França: Há razões para tanta "Macronsturbação"?

17 de junho 2017 - 16:43

Este domingo realiza-se a segunda volta das legislativas francesas, uma semana após os candidatos do partido do novo presidente Macron terem alcançado grande vantagem. Jorge Martins faz a análise dos resultados da primeira volta.

porJorge Martins

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Foto En Marche/Instagram

A primeira parte das eleições legislativas francesas decorreu no passado domingo, com a realização do 1º turno. Este domingo, dia 18, decorrerá a 2ª e decisiva volta deste ato eleitoral, que decorre pouco mais de um mês após a eleição de Emmanuel Macron como novo presidente do país.

Como explicámos aqui, a 5ª República francesa é teoricamente, um sistema semipresidencial. Porém, não tanto pelo texto constitucional, mas pela prática assumida pelo seu fundador, o general De Gaulle, e continuada por todos os seus sucessores (tanto da direita como do PS), a componente presidencial prima, claramente, sobre a parlamentar.
Por isso, não são de estranhar os dois dados mais relevantes da 1ª volta destas legislativas.

O primeiro refere-se à elevadíssima abstenção verificada, que atingiu uns impensáveis 51,3% dos eleitores inscritos. Pelas razões acima citadas, a afluência às urnas é sempre maior nas eleições presidenciais que nas parlamentares, pois, sendo a presidência o principal centro de poder, os eleitores tendem a encarar as primeiras como mais decisivas, remetendo as segundas para plano secundário.

O segundo relaciona-se com os resultados, que deram ao recém-formado partido do novo PR, o REM (La République En Marche), de tendência liberal, e aos seus aliados centristas do MoDem (Mouvement Démocratique), do ministro da Justiça, François Bayrou, uma grande vantagem sobre as restantes formações partidárias.

Tal como também previra aqui, quando traçava os futuros cenários resultantes de um hipotético triunfo de cada um dos quatro mais importantes candidatos presidenciais, descrevia, assim, as consequências político-institucionais de uma vitória de Macron:

“Resta saber qual a sua estratégia para as legislativas. O seu movimento, designado por “En Marche” (EM), é, para já, um proto partido. Mas, em caso de triunfo nas presidenciais, é muito provável que Macron o utilize para obter uma maioria governativa na Assembleia Nacional, cavalgando a dinâmica de vitória das presidenciais”. Na “mouche”!...

Na 5ª República, sempre que um presidente convocou legislativas após as presidenciais, o seu partido triunfou de forma clara. Ou seja, no início do mandato, os franceses tendem a passar ao novo chefe de Estado uma espécie de “cheque em branco”. O contrário apenas sucede quando o sufrágio parlamentar ocorre a meio daquele e o governo e/ou o presidente são altamente impopulares.

Na verdade, nada que não fosse previsível. Na 5ª República, sempre que um presidente convocou legislativas após as presidenciais, o seu partido triunfou de forma clara. Ou seja, no início do mandato, os franceses tendem a passar ao novo chefe de Estado uma espécie de “cheque em branco”. O contrário apenas sucede quando o sufrágio parlamentar ocorre a meio daquele e o governo e/ou o presidente são altamente impopulares. Só aí a oposição tem esperanças de triunfar e forçar uma coabitação com o chefe do Estado. Foi o que aconteceu no final dos dois mandatos de Mitterrand (entre 1986 e 1988, com Chirac a primeiro-ministro e entre 1993 e 1995, com Edouard Balladur à frente do governo) e no do primeiro de Chirac (entre 1997 e 2002, com Jospin na chefia do executivo). Recorde-se que, até então, o mandato presidencial era de sete anos e não de cinco, como passou a suceder a partir de 2002.

Apesar de tudo, no contexto atual, Macron e a coligação que o apoia são escandalosamente beneficiados pelo sistema maioritário a duas voltas, que vigora em França. Neste, os 577 deputados da Assembleia Nacional são eleitos em círculos uninominais. Para obter o lugar a que concorre logo na 1ª volta, o candidato tem de conseguir mais de 50% dos votos válidos e que estes representem um mínimo de 25% de todo o eleitorado inscrito nessa circunscrição. Se nenhum conseguir satisfazer essas condições, então, haverá lugar à realização de uma 2ª volta, uma semana depois, à qual poderão concorrer aqueles que tenham obtido uma percentagem de votos correspondente a 12,5% dos inscritos nesse círculo. Isto significa que, no 2º turno, poderão estar mais de dois candidatos: na gíria política francesa fala-se de triangulares (quando há três qualificados) ou quadrangulares (no caso raro de haver quatro). Caso só uma ou nenhuma candidatura satisfaça esta última condição, avançam para a 2ª volta as duas mais votadas no 1º turno. Independentemente do número de candidatos presentes na ronda decisiva, nesta é eleito aquele que obtiver a maioria simples dos votos.

