de superquarteirões, algo que ocorre já em Poblenou através do Collectiu Superilla. Mercedes Vidal, anterior vereadora da mobilidade, apresentou o programa para aplicação desta medida em toda a cidade que se baseou nos princípios da melhoria da qualidade do ar, da maior parte das deslocações em Barcelona ocorrerem a pé e que para existirem menos carros numa cidade – onde 25% das deslocações são feitas de carro – tem de se retirar espaço para os carros. Para além disto, cada ano existe um Parking Day, à semelhança do que ocorre também em Linz, em que os espaços de estacionamento de carros são utilizados pelos peões e crianças. Mercedes correlacionou, ainda, um maior uso do carro privado com um maior nível de rendimentos, numa cidade em que esta associação, segundo diz, é evidente. Sobre a mobilidade das pessoas com deficiência, explicou que Barcelona tem a rede de autocarros toda adaptada e 90% das estações de metro. Foi também criado um Grupo de Trabalho no âmbito municipal com pessoas surdas e com deficiência motora.
Sobre a recente experiência na Alemanha do referendo – não vinculativo – para a expropriação da maior proprietária privada de habitação da cidade – Deutsche Wohnen & Co. –, Katalin Gennburg, vereadora de Berlim pelo Die Linke, falou da maioria social criada contra a empresa detida pelo fundo abutre Blackrock e da campanha de mobilização territorial em toda a cidade. Esta mobilização resulta ainda da constatação dos impactos da crise financeira de 2008 e da necessidade de reclamar a cidade como objetivo comum. Os 150.000 apartamentos privatizados aumentaram brutalmente os preços numa cidade em que 85% da população arrenda o local onde vive. Uma primeira medida que implementaram foi o Rent Brake que propôs um travão ao aumento dos preços e se mostrou inócua. Em 2019 implementaram um teto às rendas com apoio de ativistas e técnicos legais e que haviam feito uma iniciativa legislativa – que não só pretendia estagnar as rendas como regular igualmente novas rendas. Esta legislação, não tendo sido declarada inconstitucional no conteúdo, foi na forma – o Tribunal declarou que não era competência da cidade, mas sim do Estado Alemão, definir uma limitação das rendas. Falou ainda da mobilização e apoio de pessoas com especialidades próprias, desde quem ajudou a redigir a legislação apresentada até às pessoas com vontade de investigar e mapear os movimentos dos fundos abutres, como a Blackrock.
Na sessão sobre urbanismo versus lucro apresentaram-se ainda outras propostas: um fundo de terras da cidade de Berlim, criado com o intuito de comprar antigos terrenos públicos de volta e a quota na nova construção de 30% já em aplicação mas que encontra muitos entraves da administração; a aplicação de uma taxa de redefinição de tipologia dos terrenos – de rural para urbano – e da captação das mais-valias geradas por essa simples transformação que concede capacidade construtiva; bancos municipais e cooperativas habitacionais. Os instrumentos de ordenamento e planeamento do território devem contrariar as forças especulativas que se têm apropriado das cidades para que as cidades do passado da promoção do individual se transformem em cidades para um futuro comum.
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