Esquerda ucraniana luta por um futuro livre de tanques russos e bancos ocidentais

27 de maio 2023 - 12:22

O historiadores Gregory Afinogenov e Denis Pilash são os convidados do programa Democracy Now! desta semana para uma entrevista sobre os últimos acontecimentos na guerra da Ucrânia.

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Estátua com querubins em Kiev
Foto Presidência da Ucrânia/Flickr

À medida que crescem os apelos para o fim da guerra na Ucrânia, uma série de acontecimentos recentes indicam que a guerra pode estar a expandir-se para além das fronteiras da Ucrânia. A Rússia assinou um acordo com a Bielorrússia para começar a instalar armas nucleares tácticas nesse país, e um grupo de combatentes pró-ucranianos da Rússia atacou locais na região russa de Belgorod usando o que parecem ser veículos blindados e Humvees fabricados nos EUA. Este ataque transfronteiriço foi levado a cabo, em parte, pelo Corpo de Voluntários Russos, um grupo que inclui neo-nazis assumidos. Para mais informações, falamos com Gregory Afinogenov, professor de história russa na Universidade de Georgetown, e Denis Pilash, cientista político ucraniano, historiador e membro da organização socialista democrática ucraniana Sotsialnyi Rukh.

NERMEEN SHAIKH: Temos connosco dois convidados. Gregory Afinogenov é professor de história russa na Universidade de Georgetown. O seu artigo recente para a Jacobin tem como título "A paz na Ucrânia não está para breve". Ele junta-se a nós a partir de Stamford, Nova Iorque. E em Kiev, capital da Ucrânia, está Denis Pilash. É um cientista político e historiador ucraniano. É membro da organização socialista democrática ucraniana Sotsialnyi Rukh [Movimento Social] e também editor do Commons: Journal of Social Criticism.

Sejam ambos bem-vindos ao Democracy Now! Denis Pilash, gostaria de começar por si. Está em Kiev, que foi recentemente alvo de uma série de ataques por parte da Rússia. Pode descrever-nos o que se passa no terreno em Kiev?

DENIS PILASH: Olá. Devo começar por dizer que toda a gente que vive na Ucrânia pode testemunhar e sentir a enorme devastação que foi infligida pela invasão russa no nosso país. Na verdade, vivemos aqui há mais de um ano numa situação de constantes alertas de ataques aéreos, bombardeamentos e ataques de mísseis às principais cidades, com cidades inteiras na parte oriental da Ucrânia arrasadas. Bakhmut é a última da lista, se bem que este terrível triturador prossegue desde o Verão passado.

Mas como o exército de invasão não conseguiu completar as suas tarefas, e a resistência ucraniana derrotou os planos russos, a Rússia está a desencadear estes ataques contra a população civil dentro das áreas residenciais, e esta foi também a sua principal estratégia neste Inverno, quando visou especificamente as infra-estruturas civis. Tentaram congelar os ucranianos até à morte, destruindo centrais eléctricas, redes de energia, abastecimento de água, aquecimento, mas acabaram por não conseguir, uma vez que os trabalhadores e engenheiros da Ucrânia quase fizeram milagres ao restaurar as infra-estruturas.

Além disso, a defesa aérea tornou-se mais eficiente, pelo que a maioria dos mísseis e drones russos estão a ser intercetados. Por isso, ao contrário do que se diz em alguns círculos ocidentais, a ajuda militar estrangeira pode salvar vidas civis. Recentemente, porém, estas vagas de ataques com mísseis causaram dezenas de mortes quando atingiram edifícios de apartamentos de vários andares em locais como Uman e Dnipro. Mas, por exemplo, em Kiev, temos quase todos os dias múltiplos ataques aéreos, mas a grande maioria destes mísseis e drones são intercetados, por isso as pessoas habituaram-se a viver sob ataques constantes. Por exemplo, na nossa universidade, já tivemos aulas na cave, em abrigos anti-bombas.

Por isso, torna-se muito assustador, mas faz parte da chamada nova normalidade. E este véu muito fino que esconde a brutalidade da guerra pode ser ultrapassado quando se abre o feed de notícias das redes sociais e se vê uma série de obituários. Quase toda a gente tem amigos ou familiares cujas vidas se perderam, e muitos deles são civis.