Uma das consequências desse quadro legal é o facto de os níveis de abstenção (bem como os votos brancos e nulos, que não contam para a percentagem de votos expressos) em cada círculo condicionarem quer o número de deputados eleitos na 1ª volta, quer o número de partidos que pode disputar o 2º turno. Suponhamos que, numa dada circunscrição, a soma percentual de abstenções e boletins não validamente expressos era semelhante à média nacional das presidenciais deste ano: 24,2%; nesse caso, uma candidatura que obtivesse 16,5% de votos válidos atingiria os 12,5% dos inscritos e passaria à 2ª volta. Imaginemos, em contraponto, outra em que os valores do abstencionismo mais boletins em branco ou não inválidos atingissem os 52,4%, como sucedeu, nestas legislativas, no todo nacional; aí, só 26,3% dos sufrágios válidos lhe permitiriam aceder à ronda final. Igualmente, se, num dado círculo, o conjunto de abstenções e votos não válidos é inferior a 50%, qualquer candidato que obtenha mais de metade dos votos válidos é eleito. Se isso não suceder, tal nem sempre sucede: com os valores do segundo exemplo acima, só seria eleito um concorrente que atingisse 52,5% dos votos validamente expressos.

Daí que, enquanto em 2012, com uma taxa de abstenção pouco superior a 40%, houve 36 lugares atribuídos logo à 1ª volta, agora ainda só houve quatro: dois à REM (um no centro de Paris e outro em Morbihan, na Bretanha), outro à UDI (no Somme, nos Altos de França, no Nordeste) e um terceiro a DVG (Divers Gauche), no pequeno território ultramarino de Wallis e Futuna, no Pacífico.

O mesmo podemos dizer relativamente às triangulares. Desta vez, apenas na 1ª circunscrição do departamento de Aube haverá uma, opondo o REM, o LR e a FN.

Então, o que favorece a coligação “macronista” neste sistema?

Tal como no sistema maioritário a uma volta (FPTP), cujos efeitos explico aqui, também no sistema a duas voltas é frequente a composição do parlamento e a respetiva evolução de uma eleição para outra pouco ou nada terem a ver com os resultados nacionais. E, a exemplo do anterior, favorece, igualmente, os maiores partidos e as forças políticas que possuem o seu eleitorado territorialmente concentrado. Contudo, este último, se tem essas mesmas consequências, apresenta outras nuances. Desde logo, estimula a realização de acordos entre diferentes formações partidárias, em geral ideologicamente próximas, quer à partida, quer entre as duas voltas da eleição. Estes entendimentos podem assumir a forma de verdadeiras coligações pré-eleitorais: nesse caso, os envolvidos acordam em apresentar apenas um candidato na 1ª volta em todas as circunscrições, deixando o partido de maior dimensão alguns lugares para o(s) mais pequeno(s), que, assim, pode(m) aceder a uma representação parlamentar que, de outra forma, lhe(s) estaria quase vedada. Podem, ainda, ser parciais, abrangendo unicamente um número limitado de círculos, normalmente aqueles onde se prevê uma luta mais renhida com o outro campo ideológico. Noutros casos, podem passar por desistências mútuas na 2ª volta, de forma a assegurar a unidade da área política a que ambas pertencem e a garantir que a percentagem de lugares acordados entre os partidos seja respeitada. Sucede, por vezes, em caso de realização de triangulares.

Na 1ª volta, os eleitores de um e de outro lado votariam no partido da sua simpatia e, no 2º turno, decidir-se-iam pela força política do seu campo político que se tivesse qualificado para o disputar. Logo, o sistema favorece os partidos mais ao centro, que possuem maior capacidade de estabelecer acordos com outras forças políticas, e desfavorece as formações que se situam nas margens.

Acontece que este sistema pressupõe que a política partidária gire entre dois grandes polos: um à direita e outro à esquerda. Assim, na 1ª volta, os eleitores de um e de outro lado votariam no partido da sua simpatia e, no 2º turno, decidir-se-iam pela força política do seu campo político que se tivesse qualificado para o disputar. Logo, o sistema favorece os partidos mais ao centro, que possuem maior capacidade de estabelecer acordos com outras forças políticas, e desfavorece as formações que se situam nas margens.

