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Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de três peças num volume

"Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar." Por Ana Bárbara Pedrosa.

As peças de teatro A Campanha, O Golpe de Estado e Auto da Família, publicadas no mesmo volume que Diálogos dos Pastores, foram publicadas em 1965, vindo a ser proibidas no mesmo ano. Das quatro, as três primeiras que referimos foram consideradas inconvenientes, mas Diálogos dos Pastores não foi vista como sendo ameaçadora.

Censura de A Campanha (1965)

O relatório de censura da PIDE que faz referência à obra A Campanha, datado de 4 de Setembro de 1965, segundo Cândido de Azevedo (1997), é o mesmo que se refere às outras três peças aqui mencionadas (duas delas censuradas). A parte concernente à peça que tratamos neste ponto diz o seguinte:

Quatro peças teatrais (ou ensaios, ou projectos) três deles inconvenientes.

A primeira, mais do que crítica irónica ou trocista é franca e descaradamente achincalhante das instituições militares e de figuras históricas ou lendárias (em todo o caso dignas de todo o respeito e admiração) como Joana d'Arc, Pénélope, etc.

Por toda a peça são apresentados sob um ângulo de ridículo ou odioso ou chefes militares: generais e coronel. E o final da peça (pg. 38 e 39) é um incitamento à revolta, pelo seu linguajar escatológico e revoltado.

A PIDE refere-se, portanto, ao olhar de paródia sobre as instituições militares e algumas figuras históricas. Contudo, aquilo a que se refere como “linguajar escatológico” não deverá ter sido uma questão de grande importância, já que, para além de não ser determinante na constituição da narrativa e de haver vários livros publicados no decorrer do Estado Novo com o mesmo tipo de linguagem, não fere qualquer aspecto político ou moral. Ao mesmo tempo, será de ressalvar que a PIDE não tenha mencionado aquela que nos pareceria a maior razão para, do seu ponto de vista, justificar a censura da obra: a posição dos próprios militares em relação à guerra. É que esta não apenas denuncia a guerra como um confronto de elites, indiferente aos povos em combate, assim como os povos indiferentes em combate, como mostra que a própria ideia do nacionalismo era uma ideia da elite política do Estado Novo, que servia para forjar Portugal enquanto nação forte e não enquanto constituição de um povo, de um sujeito colectivo cujos sujeitos individuais se faziam das mesmas características, distinguindo-se de outros povos.

Num contexto em que imperava política e socialmente o mote “Deus, Pátria e Família”, esta obra vem sugerir uma realidade em que os próprios militares, forças armadas da pátria, que através deles deve fazer cumprir o seu poder ou os seus intentos, defender-se ou atacar, estão dela desinteressados, deixando cair por terra as teses nacionalistas e os confrontos entre os povos. Esta será, por isso, uma obra que confronta os papéis das elites e dos povos e que mostra que, dentro daquilo que o Estado Novo tentava mostrar como unidade – ou seja, Portugal –, havia ramificações que, ainda que concomitantes, eram contraditórias.

Censura de O Golpe de Estado

O relatório da PIDE sobre este livro que inclui quatro peças refere-se a O Golpe de Estado de forma particularmente breve, dizendo apenas o seguinte:

A segunda pecita, O Golpe de Estado, é de ferina crítica policial e anti-social (notavelmente de p. 63 até ao final).

A razão apontada pela PIDE remete-nos para a obra literária enquanto obra política, com capacidade de reacção ao mundo e, consequente e concomitantemente, de intervenção no mundo. Fiama não se abstinha de usar a literatura como arma política e de intervenção social, constituindo algumas das suas peças exemplos claros de teatro militante, de teatro que olhava para o mundo e nele se imiscuía.

