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A fraude das Americanas revela a natureza dos bilionários brasileiros

O caso da rede de lojas mostra como bilionários como Paulo Lemann são uma fraude: mantêm-se ricos privatizando lucros e socializando prejuízos. A recente revelação das suas falcatruas também nos deve alertar para a influência do magnata na educação pública. Por João Marcelo Pitiá Barreto e Penildon Silva Filho.
Filial das Lojas Americanas em Tangará da Serra, Mato Grosso. Foto de José Henrique Kautzmann/Wikimedia Commons.
Filial das Lojas Americanas em Tangará da Serra, Mato Grosso. Foto de José Henrique Kautzmann/Wikimedia Commons.

O caso das Lojas Americanas é o maior escândalo da história do mercado de capitais brasileiro – talvez um dos maiores do mundo. Apesar disso, o “mercado” não parece tão alarmado quanto estava com os gastos com o Bolsa Família. Para surpresa de todos, e desespero de alguns, a coisa toda tem início quando Sérgio Rial deixou o comando das Lojas Americanas apenas dez dias após assumir o cargo de CEO. A decisão de sair deu-se ao descobrir um verdadeiro lamaçal nas demonstrações contabilísticas da rede de distribuição. Quando o seu ex-presidente anunciou, as Americanas deviam cerca de 20 mil milhões de reais. Com base num novo levantamento interno, já passam de 40 mil milhões de reais.

O “erro”, por assim dizer, na contabilização do passivo foi algo que chamou muita atenção para quem é da área financeira. Trata-se de uma contabilização de baixa complexidade que qualquer estudante de disciplinas introdutórias de contabilidade deveria saber executar. Chama atenção que o rombo teve a tutela da Price Waterhouse Coopers (PWC), uma das maiores empresas de auditoria do mundo, e expôs os três maiores bilionários do país, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, tidos até então como crème de la crème do capitalismo supostamente bem sucedido no país. Um deles, inclusive, dá o nome de uma notória fundação, que faz a cabeça de muitos gestores de educação no Estado brasileiro, com um discurso de eficiência, ética e inovação. Tendo agora visto na prática os efeitos de tamanha eficiência e inovação na gestão das Americanas, caberia perguntar se a nossa educação também não se encontra em grave perigo.

Lucros privados, prejuízos socializados

Este não é o primeiro caso de empresas dos três proprietários com fraudes contabilísticas. Em 2019, a Securities and Exchange Commission (SEC) — reguladora do mercado de capitais nos Estados Unidos — acusou a empresa Kraft Heinz, uma das maiores empresas no setor de alimentos, de erros contabilísticos.

Os três bilionários tinham investido um total de 23 mil milhões de reais na aquisição da gigante em 2013. Neste caso, as acusações envolviam, especialmente, a área de compras da empresa, acusada de manter contratos falsos com fornecedores e mascarar o custo. O resultado foi um “Ebitda” (Earnings before interest, taxes, depreciation and amortization) inflado, e que não condizia com a realidade, o que obrigou a companhia a republicar os seus balanços com as devidas correções e uma baixa contabilística de US$ 15,4 mil milhões. Desde então, o trio tem vindo a reduzir a sua participação na empresa com a venda de ações.

No caso das Lojas Americanas, a empresa levou os investidores e credores ao erro no momento em que não foi transparente nos seus dados. A outra consequência, com essa manobra contabilística, foi o aumento dos lucros da companhia através da alavancagem financeira. Alavancagem financeira é a utilização de dívida para aumentar o retorno sobre o capital próprio. A alavancagem pode aumentar os lucros, especialmente dos três bilionários, mas também aumenta o risco de insolvência, pois a dívida precisa ser paga independentemente do desempenho dos ativos.

Outro ponto que causa questionamento é que mesmo após a exposição da fraude, a empresa não alterou a composição do Conselho de Administração. Se existem esclarecimentos ainda a serem feitos, sobre quem seriam os responsáveis pela falha, mas a empresa não abre uma investigação interna e mantém tudo como está, cria-se uma atmosfera de insegurança, uma sensação de que possíveis responsáveis ainda tenham como beneficiar por manterem acesso privilegiado às documentações da empresa.