É isso que explica que a FN, apesar de apresentar, consistentemente, resultados entre os 12 e os 15% dos votos, não consiga eleger mais de um ou dois dos 577 deputados: por um lado, nenhum dos grandes partidos se quer coligar com ela (pelo contrário, tendem a coligar-se contra ela na 2ª volta); por outro, porque tem o seu eleitorado relativamente disperso, embora com maior implantação em áreas rurais e industriais deprimidas. Ou, mesmo, que a esquerda (seja a FG ou a FI), com valores eleitorais entre os 6 e os 12%, não passe dos 10 ou 15 lugares e, mesmo assim, porque tem menos anticorpos que a extrema-direita e o eleitorado mais concentrado em algumas áreas suburbanas das grandes metrópoles. Ao invés, partidos mais pequenos como a UDI (Union Démocratique Indépendente, centro-direita), tradicional aliada dos LR, e o pequeno PRG (Parti des Radicaux de Gauche, centro-esquerda) ou a EELV (Europe Écologie Les Verts, ecologista), alinhados com o PS, conseguem representações parlamentares próximas ou, por vezes, ao nível ou até acima da sua verdadeira expressão eleitoral, devido à sua capacidade de se entenderem com as formações maioritárias.

A mecânica do sistema funciona, igualmente, para produzir maiorias absolutas, ora do centro-direita, ora do centro-esquerda. O problema é quando surgem atores que não seguem o guião previsto. Assim, a emergência da FN, nos anos 80, bem como o seu crescimento eleitoral, na década seguinte, criaram uma forte perturbação neste. Então, ao invés dos habituais confrontos centro-direita/direita vs. centro-esquerda/esquerda, passámos a ter, em cada vez mais circunscrições, duelos triangulares entre centro-esquerda/esquerda, centro-direita/direita e extrema-direita ou centro-esquerda/esquerda vs. extrema-direita ou centro-direita/direita vs. extrema-direita. Aí, constituía-se uma chamada “frente republicana” ou “barragem” contra a FN: retirando o candidato pior colocado em favor do opositor em melhor posição para derrotar a extrema-direita (no caso das triangulares) e, em qualquer caso, apelando ao voto de todos contra no candidato que defrontasse o partido de Le Pen (fosse ele de direita, centro, centro-esquerda ou esquerda).

Ora, agora que os dois maiores partidos do sistema deixaram de ser primordiais e, em seu lugar, surgiu uma grande força centrista, esta tenderá a obter uma representação esmagadora e desproporcionada na Assembleia Nacional. Como referi, no seguimento da prosa acima sublinhada, “o posicionamento centrista do seu partido [de Macron] beneficia muito no sistema maioritário a duas voltas: no 2º turno, os seus candidatos beneficiarão do voto do centro-esquerda e de parte da esquerda contra a direita ou a extrema-direita e do centro-direita contra o centro-esquerda ou a esquerda”.

Claro que existem outras explicações para este desfecho eleitoral e que radica nas sequelas que as presidenciais deixaram nas diferentes formações políticas concorrentes às legislativas. Assim, enquanto os apoiantes do novo presidente viram na sua eleição razões para se entusiasmarem, o contrário sucedeu com os que suportam outros partidos. Como se pode ver no quadro 1, em que comparamos as votações dos dois atos eleitorais, enquanto só 22% dos votantes em Macron não votaram de forma válida, a maioria dos restantes eleitorados foi “picado pelo vírus” do abstencionismo: 33% de Fillon (mais idoso e, por isso, um pouco menos afetado), 44% de Hamon e de Mélenchon, 53% de Marine Le Pen, 55% de Dupont-Aignan e, igualmente, mais de 50% dos concorrentes menos votados. Ou seja, os adeptos do PR foram os únicos que, verdadeiramente, se mobilizaram para estas legislativas e disso colheram os frutos.

De referir que, para além dos 51,3% de abstenções, houve ainda 1.1% de votos brancos e nulos, pelo que a média de votos validamente expressos, a nível nacional, se quedou por uns modestíssimos 47,6%.

Analisemos, agora, o desempenho eleitoral das várias forças políticas concorrentes na 1ª volta.