NERMEEN SHAIKH: Denis, poderia também reagir às últimas notícias, nomeadamente que Prigozhin, o chefe do grupo mercenário Wagner, disse que vão começar a retirar-se de Bakhmut? Disse também que 20.000 dos seus combatentes, dos combatentes de Wagner, tinham sido mortos na batalha pela cidade. E que metade dos 20.000 que foram mortos eram antigos prisioneiros recrutados pelo Wagner. O Denis já afirmou que o Grupo Wagner é como a Blackwater com esteróides. O que quer dizer com isso? De que é que o Grupo Wagner foi responsável?

DENIS PILASH: O Grupo Wagner é provavelmente uma das unidades mais importantes da máquina de guerra russa. E tem o seu grau de autonomia, daí todos estes conflitos com o exército oficial russo e o Ministério da Defesa. Mas, na verdade, tem sido amplamente utilizada pelo regime russo para fazer todo o trabalho sujo, muito sujo, não só na Ucrânia, mas em muitas regiões do mundo, na Síria, em África.

Recentemente, tivemos um apelo de solidariedade com ativistas de diferentes países africanos, do Sudão à África do Sul e às Maurícias. E ficámos a saber muito sobre a presença do Grupo Wagner em África. Na verdade, o Sudão foi o primeiro país a ser alvo dos mercenários Wagner, quando o ditador Omar al-Bashir, agora deposto, os deixou entrar no seu país e, numa forma muito neocolonial ou mesmo clássica do colonialismo do século XIX, começaram a pilhar os recursos naturais, nomeadamente o ouro, do país. E envolveram-se fortemente em todos os conflitos no país. E agora estamos a viver outro conflito no Sudão, onde ambos os lados têm ligações à Rússia e ao Grupo Wagner. E, especificamente, o chefe dos Janjaweed, - que foi responsável pelo genocídio de Darfur e que está agora a travar esta guerra contra outros generais no Sudão, esteve em Moscovo no dia da invasão russa da Ucrânia e garantiu a Putin o seu total apoio. Portanto, este foi apenas o ponto de partida. E, em última análise, o Grupo Wagner tornou-se a espinha dorsal de muitas ditaduras militares em vários países africanos.

Parece, portanto, que são muito cruéis. Incluem pessoas que também provêm da extrema-direita e da supremacia branca. Estão normalmente ligados a muitos crimes de guerra, tanto no Médio Oriente como em África e na Ucrânia. E parece que Prigozhin tenta aproveitar todas as oportunidades, toda a publicidade para tornar a sua presença ainda mais notória, porque quer utilizar este facto numa eventual futura luta pelo poder dentro da Rússia. Assim, parece que ele tenta sublinhar a sua importância tanto na política interna como na política externa da Rússia. E isto torna-o uma figura ainda mais proeminente para muitas pessoas no espaço pós-soviético, que receiam que, mesmo que o regime de Putin desapareça, possa ser substituído por algo deste género, um regime ultranacionalista e militarista ainda mais declarado, como o de Prigozhin.

NERMEEN SHAIKH: Apenas para acrescentar que um relatório recente da ONU acusou os mercenários Wagner de estarem envolvidos num massacre ocorrido em Março de 2022 numa aldeia do Mali, onde foram mortas cerca de 500 pessoas.

Gostaria de passar agora ao professor Gregory Afinogenov. É professor de história russa. O seu artigo recente para a Jacobin tem como título "A paz na Ucrânia não está para breve". Pode explicar por que razão acredita que as negociações de paz não são possíveis neste momento e, na verdade, por que razão defende que a questão não é tanto os EUA pressionarem a Ucrânia a negociar, mas que qualquer acordo que seja alcançado resultará num impasse muito duradouro entre a Ucrânia e a Rússia, semelhante ao que aconteceu na Coreia ou em Nagorno-Karabakh?

