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A Europa a correr atrás do prejuízo

Apesar do trabalho das sucessivas comissões do Parlamento Europeu, os governos da UE têm impedido as reformas para combater a grande fraude fiscal e proteger os lançadores de alertas. Artigo de Ana Gomes para a revista Esquerda.
Ilustração
Ilustração de Tiago Tavares na revista Esquerda.

Os governos dos países da União Europeia (UE) continuaram, neste ano de 2018, a alimentar a ilusão da “soberania” fiscal, que tem impedido o combate contra o crime financeiro e a evasão e fraude fiscal. Tal “soberania” é mito num mundo globalizado, interdependente e dependente da tecnologia digital. E num mercado interno europeu em que os capitais circulam livremente, à velocidade do premir de um botão num teclado. E por isso a persistente falta de harmonização fiscal e a fraca supervisão financeira na UE continuam a aproveitar à “indústria” perversa que joga com a alternância de jurisdições offshore - muitas na própria UE, sendo a mãe de todas a City de Londres, além de Luxemburgo, Holanda, Malta, etc..). Uma “indústria” que vive de facilitar a evasão fiscal, a corrupção e o branqueamento de capitais a todo o tipo de criminosos, incluindo ao crime organizado.

Contra o bloqueamento dos governos no Conselho (ie. ECOFIN), onde em matéria fiscal vinga ainda a regra da unanimidade, tem o Parlamento Europeu (PE) exigido mudanças profundas e urgentes: desde 2014 estabeleceu as Comissões de inquérito TAX I e II (sobre o escândalo #Luxleaks), PANA (#PanamaPapers) e TAX3 (#Paradise Papers), dissecando a escala e perversidade dos esquemas criminais financeiros e fiscais e propondo medidas concretas contra a impunidade e por transparência e justiça fiscal. As lições a retirar dos escândalos Danske Bank (com 8 mil milhões de euros branqueados) e Cum-Ex (com o Deutsche Bank a facilitar 46 milhões dos mais de 55 mil milhões de euros de receita fiscal não tributada), desvendados em 2018, vão estar refletidos no relatório TAX3 que o PE aprovará ainda nesta legislatura.

Foi graças a esta pressão do PE que a Comissão Europeia (CE) sentiu força e respaldo para desencadear investigações, impor multas pesadíssimas e obrigar governos a recuperar de grandes multinacionais o que lhes tinham deixado poupar em impostos em acordos fiscais secretos. A CE invocou violação das regras de auxílios estatais. E assim em 2018 a Irlanda foi obrigada a recuperar 13 mil milhões de euros só da Apple.

O trabalho nestas sucessivas comissões de investigação sobre crimes financeiros e fiscais permitiu ao PE retirar ensinamentos e a partir deles introduzir mais apertadas e eficazes exigências na legislação europeia, incluindo contra o branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Como relatora-sombra pelo Grupo Socialistas e Democratas na elaboração da 4ª e da 5ª Diretivas Contra o Branqueamento de Capitais e o Financiamento do Terrorismo, fui testemunha (e agente) do salto qualitativo que se operou em 2018: a 5ª Diretiva (que terá de ser transposta pelos Estados Membros até 20 de janeiro de 2020) impõe obrigações reforçadas de identificação e transparência de beneficiários últimos de participações sociais, e de due diligence (DD) por parte de autoridades de supervisão e reguladores, entidades financeiras, bancárias e intermediários (como advogados, notários, contabilistas e agentes imobiliários, etc), reforço quanto a DD de PEPs (pessoas politicamente expostas), além de apontar riscos especiais em freeports, vistos dourados, criptomoedas, etc.

Transparência é chave contra a opacidade de que vivem as jurisdições e esquemas offshore (como a Zona Franca da Madeira - e sim, não me arrependo nada de ter instigado a Comissão Europeia a avançar na investigação em curso). Por isso em 2018, e por pressão do PE, se avançou no reforço da cooperação administrativa entre os Estados Membros, através da troca automática e sistemática de informações entre administrações sobre contas bancárias e outros dados financeiros (Diretiva DAC); e com a imposição a grandes multinacionais (com receitas globais superiores a 750 milhões de euros), da obrigação de publicação de relatórios de contas de forma agregada e país-por-país (Diretiva da Transparência). Estas medidas aumentam o acesso à informação e permitem que se identifiquem mais esquemas de crimes financeiros, fiscais e de corrupção. E, logo, de captura de políticos, de governos e de Estados.

Pois muito continua por fazer e o combate é difícil: as resistências são tremendas.

Por exemplo, os governos no Conselho continuam a arrastar os pés na negociação da diretiva em que o PE está absolutamente empenhado para proteção dos chamados whistleblowers (os lançadores de alertas), daqueles que são muitas vezes a primeira e única fonte de informação que as autoridades têm para desvendar os intrincados esquemas de corrupção e de fraude fiscal e financeira.

Ou veja-se o escandaloso falhanço do Conselho ECOFIN em avançar na reforma do IVA (proposta pela Comissão e considerada premente pelo PE), de forma a impedir a chamada “fraude carrocel” de desviar cerca de 50 mil milhões de euros por ano dos erários nacionais e do orçamento europeu para o crime organizado, incluindo organizações terroristas. Governos useiros e vezeiros em usar o argumento da segurança contra o terrorismo para restringir a privacidade dos cidadãos ou falhar no acolhimento de refugiados e migrantes, não se importam que avultados recursos nacionais e europeus continuem a financiar criminosos, incluindo do Daesh e da Al Qaeda.

Ou atente-se na recusa do ECOFIN de adoptar propostas da CE sobre a MCCCIS (definição comum da matéria colectável no imposto sobre sociedades) ou ao menos, como substituição provisória, o denominado imposto GAFA (de Google, Apple, Facebook, Amazon) sobre as receitas das grandes plataformas digitais. A injustiça fiscal persiste e agrava-se: as famíliase PMEs continuarão a pagar muito mais impostos do que as grandes multinacionais e os gigantes das redes sociais! Só a Google em 2016 poupou16 mil milhões de euros em impostos, transferindo-os para uma “sociedade-écran” nas Bermudas, através dos esquemas significativamente denominados Double Irish e Dutch Sandwich!

A dimensão dos escândalos financeiros desvendados em 2018 demonstra um problema sistémico na União Europeia, inerente à desregulação promovida pelo capitalismo neo--liberal. Assim aumentam exponencialmente as desigualdades, destruindo-se a confiança dos cidadãos nos partidos políticos, governos e instituições. E, consequentemente, na democracia, como atestam os perigosos populismos para aí à solta. Os governos europeus e a UE podem estar sempre a correr atrás do prejuízo nestas matérias. Mas sem o PE a pressioná-los, nem isso aconteceria, nada mudaria, e todos desesperaríamos. O papel do Parlamento Europeu tem sido e deverá continuar a ser determinante neste combate por transparência, regulação financeira e justiça fiscal.

Ana Gomes, ex-eurodeputada do PS

Artigo publicado em fevereiro de 2019 na revista Esquerda

 

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