A coligação “macronista” obteve 32,3% dos votos, correspondendo a 28,2% para o REM e 4,1% para o MoDem. Com uma mobilização maior que os restantes eleitorados, conseguiu obter o voto de cerca de 2/3 dos que nele votaram na 1ª volta das presidenciais. A eleição presidencial e o facto de se ter apresentado como algo de novo (por exemplo, cerca de metade dos candidatos nunca tinham exercido cargos políticos) convenceu muitos de que se estaria em presença de uma verdadeira renovação do sistema. Apesar de ter sido, claramente, o bloco eleitoral mais votado, o certo é que a percentagem de votos obtida pelo conjunto das duas formações é exatamente a que o PS português obteve nas legislativas nacionais de 2015. Ou seja, nada de extraordinário. Porém, o sistema eleitoral pode permitir-lhe o domínio quase total da Assembleia Nacional. Olhando para o quadro 3, vemos que o REM se apresenta, na 2ª volta, em 455 circunscrições e o MoDem em 61 (das quais, 397 e 52 em primeiro lugar, respetivamente). E, na maioria destas, com maiorias esmagadoras. Logo, só se houvesse uma grande mobilização dos seus adversários e/ou estes, à exceção da FN, acordassem em barragens anti-“macronistas”, seria possível evitar esse cenário. Porém, qualquer dessas condições parece bastante improvável de acontecer. Mas, mesmo que viesse a verificar-se, Macron teria sempre a maioria absoluta no “bolso”: As previsões atribuem-lhe entre 350 e 450 dos 577 lugares.

Na segunda posição, ficou a coligação entre o LR (Les Républicans) e a UDI. Depois da inesperada escolha de Fillon como candidato presidencial, que dividiu o principal partido da direita clássica, e subsequente fracasso da sua candidatura, afogada no escândalo dos empregos fictícios da sua mulher e filhos como assessores parlamentares, o partido entrou em ebulição. Entretanto, alguns dirigentes, como o ex-ministro da agricultura, Bruno Le Maire, e o atual primeiro-ministro, Edouard Philippe, passaram-se para as hostes “macronistas”. Não terá sido por acaso que REM e MoDem foram buscar cerca de 1/7 dos votantes de Fillon. Tentando fazer o controlo dos danos, o diretor da campanha do partido para as legislativas, François Baroin, declarou-se disponível para, em caso de triunfo dos republicanos, se tornar primeiro-ministro de Macron, algo que este, de forma pronta e com alguma rudeza, rejeitou. A escolha de um chefe de governo proveniente do LR foi um golpe para o partido e os resultados eleitorais provam-no: para além de 1/3 que fugiu para a abstenção, menos de metade dos eleitores de Fillon votaram no LR e nos seus aliados da UDI. No conjunto do país, ficaram-se pelos 18,8% (15,8% para os primeiros e 3,0% para os segundos). Com boa vontade, podemos somar-lhes os 2,8% de diversos pequenos partidos e candidatos de direita, o que subiria o resultado para 21,6%. Mesmo assim, o pior de sempre para o centro-direita desde a criação da 5ª República. Apesar de tudo, a UDI já elegeu um deputado à primeira, enquanto o LR está presente, na 2ª volta, em 266 circunscrições e a UDI em 35, embora apenas em 59 (48 o primeiro e 11 o segundo) tenham sido os mais votados. Se não conseguirem eleger, no mínimo, uma centena de deputados, a crise acentuar-se-á.

Apesar deste resultado menos bom, a Frente Nacional consegue ter, ainda, 123 candidatos na 2ª volta, dos quais 20 foram os mais votados no 1º turno. Contudo, não deverá obter mais de quatro ou cinco lugares na Assembleia Nacional, uma das quais deverá ser Marine Le Pen, em boa posição para ser eleita na 11ª circunscrição do Pas-de-Calais.