Desde que as grandes crises financeiras da primeira metade do século passado mostraram os tremendos riscos sociais que a busca desenfreada pela acumulação privada podem gerar, mesmo as sociedades liberais se convenceram da necessidade de implementar mecanismos gerenciais eficientes para suprimir atitudes oportunísticas dos agentes “mercado”. O papel do Estado, através do fortalecimento das suas instituições, é reconhecido como crucial não só no seu papel fiscalizador, mas também punitivo e proativo. O clima de impunidade estimula os impulsos mais predatórios de bilionários obcecados por se tornarem ainda mais ricos, mesmo que em detrimento do interesse coletivo.

O encerramento de uma organização como as Lojas Americanas significa a destruição de 40.000 empregos diretos, fora os indiretos, tais como fornecedores, prestadores de serviços, proprietários dos imóveis alugados e os pequenos investidores que arriscaram suas poupanças em busca de rentabilidade. Também estarão prejudicados os bancos, fundos de previdência, que impactarão na vida futura destas pessoas, e o Estado que não disporá da arrecadação da receita de impostos para alocar às necessidades da população.

Interesses bilionários na educação

É importante que façamos o registo do poder de influenciar a sociedade e as políticas de Estado da Fundação Lemann, com os seus tentáculos em diversos níveis da Educação brasileira. Fundação que implementou uma reforma educacional que se consubstanciou com o “Novo Ensino Médio” de 2016 e pela venda de material didático e testes de avaliação que rendem milhares de milhões de reais a essa organização ligada ao empresário que já enfrenta problemas de fraude também na AMBEV – pelo menos tão grandes quanto nas Americanas.

A Fundação Lemann tem outras fundações e ONGs associadas a ela, seus “spin offs”, influenciando a formação dos nossos jovens. Está na hora do Estado brasileiro assumir o seu protagonismo na definição e execução de políticas públicas de Educação, numa perspetiva de Educação Integral e de qualidade, procurando não terceirizar a sua missão institucional educacional para grupos privados que, na busca desenfreada por lucro imediato, acabam envolvidos em escândalos como este.

Depois de muitos avanços na Educação brasileira consubstanciados na Constituição de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional de 1996 e nas diversas reformas educacionais progressistas dos governos Lula e Dilma, com a criação do Fundo Nacional de Manutenção da Educação Básica e Valorização do Magistério (Fundeb), do ensino fundamental de nove anos, do piso salarial dos profissionais da Educação, com a criação de 23 novas universidades federais, de mais de 400 campi de institutos federais de educação pelo Brasil e de diretrizes curriculares democráticas e críticas de diferentes níveis e modalidades da Educação, consolidámos no Brasil a conceção de Educação como direito de todos e promotora de uma formação integral, de qualidade, que envolve as Ciências, as Artes, as Humanidades, as linguagens, a Matemática, a cultura corporal e a formação do ser político que vive numa sociedade plural e diversa. Construímos uma prática de Educação para a liberdade, para a crítica, uma educação antirracista e anti-homofóbica, uma educação que preconiza a igualdade de oportunidades e de respeito entre homens e mulheres.

A fundação Lemann, e outras ligadas ao grande empresariado, tem-se vindo a desenvolver como uma potente agregadora de pessoas que defendem uma educação rebaixada, apenas voltada para o “mercado”, adestradora de mão de obra, que engendrou o “Novo Ensino Médio”, que substitui a Sociologia, a Filosofia, a História e a Geografia por conteúdos superficiais e ideológicos de empreendedorismo e educação sócio-emocional, planos de vida e outras do género. Trata-se de uma estratégia bem definida que segue a proposta de reforma empresarial da Educação, implementada nos Estados Unidos, com repercussões deletérias na formação das crianças e jovens daquele país, como bem denunciou Diane Ravitch, ex-coordenadora dessa reforma nos governos neoliberais americanos, no seu livro Vida e Morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a Educação.

A Fundação Lemann e outras são expressão de um capital que tem estratégia para se manter hegemónico no mercado e se importa com a disputa de hegemonia na Educação formal. Disputa corações e mentes na formação de uma cultura e simultaneamente lucra com terceirização de escolas públicas, vendas bilionárias de sistemas de Educação, de consultorias e formação de docentes para preparar os alunos para serem adestrados a serem bem sucedidos em testes que limitam o leque da formação.


João Marcelo Pitiá Barreto é professor da UFBA.

Penildon Silva Filho é professor da UFBA.

Texto publicado originalmente na Jacobin Brasil. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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