Claro, elementos de crítica social, fossem ou não criações ficcionais, não podiam passar ilesos pela PIDE, como não passava nada que afrontasse ou tivesse no seu cerne a proposta de enfraquecimento do regime – a crítica social era uma forma de fazê-lo e incumbia à PIDE silenciá-la para que a ditadura salazarista pudesse seguir impassível e inescrutável. Assim, a ideia de um golpe de Estado pareceria particularmente revolucionária, já que sugeria que era possível que um chefe de Estado fosse derrubado e que o zelo era devido à Nação e não ao Presidente, contrapondo-se assim os interesses de um país aos interesses ou à imagem da sua figura política e diplomática máxima.

Censura de Auto da Família (1964)

A parte do relatório da PIDE concernente a esta peça dita o seguinte:

Finalmente a quarta: Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar.

Se o censor da PIDE não leu a obra até ao fim, se não entendeu a moral final da história ou se optou por ignorá-la, será impossível saber. Contudo, será possível contestar a visão através da qual determina a censura desta obra: é que a análise falha ao considerar que a peça apresenta Maria e José como dois criminosos quando o que esta faz é atentar no crime social que é haver um mundo desigual que leva a que crianças morram à fome. Aliás, é esta a conclusão das três vizinhas e é claro que é para esta conclusão específica que a peça se encaminha, usando-a como mote final.

O censor da PIDE falha ainda ao pensar nesta peça como uma peça sobre o “Natal de Cristo” e não sobre o quadro social que envolve a família representada. É que, ainda que tendo figuras centrais do cristianismo no seu cerne, a pela estimula o debate de um quadro social de indiferença e superioridade económica, que condena as vidas de quem se encontra na parte inferior da hierarquia monetária, sem conclusão daí tirar que não seja a culpabilização desses que nela se encontram, tendo de optar entre dois caminhos sem saída, nunca pensando no papel que desempenha quem tem as condições materiais necessárias para que desobstruir esses caminhos. Até porque, aqui, não é a família sacra que é representada: é uma família pobre, um menino que é um filho esfomeado e não um deus, uma pertença à sociedade igual a tantas outras, uma família pobre como as outras, social e economicamente espezinhada e obrigada a matar para não deixar morrer.

A peça chama, por isso, a atenção para o que é viver encurralado e para a facilidade com que quem não o faz pode alhear-se das condições miseráveis dos seus dependentes, sempre julgados sob um quadro moral menor, estreito, em que se ignora não só o papel económico e social de cada um dos agentes sociais, mas também as condições materiais que determinam as acções.

Recepção da obra

Publicada em 1965 e proibida pela PIDE em Setembro do mesmo ano, esta obra não viria a contar com edições posteriores. Neste sentido, a proibição da PIDE terá servido, e muito, para conter a sua circulação.

Contudo, a obra reviveu nos palcos. Em 1977, Auto da Família foi a palco, através de um grupo chamado Quase Teatro. Ideia de Jorge Silva Melo, fez parte de um projecto de recuperação de obras teatrais que permaneciam na sombra perante a representação constante de obras-primas e ninguém assinou a encenação, sendo esta de todos os participantes.

Relatório completo

De seguida, transcrevemos o relatório completo sobre as três obras censuradas a que fizemos referência neste ponto, para além de Diálogo dos Pastores. Datado de 4 de Setembro de 1965, segundo Cândido de Azevedo (1997), diz o seguinte:

Quatro peças teatrais (ou ensaios, ou projectos) três deles inconvenientes.

A primeira, mais do que crítica irónica ou trocista é franca e descaradamente achincalhante das instituições militares e de figuras históricas ou lendárias (em todo o caso dignas de todo o respeito e admiração) como Joana d'Arc, Pénélope, etc.

Por toda a peça são apresentados sob um ângulo de ridículo ou odioso ou chefes militares: generais e coronel. E o final da peça (pg. 38 e 39) é um incitamento à revolta, pelo seu linguajar escatológico e revoltado.

A segunda pecita, O Golpe de Estado, é de ferina crítica policial e anti-social (notavelmente de p. 63 até ao final).

A terceira peça, Diálogo dos Pastores é a mais inócua das quatro, pois se trata de uma espécie de auto vicentino, no tom e quanto possível na linguagem e tom irónico de observação crítica de Mestre Gil.