Por seu turno, a Frente Nacional (FN, extrema-direita), que apostou tudo num grande resultado da sua líder nas presidenciais, sofreu uma grande desilusão com o desfecho final. Com efeito, apesar de constituir o melhor desempenho eleitoral do partido num sufrágio nacional, ficou muito aquém das expectativas criadas. Como essa votação foi, em muito, consequência da má prestação de Le Pen no debate com Macron, aquela viu algumas “facas afiarem-se” na sua direção. Aí se destacou a sua sobrinha, Marion Maréchal-Le Pen, que decidiu fazer uma “travessia no deserto” e não se recandidatou a deputada. Mas também o vice-presidente Florian Philippou dá sinais de mal-estar face a críticas internas à sua estratégia política. Tudo isto acabou por desmobilizar a maioria do eleitorado “lepenista”, até aí bastante fiel. Assim, apenas 35% dos que optaram por ela na 1ª volta das presidenciais votaram, agora, na FN, tendo mais de metade fugido para a abstenção. Com 13,2% dos votos válidos, o partido registou, mesmo, uma ligeira quebra face às anteriores legislativas, quando obteve 13,6%. Apesar deste resultado menos bom, a Frente Nacional consegue ter, ainda, 123 candidatos na 2ª volta, dos quais 20 foram os mais votados no 1º turno. Contudo, não deverá obter mais de quatro ou cinco lugares na Assembleia Nacional, uma das quais deverá ser Marine Le Pen, em boa posição para ser eleita na 11ª circunscrição do Pas-de-Calais.

Entretanto, a FI (France Insoumise, esquerda) também ficou longe do que prometia o excelente resultado de Mélenchon na 1ª volta das presidenciais. A sua polémica decisão de não dar indicação explícita de voto em Macron na 2ª volta para barrar Le Pen não terá sido compreendida por muitos dos seus eleitores. Por outro lado, a falta de acordo entre a FI e o partido comunista (PCF) a nível nacional, para além de dividir os votos da esquerda em algumas circunscrições, fragilizou a candidatura e esmoreceu o entusiasmo dos seus apoiantes. Assim, a FI ficou-se pelos 11,0%, desfecho que, apesar de dececionante face às expectativas, revela uma forte subida relativamente às últimas legislativas, quando a FG (Front de Gauche, que incluía o PCF) se ficou pelos 7,0%. Dos que nele votaram nas legislativas, para além dos 44% que se abstiveram ou votaram em branco ou nulo, menos de 1/3 terá votado na FI, enquanto perto de 15% terá ido para os socialistas, ecologistas e outros partidos de esquerda e cerca de 6,5% para os comunistas. No que se refere à possibilidade de eleição de deputados, as perspetivas não são animadoras: apesar de a França Insubmissa estar, ainda, em 64 circunscrições na 2ª volta, apenas parte à frente em três delas, uma das quais a 4ª de Bouches-du-Rhône (em Marselha), onde Mélenchon tem boas hipóteses de ser eleito. E, face a candidaturas do “centrão”, não será fácil à FI arrebatar os 15 lugares necessários para conseguir um grupo parlamentar sem o apoio do PCF ou de outros pequenos partidos de esquerda.

A coligação PS-PRG ficou-se pelos 7,9% (7,4% para os socialistas e 0,5% para os seus parceiros), o pior resultado desde a sua refundação, em 1971. Dos eleitores de Hamon, apenas cerca de 40% votaram no partido da “rosa”.

Por sua vez, o PS (centro-esquerda), até aqui o outro dos dois maiores partidos do sistema, desde há muito que vive uma crise profunda, causada pela deceção que foi a presidência de François Hollande, tão impopular que nem tentou a reeleição, algo de inédito nos anais da 5ª República. A escolha de Benoît Hamon, da ala esquerda do partido, levou o derrotado, o ex-primeiro-ministro Manuel Valls, da ala direita, e muitos dos seus próximos a declarar o seu apoio a Macron. Com o partido totalmente fraturado, Hamon teve um péssimo resultado e a campanha das legislativas não se afigurava nada fácil. Entretanto, vários ex-parlamentares, como Richard Ferrand e Christophe Castagner, acabaram por aderir ao REM e tornaram-se ministros do governo de Edouard Philippe. E muitos dos seus militantes e dirigentes vão sendo seduzidos pelo “macronismo” triunfante. Os resultados confirmaram as piores perspetivas: a coligação PS-PRG ficou-se pelos 7,9% (7,4% para os socialistas e 0,5% para os seus parceiros), o pior resultado desde a sua refundação, em 1971. Dos eleitores de Hamon, apenas cerca de 40% votaram no partido da “rosa”. Mesmo somando 1,6% de diversas pequenas formações de esquerda (e muitas estarão, porventura, mais próximas da FI ou do PCF que do PS), este e seus aliados quedam-se por uns modestos 9,5%. Consequentemente, várias figuras do PS foram eliminadas logo no 1º turno, como o próprio Benoît Hamon, o primeiro-secretário, Jean-Christiphe Cambadélis, e alguns ex-ministros de Hollande (como Aurélie Filippetti) e Jospin (destaque para Élisabeth Guigou) foram eliminados logo na 1ª volta. Daí que as perspetivas de eleição de deputados sejam pouco animadoras: o PS está na liça apenas em 65 circunscrições (das quais apenas 12 em primeiro lugar) e o PRG em cinco, estando à frente unicamente em duas delas.

