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"A esquerda tem que ter propostas concretas para a transformação da justiça”

No Socialismo 2018, Vasco Barata entrevistou Celso Cruzeiro sobre justiça, nomeadamente, se para a esquerda a justiça tem de ter um papel transformador, sobre o papel das constituições e sobre mudanças concretas na prática judiciária, como o defensor público.
Celso Cruzeiro e Vasco Barata

Vasco Barata: Temos connosco o Celso Cruzeiro, a quem agradeço imenso a disponibilidade de se juntar a nós nesta reflexão. Creio que era o Hobbes que dizia “a lei demonstra poder, não demonstra a verdade”, isso é verdade, ou para nós, à esquerda, o direito tem de ter um papel transformador?

Celso Cruzeiro: Sim. Boa tarde, claro que tem. Essa conceção do poder absoluto da lei é uma conceção que esteve na base fundamentada de todos os positivismos jurídicos e que tiveram consequências trágicas em relação à humanidade. Nós não podemos esquecer-nos que foi na base do direito positivo, do interesse de Estado e de que a lei escrita teria de ser obedecida e não poderia ser discutida, que o regime hitleriano se impôs e também o estalinismo.

Essa conceção do poder absoluto da lei é uma conceção que esteve na base fundamentada de todos os positivismos jurídicos e que tiveram consequências trágicas em relação à humanidade

Os Processos de Moscovo, foram feitos na base de uma conceção jurídica do Vychinsky do interesse público, do direito legislado e, portanto da impossibilidade de discussão, divergência ou contradição em relação a qualquer um dos preceitos. Portanto, essa questão da lei, hoje, deve ser entendida a aplicação da lei dentro de um quadro de que o direito tem não só como função obter a justiça, como dentro do direito, na sua própria aplicação, na sua própria elaboração conceitual, o elemento de justiça é um elemento constituinte. Quer dizer, não pode haver direito, se interiormente, como elemento constituinte, não existir a justiça.

Nessa medida, essa frase do poderio da lei, penso que está hoje, com o Estado Constitucional, com os princípios constitucionais, com os princípios fundamentais consagrados em todo o movimento constitucional moderno, posta em crise, claramente. Hoje, todo o movimento de direito é pós-positivista, quer dizer que as questões e os conflitos e as contradições e as correntes que se debatem. Não quer dizer que não haja ainda resquícios das correntes positivistas, e há, de facto, formuladas até em novas roupagens. Mas é, essencialmente, dentro do quadro pós positivista.

Vasco Barata: Nesse sentido, nessa ultrapassagem que já se fez desse paradigma positivista que já referiste, a justiça tem um papel de garante da ordem democrática, como tu referiste no caso que ultrapassámos agora, do Dr. Passos Coelho e o Tribunal Constitucional, pelo papel decisivo que teve na garantia dos direitos das pessoas. E também é, ou não, de uma certa forma conservador, no sentido em que se pronuncia sobre o que está, sobre o direito em vigor.

É, na questão do direito nós temos uma caraterística dual, aliás, como em várias instituições, há uma dualidade, o direito permite tanto a opressão e o domínio, como comporta dentro de si os mecanismos de libertação e de oposição. É importante que esta tensão e esta luta entre estes dois campos seja aproveitada pelos dominados, pela esquerda, para propor, impor, um modelo que seja libertador e que combata a sujeição.

Na questão do direito há uma dualidade, o direito permite tanto a opressão e o domínio, como comporta dentro de si os mecanismos de libertação e de oposição

Hoje o movimento jurídico central, da importância do direito, lida muito à volta dos direitos fundamentais e do papel das Constituições, do constitucionalismo. Há quem entenda hoje, e é um debate que está em aberto no mundo contemporâneo, na Europa como na América, há quem entenda que a Constituição é, digamos assim, um quadro, uma folha aberta, que define, minimalista, um Estado mínimo, compete apenas dar a entrada e balizar, e depois a realidade, que será o acaso, o poder de quem mais tem na prática social e económica, a definir os preceitos. Há quem entenda o contrário, que não, que essa inocuidade da Constituição como um papel aberto onde tudo caiba elimina, claramente, a essencialista constituinte deste diploma. No fundo, a Constituição não é um papel qualquer, é a norma fundamental, é o diploma fundamental que uma comunidade, historicamente, decidiu eleger, programar, redigir, como emblema e forma organizativa da sociedade política em que decidiu viver, e como decidiu viver. Nessa medida, a Constituição terá, então, uma garantia muito mais vasta, que não poderá ser postergada ou abanada ou preenchida de uma maneira por qualquer movimento transitório, hipotético, de domínio económico, da dinâmica social moderna. É, digamos, um diploma destinado a regulamentar mais profundamente em bases, e temporariamente em períodos mais profundos, a história e a vida da comunidade. Por isso também se colocam os limites materiais à sua revisão.