Finalmente a quarta: Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar.

Assim, e pelo menos, por três das suas quatro peças formativas, este livrinho é uma obra inconveniente, política e moralmente, que julgo, portanto, de proibir.

Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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Neste dossier:

As obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE

Nas últimas semanas, estivemos a olhar para a história da censura literária em Portugal, focando-nos nas obras das autoras que a PIDE censurou. Neste dossier, podemos ver análises de todas essas obras - um total de 21, escritas por 9 autoras. Dossier organizado por Ana Bárbara Pedrosa.

Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

No decorrer do Estado Novo, foram censuradas 21 obras de 9 autoras portuguesas. Salta à vista o número reduzido e a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

"Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (...) Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “Minha Senhora de Mim” (1971)

"Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “O delator”

"É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.", pode ler-se num parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de "Quem move as árvores" (1970)

"As relações dialógicas são constantes na obra de Fiama: se em O Testamento vimos que vida e peça se confundem, dialogando, em Quem move as árvores há um paralelismo temporal com alcance no passado, entre a época da monarquia e o Estado Novo. Em nenhum dos casos o povo escolhe, o poder é imposto." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de três peças num volume

"Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Museu”

O tom absurdista da peça dificulta a sua análise, na medida em que, para além de não haver grandes relações dialógicas até nos próprios diálogos, se torna difícil descortinar as intenções da autora. No entanto, são mostrados dois grupos numa relação conflitual, em que um está submisso ao outro, recebendo acriticamente as suas instruções, viabilizando acontecimentos que servem os interesses do segundo. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Testamento”

"A peça de Pais Brandão sugere que não pode haver espectadores na vida, que toda a gente tem de intervir em tudo o que à vida pública diz respeito, e é por isso que peça e vida se confundem, mostrando a autora que em tudo há relações dialógicas". Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O Encoberto”

"Trata-se do desenvolvimento em estilo de 'paródia' de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas, à maneira de 'Natália Correia', com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar", pode ler-se no relatório da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A Pécora”

Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O vinho e a lira”

"Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más.", pode ler-se no parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “O adolescente”

As orelhas da capa do livro faziam propaganda a dois livros proibidos. Assim, a PIDE proibiu também a circulação deste romance. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A comunicação”

Este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. A PIDE considerou que “o estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras” obrigava à “reprovação da peça”, já que a sua “Indispensável sequência” impossibilitava “quaisquer cortes de saneamento”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Falsos preconceitos”

A PIDE considerou que “dada a imoralidade que o livro revela”, “não é de molde a ser autorizada a sua circulação no País”, e isto apesar de a obra ser de tal forma reaccionária que, afinal, se colocaria ao serviço do que o regime apregoava. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria da Glória: a proibição de “A Magrizela”

Nesta obra, não apenas há muitas situações sexuais como há muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Vinte anos de manicómio!”

O romance não foi censurado assim que foi publicado. É que, "como era feito por uma escritora”, os censores da PIDE nunca supuseram “que esta tivesse escrito com tanta realidade”.  O livro tem “um realismo tão cru e descrições de tal basévia e lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Famintos”

A PIDE censurou a obra “Famintos”, de Carmen de Figueiredo, considerando que esta se “refere a uma vida familiar romanceada, com descrição de acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: ephemerajpp.com

Maria Archer: a proibição de "Casa sem pão"

"Casa sem pão" (1957) foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE e deu azo não apenas ao processo mais longo sobre qualquer uma das suas obras, mas também ao processo mais longo que tratamos neste dossier. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: cvc.instituto-camoes.pt

Maria Archer: a proibição de "Ida e volta duma caixa de cigarros"

A PIDE censurou a obra "Ida e volta duma caixa de cigarros", de Maria Archer, considerando que este “não atingiu o alcance moral” e que a autora “compraz-se na volúpia do pormenor sensual”. Por Ana Bárbara Pedrosa.