Para os seus habituais aliados da EELV e outros pequenos grupos ecologistas, os resultados foram catastróficos. No que respeita à votação, o primeiro ficou-se pelos 3,4% e os segundos não somaram mais que 0,9%. Tendo apoiado Hamon, a EELV apenas recebeu votos de 7,5% dos que nele votaram. Pior: apenas dois candidatos passaram à 2ª volta, um deles em primeiro lugar. Logo, arriscam-se a ficar sem representação parlamentar. A cisão ocorrida quando o partido decidiu abandonar a maioria presidencial de Hollande, o apoio de alguns dos dissidentes a Macron (como François de Rugy) e de outras personalidades do partido a Mélenchon (Sergio Coronado) mostram profundas divisões e uma falta de rumo que podem levar ao fim do partido e a uma recomposição no seio do campo ecologista.

Por seu lado, o Partido Comunista Francês, que já foi um dos maiores partidos de França, é hoje uma sombra de outrora, mesmo considerando que já “bateu no fundo” e recuperou alguma influência. Optando por concorrer sozinho e apenas em alguns círculos eleitorais, após rejeitar a exigência de Mélenchon de integrar o grupo parlamentar da FI e obedecer à mesma disciplina de voto, ficou-se por uns modestos 2,7% dos votos válidos. Contudo, como tem um eleitorado mais concentrado, está em boa posição para eleger tantos ou mais deputados que a FI: estará presente, na 2ª volta, em 11 circunscrições, tendo passado em primeiro lugar em cinco delas. E poderá, assim, continuar a ser essencial para a esquerda constituir um grupo na Assembleia Nacional.

Também o DLF (Debout La France, direita nacionalista) não confirmou o bom desempenho de Dupont-Aignan nas presidenciais. Apenas 10% do seu eleitorado de então votou no seu partido, que, com 1,2% dos sufrágios válidos, tem apenas a possibilidade de reeleger o seu líder em Essone. E, pelos resultados da 1ª volta, mesmo esse objetivo mínimo não está fácil de atingir. O apoio do então candidato presidencial a Le Pen provocou grande controvérsia no interior do partido e não foi seguido por muitos dos seus eleitores. O seu líder pretendia estabelecer vários acordos com a FN, mas não encontrou apoios no seio da DLF para os aprovar. Se Dupont-Aignan não for eleito, não passará de um partido menor, mais um da amálgama “diversos de direita”.

Entretanto, além dos dois da FN, a extrema-direita tinha um terceiro deputado na Assembleia Nacional cessante: Jacques Bompard, líder da Liga do Sul (LdS). Na 1ª volta, ficou na segunda posição e arrisca-se a perder o lugar.

Outro facto a merecer algum destaque foram os bons resultados dos nacionalistas na Córsega. Estes conseguiram passar à 2ª volta em três das quatro circunscrições daquela região autónoma insular e só falharam a passagem na outra por 13 votos. Aí, não parece existir a alegada “macromania” de outras áreas do país.

Resta saber o que acontecerá amanhã. Ao contrário do que é habitual, é difícil prever o que sucederá na maioria dos círculos eleitorais. Para já, REM-MoDem, LR-UDI, PS-PRG e EELV acordaram em fazer “barragem” contra a FN. Para além disso, haverá apoios mútuos entre FI e PCF e entre PS-PRG e EELV. Porém, nos outros casos, tudo indica que as indicações de voto serão dadas caso a caso, tendo em conta as candidaturas em presença em cada circunscrição. Por exemplo, Mélenchon manifestou o seu apoio aos candidatos do PS que tenham votado contra a lei do trabalho de Macron, que pôs em causa os direitos laborais em França, mas não apoiará os que tenham simpatia pelo atual presidente.

Daí que várias questões se possam colocar: no contexto em que se desenrolam estas eleições faz sentido fazer barragens contra a FN, quando esta tem poucas hipóteses de eleger deputados? Ou, excetuando se estes concorressem contra a extrema-direita, situação em que seria aconselhável a abstenção, voto branco ou nulo, não seria preferível tentar barrar Macron, votando contra os seus candidatos para evitar uma supermaioria sempre perniciosa para o funcionamento das instituições democráticas? Ou, como sublinha Mélenchon, a FN não é alternativa a nada e entre “macronistas”, republicanos e social-liberais do PS pouca diferença há e “venha o diabo e escolha”?