GREGORY AFINOGENOV: Sim. Penso que, se olharmos para o contexto do que está a acontecer nas sociedades ucraniana e russa em resultado da invasão, ambas as sociedades estão a tornar-se altamente polarizadas. Na Rússia, os liberais foram não só presos, mas efetivamente exilados ou ameaçados com o recrutamento, multas pesadas e assim por diante, mas mesmo os apoiantes passivos da invasão e os apoiantes de alto nível tiveram as suas chamadas telefónicas privadas divulgadas no que parece ser uma tentativa do Estado de os ameaçar. E, claro, isto também afetou a forma como se desenrola a competição entre as elites, como o Denis referiu a propósito de Prigozhin. A elite russa que está agora a competir pelo lugar de herdeiro escolhido de Putin quer ser vista como mais militarista, quer ser vista como mais patriótica, mais agressiva do que os seus rivais. E todos os liberais tecnocráticos e moles que víamos há 10 anos foram em grande parte intimidados ou desapareceram, o que não quer dizer que fossem necessariamente melhores.

E, claro, na sociedade ucraniana, as posições que eram mais ou menos socialmente consensuais, ou pelo menos um meio-termo consistente, há 10, 15 anos, tornaram-se agora sintomáticas de devoção ao Putinismo ou de apoio à Rússia, o que constitui agora motivo para, essencialmente, ser expulso da vida política ucraniana. E assim, os únicos candidatos legítimos ao poder político na Ucrânia são altamente nacionalistas e altamente empenhados em recuperar os territórios perdidos para a Rússia, o que, claro, é completamente compreensível, tendo em conta a natureza terrível e horrenda desta invasão e o verdadeiro alcance de todas as vidas e terras que foram perdidas.

O resultado disto não é algo que os EUA tenham causado. Caro que o estão a perpetuar, no sentido em que estão a impedir a Ucrânia de perder, mas as tensões sociais subjacentes não são algo que os EUA possam eliminar pedindo negociações. Estas sociedades estão agora profundamente em desacordo, de uma forma que vai persistir durante muitos e muitos anos.

NERMEEN SHAIKH: Contrariamente às especulações recentes, disse que a Rússia tem estado a preparar-se politicamente para esta guerra há pelo menos uma década. Pode explicar o que quer dizer com isso?

GREGORY AFINOGENOV: Penso que a sequência de acontecimentos que começaram com a invasão da Líbia pelos EUA e também com os protestos da oposição na Praça Bolotnaya na Rússia, por volta da mesma altura, em 2011, foi um momento de ajuste de contas para Putin, no sentido em que ele acreditava que, a menos que mudasse as coisas de forma radical, correria o risco de uma operação interna de mudança de regime. Agora, se isso é justificado ou não, não posso dizer, mas - e isso não quer dizer que não tenha sido baseado numa fantasia paranóica, e é. Claro que está ligado a uma ideia do Ocidente não muito distante da de DeSantis [o governador republicano da Florida que lançou esta semana a candidatura presidencial]- certo? - como algo que é uma espécie de vírus woke que procura implantar o liberalismo em todo o mundo e eliminar o respeito pelos valores tradicionais e assim por diante, certo?

Assim, a invasão da Ucrânia foi uma espécie de versão de política externa dessa iniciativa. E quando acontece o levantamento da Praça Maidan, Putin apercebeu-se de que não podia fazer à Ucrânia o que tinha feito anteriormente à Bielorrússia, ou seja, transformá-la num Estado fantoche altamente autoritário e politicamente subserviente, e que se agravou ainda mais, claro, desde 2020, quando os protestos pró-democracia foram brutalmente reprimidos. Portanto, a via militar é uma tentativa de Putin de garantir que não haja nenhum tipo de desafio pós-soviético visível à ordem mundial russa, ou à imagem russa da ordem mundial.

Agora, o fracasso desta invasão é, obviamente, uma boa notícia para os ucranianos, mas não é necessariamente uma boa notícia para a política externa russa. Penso que reflete uma espécie de sensação, pelo menos para mim, de que o regime está a entrar numa espécie de espiral de agressão e disfunção interna que parece que vá terminar tão cedo.

NERMEEN SHAIKH: Denis Pilash, pode comentar as palavras do professor Afinogenov? E enquanto ativista socialista, pode explicar-nos qual é a posição da esquerda na Ucrânia em relação a esta guerra? Disse que a esquerda ucraniana descreve a situação como "sobrevivendo entre tanques russos e bancos ocidentais". Pode explicar melhor?

DENIS PILASH: Sim, gostaria de acrescentar que este tipo de pensamento, que é agora manifestado pela elite do Kremlin e pelo próprio Putin, é muito semelhante a algumas teorias da conspiração da extrema-direita ocidental e está profundamente enraizado na convicção de que nenhum tipo de mudança interna, nenhum tipo de revolução, nenhum tipo de revolta popular é possível sem qualquer interferência estrangeira. Por isso, consideram qualquer tipo de agitação popular como algo que, de alguma forma, é fabricado pelos inimigos e concorrentes estrangeiros do nosso Estado.

Trata-se, de facto, de uma visão do mundo profundamente conservadora. E, claro, baseia-se, em primeiro lugar, neste medo muito profundo do seu próprio povo, de que, em última análise, seja possível algum tipo de nova revolução também na Federação Russa. Isto faz da Rússia uma espécie de - como no século XIX, o czar Nicolau I foi chamado de "gendarme da Europa", pois estava a suprimir os movimentos revolucionários, como na Hungria. Desta forma, a Rússia também tentou atuar no espaço pós-soviético como uma espécie de salvaguarda conservadora, ajudando os regimes autoritários a manter as suas populações basicamente enjauladas.

Mas para falar sobre a situação da esquerda ucraniana, sim, estamos perante o desafio de, juntamente com toda a população da Ucrânia, travarmos esta luta existencial, essencialmente, pela sobrevivência da Ucrânia como uma entidade separada, como uma república separada. Mas também precisamos de preservar o espaço para a ação democrática e o espaço para a mudança social.

E isto está profundamente ligado às questões da economia já em tempo de guerra e da reconstrução pós-guerra. Como tem sido exposto em fóruns internacionais, como a conferência de Lugano, e agora haverá outra conferência em Londres, dedicada à reconstrução pós-guerra da Ucrânia, tanto a classe dominante ucraniana como a ocidental tendem a aplicar abordagens muito pró-mercado, muito favoráveis aos negócios e orientadas para os negócios nesta reconstrução e, essencialmente, tentarão também utilizar a situação que foi criada por esta guerra de agressão russa para continuar, por exemplo, a fazer mais ofensiva sobre o Estado social e o sector público na Ucrânia. Enquanto nós, como ucranianos de esquerda, socialistas, sindicalistas, feministas, ambientalistas e outros ativistas, sentimos que, pelo contrário, o país, que foi tão fortemente dilacerado pela guerra, precisa de uma expansão do Estado social. Precisa de uma expansão dos sectores públicos, pois vamos ter - aliás, já temos uma enorme necessidade de habitação social. Esta não deve ser deixada aos corruptos empreiteiros privados que já andam a destruir as nossas cidades por dentro.

Vamos ter um número enorme de pessoas que foram feridas na guerra, pessoas com deficiências, com stress pós-traumático. E isso significa que precisamos de mais hospitais. Precisamos de mais ajuda médica e psicológica. E também precisamos de criar proteção para aqueles que foram afetados pela guerra, tanto para os veteranos como para os civis. E, na verdade, este é um tipo de reconstrução que se verificou em muitos países europeus após a vitória sobre o Eixo fascista na Segunda Guerra Mundial, quando, na verdade, as classes trabalhadoras e o trabalho organizado, os sindicatos, em muitos lugares, foram fortalecidos por este entusiasmo da vitória antifascista e puderam pressionar os seus governos para mais concessões e para uma forma mais socialmente orientada, mais socialmente justa, de reconstruir a economia e o país em geral.