Celso Cruzeiro: “A esquerda não pode ter apenas uma bandeira abstrata em relação à justiça, tem que ter propostas concretas de transformação do aparelho judiciário, das ideias sobre a justiça”
Celso Cruzeiro: “A esquerda não pode ter apenas uma bandeira abstrata em relação à justiça, tem que ter propostas concretas de transformação do aparelho judiciário, das ideias sobre a justiça”

E está datada no tempo, a Constituição, ou essa conversa é vinda de quem a quer alterar e tem uma agenda que não cabe nesta Constituição?

Há sempre um elemento de data no nascimento de uma Constituição, simplesmente essa data é o início de um encontro. Pode ser revolucionário, normalmente a Constituição nasce de grandes transformações sociais e políticas. Então ela responde a um diploma fundamental em que, organicamente e organizadamente a comunidade, as várias correntes decidem, para o futuro, organizar a sua vida. Nesse aspeto, é datada porque corresponde, naquela data histórica, ao nascimento concreto, e não é imutável, não há Constituições imutáveis, que nunca possam ser modificadas, quando a comunidade, claramente e pelas maiorias constitucionais, imponha um desejo neste ou naquele preceito. Mas as traves mestras não podem ser modificadas e o sentido, os direitos sociais, individuais, as garantias não podem ser modificadas ao sabor de circunstâncias históricas concretas, porque elas definem direitos fundamentais da dignidade humano. Para se entender que a Constituição poderia ser modificada e exatamente transformada no seu contrário, era preciso abdicarmos do conceito de dignidade humana, dos direitos fundamentais, dos direitos em que as sociedades organizaram as suas vidas.

Outra pergunta que eu gostava de te fazer é se nós, à esquerda, podemos aprofundar, no que concerne à justiça, esses valores que estão na Constituição. Há pouco, no debate que tivemos, eu falei no Serviço Nacional de Justiça, como um nome, podemos chamar-lhe outra coisa, mas faz sentido e na altura desenvolveste algumas ideias nas quais estavas a trabalhar, como o Defensor Público…

Sim, eu acho que o papel da esquerda sobre a justiça não pode ser um papel apenas de lutar pelo seu embaratecimento que, aliás, é importante, as custas judiciais são alarmantes e impedem o acesso ao direito à maioria dos cidadãos. Mas não basta, tem que assumir a justiça como um pilar fundamental da construção do Estado fundamental e social e ter propostas e empenhamento concreto no preenchimento e na modificação das próprias instituições da prática judiciária. Não se pode apenas discutir a justiça e não pensarmos em não modificar os tribunais, não podemos discutir a justiça e pensar que a justiça é apenas um problema do Ministério da Justiça, um problema político do parlamento, sem nos debruçarmos sobre as questões candentes da modificação da atividade dos tribunais judiciais, dos chamados operadores judiciários, do Ministério Público, dos próprios advogados.

Essa é uma questão concreta e tem que haver uma plataforma e uma proposta concreta que os partidos da esquerda e a esquerda não tem. Tem apenas algumas ideias abstratas de pugnar pela igualdade, do acesso ao direito, de abater a justiça para ricos e para pobres. Mas, depois perguntamos “como é que se abate a justiça para ricos e para pobres”, há medidas concretas que permitem abater isso?

A instituição do Defensor Público, por exemplo, é uma delas. A questão da participação do maior poder aos juízes e, ao mesmo tempo, a transformação da construção do órgão de julgar, é outra. Há medidas concretas, a esquerda não pode ter apenas uma bandeira abstrata em relação à justiça, tem que ter propostas concretas de transformação do aparelho judiciário, das ideias sobre a justiça, mas também do aparelho judiciário, das instituições que elaboram o direito, e que aplicam o direito quotidianamente.

Não queria perder esta oportunidade para te pedir uma opinião. Recentemente, tem sido posto no espaço público o debate sobre a delação premiada, esse tipo de mecanismos. Eu sou contra, creio que também já tiveste oportunidade ali no painel de dizer que sim, mas, de facto, é importante termos essa tua posição, também como pessoa que já viveu um regime político fascista.

A minha ideia sobre a transformação da justiça é que, em primeiro lugar, a ideia base é de que a transformação da justiça e do modelo de administração da justiça, elaboração da lei e interpretação da lei e aplicação não pode ser conseguida apenas pela conjunção de vontades e de ideias dos chamados operadores judiciários.

A minha ideia sobre a transformação da justiça é que, em primeiro lugar, não pode ser conseguida apenas pela conjunção de vontades e de ideias dos chamados operadores judiciários

Não bastam juízes, advogados, magistrados, é preciso introduzir a componente da sociedade civil nesses órgãos, nos órgãos que discutem e nos próprios órgãos de aplicação da justiça. Essa é uma ideia chave: maior poder aos juízes e, ao dar maior poder aos juízes, modificar a constituição dos tribunais, ou seja, modificar a natureza do órgão de julgar, introduzindo juízes de carreira e juízes leigos com capacidade para transportar maior democraticidade e maior competência para as questões novas que as sociedades modernas levantam.

Quanto à delação premiada, eu sou manifestamente contra, porquanto da minha prática de advogado de 40 e tal anos, eu já vi o suficiente para concluir que há muita gente capaz de, para obter uma vantagem fazer uma delação falsa. E basta isso para contaminar um instituto como esse na averiguação da verdade.

 

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