Como demonstrámos acima, não são os votos, mas sim o sistema maioritário que dá essa esmagadora maioria à coligação centrista REM-MoDem. Por isso, há que desconstruir a narrativa da comunicação social “mainstream” e seus comentadores encartados de que existe em França uma verdadeira “macromania”. Na verdade, o que se verifica é uma verdadeira “macronsturbação” por parte dos defensores do atual capitalismo neoliberal, que julgam ter descoberto o extremo-centro. Ou seja, face ao desgaste da alternância entre o centro-direita e o centro-esquerda, procura criar-se uma espécie de “união nacional centrista”, com base na ideologia do “pensamento único” (ou, na versão anglo-saxónica, no acrónimo TINA). Mas o certo é que o “macronismo” é um movimento heterogéneo e, por isso, frágil. Amanhã, deverá saborear a sua esmagadora vitória. O pior virá a seguir!...

Quadro 1:

MATRIZ DE TRANSFERÊNCIA DE VOTOS ENTRE AS PRESIDENCIAIS E AS LEGISLATIVAS (em % de votos de cada candidato presidencial)

 

Macron

Le Pen

Fillon

Mélenchon

Hamon

D.-Aignan

Lassalle

Poutou

Asselineau

Arthaud

Cheminade

B+N+Abst

EXD

0,0

0,6

0,1

0,0

0,0

0,1

0,1

0,0

0,2

0,0

0,1

0,1

FN

0,1

35,0

0,4

0,2

0,1

12,0

1,0

0,1

3,3

0,1

1,0

0,3

DLF

0,1

0,4

0,3

0,1

0,1

10,0

0,2

0,1

3,0

0,1

1,0

0,1

DVD

0,5

1,5

2,6

0,1

0,3

5,5

0,7

0,1

29,2

0,1

2,0

0,6

LR-UDI

2,0

4,0

47,5

0,1

0,2

11,5

1,0

0,1

3,0

0,1

11,5

1,0

DIV

2,0

1,0

1,0

0,5

0,5

1,4

12,5

0,3

2,0

0,2

22,0

0,3

REM-MDM

66,2

2,7

14,2

0,8

2,0

3,2

18,0

0,1

1,0

0,1

12,0

1,0

ECO

0,8

0,1

0,1

1,0

0,5

0,1

4,2

0,2

0,1

0,1

0,0

0,1

REG

0,3

0,2

0,2

1,5

0,2

0,0

0,5

0,2

0,0

0,1

0,0

0,3

PS-PRG

2,0

0,1

0,2

8,0

39,0

0,3

2,8

1,0

0,1

1,0

1,0

1,0

EELV

3,0

0,2

0,1

3,5

7,5

0,2

1,7

0,8

0,2

0,3

0,0

0,5

DVG

0,8

0,2

0,1

2,0

1,0

0,1

0,2

5,0

0,2

5,8

2,0

0,6

PCF

0,1

0,2

0,1

6,5

1,4

0,2

0,8

8,0

0,3

8,0

2,0

0,3

FI

0,1

0,3

0,1

31,5

3,0

0,2

0,2

23,5

0,2

17,5

0,3

0,2

EXG

0,0

0,5

0,0

0,2

0,2

0,2

0,1

12,5

0,2

22,5

0,1

0,1

B+N+Abst

22,0

53,0

33,0

44,0

44,0

55,0

56,0

48,0

57,0

44,0

45,0

93,5

TOTAL

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

 

Quadro 2:

MATRIZ DE TRANSFERÊNCIA DE VOTOS ENTRE AS PRESIDENCIAIS E AS LEGISLATIVAS (em % de votos)

 

Macron

Le Pen

Fillon

Mélenchon

Hamon

D.-Aignan

Lassalle

Poutou

Asselineau

Arthaud

Cheminade

B+N+Abst.