Por isso, penso que este é também um ponto em que a esquerda internacional e os movimentos progressistas internacionais podem fazer a diferença, pressionando os seus governos para uma reconstrução da Ucrânia mais justa do ponto de vista social, de género e ecológico, e também levando a questão da Ucrânia para o quadro mais vasto dos países da periferia. E nós, na nossa revista Commons, lançámos um projecto chamado Diálogo com as Periferias, porque sentimos que as pessoas na Ucrânia e na Europa Centro-Oriental em geral precisam de construir mais pontes com o chamado Sul Global, com os povos da América Latina, África, Ásia, porque apesar de termos histórias diferentes e diferentes opressores coloniais e imperialistas, na verdade enfrentamos padrões de dependência muito semelhantes. E, de facto, precisamos de os combater em conjunto, em solidariedade, por exemplo, em casos como o cancelamento da dívida. Mais uma vez, não é possível ter uma economia de guerra e uma economia de pós-guerra a funcionar, quando o nosso país está obrigado a este círculo vicioso de morte. E a Ucrânia não é o primeiro país que ficou preso neste círculo. Por isso, precisamos de construir esta frente de mudança mais internacionalista e mais global, que desafie qualquer tipo de imperialismo, sob qualquer forma, sejam os tanques russos, a força bruta direta que é defendida pela Rússia, não apenas na Ucrânia, mas em muitos outros lugares, ou outros tipos mais sorrateiros de dependências que podem ser, por exemplo, impostas pelas organizações financeiras internacionais.

NERMEEN SHAIKH: Professor Afinogenov, pode comentar o que o Denis disse? Também referiu que a guerra foi uma espécie de doutrina de choque para acelerar rapidamente a nova liberalização da sociedade ucraniana. Se pudesse desenvolver esta questão e responder também que tipo de ajuda à reconstrução é atualmente necessária na Ucrânia e de onde poderá vir?

GREGORY AFINOGENOV: Sim, a doutrina do choque, isso é muito evidente. É quase um caso de manual, certo? O partido de Zelensky, Servo do Povo, propôs originalmente uma série de reformas à lei das pensões e à lei laboral na Ucrânia que eram altamente radicais. De facto, eliminaria a capacidade dos sindicatos de negociar coletivamente antes da guerra. E não o conseguiram fazer. Não tinham apoio suficiente na Rada. Depois da guerra, houve, é claro, um efeito de mobilização em torno da bandeira, e muitos dos principais partidos da oposição - na verdade, todos eles - foram banidos, embora os seus deputados tenham permanecido na Rada. E conseguiram aprovar estas reformas, que, como sabem, até a OIT criticou.

Não se trata de reformas de meio-termo. São essencialmente a extrema-direita do consenso neoliberal europeu. E aproveitaram o facto de o governo de Zelensky não ter qualquer mobilização social contra ele, porque toda a gente está tão concentrada em salvar os seus entes queridos da invasão russa e em permitir que o Estado faça o que tem de fazer para proteger o país. E quero salientar aqui que não é só o Zelensky que está a fazer isto, certo? A ajuda da UE vem acompanhada de uma série de condições que encorajam fortemente esta viragem neoliberal. E, claro, tudo isto é apresentado como uma forma de nos livrarmos das instituições ineficientes da era soviética e assim por diante, mas toda esta reforma equivale a uma redução maciça das despesas com a proteção social.

Portanto, o que está efetivamente em causa é saber que tipo de Ucrânia vai sobreviver a este conflito. Será que vai ser uma Ucrânia que, como eu disse no meu artigo, é uma gigantesca zona económica especial que tem certos privilégios comerciais em relação à Europa, mas tem proteções laborais muito mais fracas? Ou vai ser um país que é justo e oferece um lugar melhor para viver aos seus milhões de pessoas do que a alternativa russa? O que penso que pode facilmente acontecer, mas a UE está empenhada em impor a sua ideologia neoliberal aos destinatários da sua ajuda.

E penso que é realmente importante abordar a segunda parte da sua pergunta. Penso que é realmente importante desviar as atenções da questão da ajuda militar, que, sim, é essencial para a sobrevivência da Ucrânia, mas as necessidades muito maiores de reconstrução civil neste momento mal estão a ser discutidas, porque as armas ocuparam tanto espaço. Mas é a reconstrução civil, a anulação da dívida, em particular, que considero essencial, e a supressão das condições deste tipo de ajuda, de modo a eliminar a capacidade do Governo de Zelensky de aplicar essas condições para excluir as forças políticas de esquerda da sociedade ucraniana e, talvez, até utilizar algumas das alavancas dessa ajuda para pressionar Zelensky a desistir de algumas das suas tentativas de monopolizar o espaço público. Sabe, há casos documentados, por exemplo, de manifestantes sobre todo o tipo de questões, nem sequer fortemente políticas, que foram convocados ou ameaçados com o serviço militar obrigatório, sendo depois enviados para a frente de batalha em resultado das suas atividades políticas. Isto é extremamente preocupante, porque é ameaçar directamente os manifestantes com violência, certo? E o Estado não dispõe atualmente de muitos recursos coercivos, mas se a guerra acabar e continuar a ter o mesmo grau de intervenção na política de rua, isso não será uma boa notícia para a democracia ucraniana.

NERMEEN SHAIKH: Poderia também falar sobre a forma como a guerra parece estar a alastrar para além das fronteiras da Ucrânia? Houve o recente ataque de drones ao Kremlin e, ainda esta semana, os ataques transfronteiriços das forças russas pró-ucranianas que atacaram a região russa de Belgorod. Quais são as suas preocupações relativamente a uma escalada potencialmente devastadora para a região, mas também para o mundo? E apesar de ter reservas quanto a um possível cessar-fogo que acabe em algo como a situação no Nagorno-Karabakh ou na Coreia, um cessar-fogo não resultaria, no entanto, em menos, e possivelmente nenhuma, perda de vidas do lado ucraniano?

GREGORY AFINOGENOV: Bem, gostaria de pensar que sim. Penso que um cessar-fogo seria certamente melhor do que a maioria das opções disponíveis nesta altura.

A dificuldade com os atuais ataques transfronteiriços e os outros atos de sabotagem, etc., que, de um ponto de vista militar, são totalmente defensáveis, mas é importante compreender que não se trata de grupos voluntários. São subordinados dos serviços de segurança ucranianos. E o que eles parecem estar a fazer é constatar que os governos ocidentais estão a começar a ficar cansados do seu compromisso ilimitado com a defesa militar ucraniana e, penso eu, estão a tentar provocar a Rússia para que esta tome algum tipo de atitude radical que obrigue os EUA e a NATO a tomar uma posição mais radical. E, ao fazê-lo, estão a tentar encenar este tipo de ataques como se fossem cada vez mais frequentes, numa tentativa de conseguir que algo assim aconteça.

Obviamente, isso é uma estratégia extremamente arriscada, certo? Os riscos de esta guerra se transformar num conflito nuclear ou mesmo num conflito convencional em grande escala não são boas notícias. Mas, ao mesmo tempo, é importante lembrar que, devido à forma como estas forças estão estabelecidas na sociedade ucraniana, um cessar-fogo não impediria que este tipo de coisas acontecesse. Haverá pessoas, tanto na Ucrânia como na Rússia, interessadas num recomeço imediato do conflito, seja qual for a premissa. E trabalhariam para sabotar constantemente esta paz, e poderiam dizer: "Olhem, são apenas voluntários. São apenas guerrilheiros". E tanto na Ucrânia como na Rússia, há que lembrar, por exemplo, que o Grupo Wagner começou como uma organização não estatal e plausivelmente negável. Por isso, é muito importante ter em conta os desafios mais vastos deste conflito e trabalhar no sentido de uma resolução a longo prazo, em vez de tentar estancar a hemorragia e esperar pelo melhor.

NERMEEN SHAIKH: Denis Pilash, os seus últimos comentários? Só temos 30 segundos.

DENIS PILASH: Diria apenas que é muito importante agora manter a solidariedade com o povo da Ucrânia. E isso significa que precisamos de todo o tipo de apoio. Isso inclui, de facto, apoio militar, mas também inclui este tipo de ajuda humanitária e retomar as questões políticas, como o cancelamento da dívida ucraniana.


Entrevista realizada no programa Democracy Now a 25 de maio de 2023. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

 

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