TOTAL

FINAL

EXD

0,0

0,1

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,1

0,3

FN

0,0

5,6

0,1

0,0

0,0

0,4

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,1

6,3

13,2

DLF

0,0

0,1

0,0

0,0

0,0

0,4

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,6

1,2

DVD

0,1

0,2

0,4

0,0

0,0

0,2

0,0

0,0

0,2

0,0

0,0

0,1

1,3

2,8

LR-UDI

0,4

0,6

7,2

0,0

0,0

0,4

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,2

9,0

18,8

DIV

0,4

0,2

0,2

0,1

0,0

0,1

0,1

0,0

0,0

0,0

0,0

0,1

1,1

2,2

REM-MDM

12,0

0,4

2,2

0,1

0,1

0,1

0,2

0,0

0,0

0,0

0,0

0,2

15,4

32,3

ECO

0,1

0,0

0,0

0,1

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,4

0,9

REG

0,1

0,0

0,0

0,2

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,1

0,4

0,9

PS-PRG

0,4

0,0

0,0

1,2

1,9

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,2

3,8

7,9

EELV

0,5

0,0

0,0

0,5

0,4

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,1

1,6

3,4

DVG

0,1

0,0

0,0

0,3

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,1

0,8

1,6

PCF

0,0

0,0

0,0

1,0

0,1

0,0

0,0

0,1

0,0

0,0

0,0

0,1

1,3

2,7

FI

0,0

0,0

0,0

4,7

0,1

0,0

0,0

0,2

0,0

0,1

0,0

0,0

5,3

11,0

EXG

0,0

0,1

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,1

0,0

0,1

0,0

0,0

0,4

0,8

B+N+Abst

4,0

8,5

5,0

6,6

2,1

2,0

0,5

0,4

0,4

0,2

0,0

22,6

52,4

 

TOTAL

18,2

16,1

15,2

14,9

4,8

3,6

0,9

0,8

0,7

0,5

0,1

24,2

100,0

100,00

 

Quadro 3:

 

REM

MDM

LR

UDI

FN

FI

PS

PRG

EELV

PCF

DLF

DVD

DVG

DIV

REG

EXD

TOT

ELS.

1ª V.

FPTP

REM

0

0

175,5

17

84,5

57

42

1

1

4

1

8

3

1

1

1

397

2

399

MDM

0

0

29

5

6

1

8

0

0

1

0

1

1

0

0

0

52

0

52

LR

26

5

0

0

6

0

2

1

0

0

0

2

2

2

2

0

48

0

48

UDI

7

0

0

0

3

0

0

0

0

0

0

1

0

0

0

0

11

1

12

FN

11

4

1

0

0

1

1

0

0

1

0

0

1

0

0

0

20

0

20

FI

3

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

3

0

3

PS

2

0

5

1

0

1

0

0

0

0

0

2

0

1

0

0

12

0

12

PRG

0

0

1

0

1

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

2

0

2

EELV

0

0

1

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

1

0

1

PCF

4

0

0 

0

1

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

5

0

5

DLF

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

DVD

1

0

0

0

1

0

0

0

0

0

0

2

0

1

1

0

6

0

6

DVG

3

0

1

0

0

1

0

0

0

0

0

0

2

1

1

0

9

1

10

DIV

0

0

2

0

0

0

0

1

0

0

0

0

0

0

0

0

3

0

3

REG

1

0

2

1

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

4

0

4

EXD

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

TOT

58

9

217,5

24

102,5

61

53

3

1

6

1

16

9

6

5

1

573

4

577

 

Notas:

1). Os valores das linhas representam o número de circunscrições em que essa força política foi a mais votada na 1ª volta; os das colunas, aqueles onde foi a 2ª mais votada. Logo, o número de circunscrições em que cada uma estará presente na 2ª volta é o resultado da soma desses dos valores das linhas e das colunas (ex: REM = 397+58=455), com arredondamento à unidade superior.

2). REM e MoDem, LR e UDI, PS e PRG concorreram em coligação, não tendo apresentado candidatos uns contra os outros. Por seu turno, FN e DLF, FI e PCF, PS-PRG e EELV estabeleceram acordos pontuais em algumas circunscrições.

3). A extrema-esquerda (designada por EXG), constituída, principalmente, pelo NPA e pela LO, e alguns pequenos grupos ecologistas (ECO) não apuraram qualquer candidato para a 2ª volta.

4). FPTP (Fistr Past The Post) representa o resultado final se estivéssemos em presença de um sistema maioritário a uma volta.

5). Os 0,5 pontos resultam da existência de uma eleição triangular na 1ª circunscrição de Aube. Na 1ª volta, o REM foi o mais votado, seguida de LR e da FN.

 

Jorge Martins
Sobre o/a autor(a)

Jorge Martins

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra