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Eleições em Madrid: Não há atalhos

Quando o desejo de mudança de uma sociedade é frustrado, neutralizado e impedido - como aconteceu em Espanha - a relação de forças e os seus imaginários sociais não voltam à etapa anterior à crise. Artigo de Manolo Monereo.
balão Podemos
Foto Podemos Madrid/Flickr

Quem leu o meu artigo anterior em NORTES não ficará muito surpreendido com a vitória eleitoral das direitas em Madrid. Surpreende, talvez, a sua dimensão. Seria bom perguntar de onde vimos. Isabel Díaz Ayuso queria há muito  convocar eleições na Comunidade de Madrid. Aproveitou rapidamente a moção de censura falhada em Múrcia para o fazer. O que diziam as sondagens na altura? Que o PP estava claramente a ganhar, que o Ciudadanos estava a desaparecer, que o VOX estava a ter dificuldades, que o PSOE estava a descer, que Mónica García estava a subir e que a Unidas Podemos (UP) poderia ficar fora da Assembleia de Madrid. Em poucas palavras, o PP ganhava por muito e o debate seria sobre o quanto.

O que havia de novo? A chegada de Pablo Iglesias. Não irei entrar nas motivações. Era óbvio que um novo fracasso da UP enfraqueceria o papel de um partido que faz parte de um governo que está a dar sinais de esgotamento e de perda de impulso. Iglesias deixa a vice-presidência e vai para a batalha em Madrid. O argumento que se segue é típico dele: polarizar com a presidente, recorrer à linguagem épica e colocar o debate entre um fascismo emergente e uma democracia que tem o dever de se defender. A hipótese subjacente era que a esquerda estava desmobilizada e que a participação maciça de bairros e cidades com tradição operária poderia inverter o triunfo de uma direita na ofensiva. Iglesias também assumiu uma clara aposta pela unidade da esquerda, evitando qualquer tipo de conflito dentro dela. Não resultou. Pode dizer-se que a polarização, que elevou a participação a níveis muito elevados, não contribuiu para a derrota das direitas. Um esforço inútil? Não me parece. Só se perdem as batalhas que não são travadas. Más Madrid e UP lutaram, definiram projetos e mobilizaram parte do eleitorado em condições difíceis. Um bom ponto de partida para construir um bloco alternativo nacional-popular enraizado em bairros e vilas, promovendo a auto-organização social e dotado de um projeto claro e transparente que apele ao compromisso político-pessoal. As eleições para uma força de esquerda transformadora, convém não esquecer, são perdidas e ganhas antes da campanha eleitoral. Não há atalhos e é necessária a dura, cansativa e teimosa estratégia de posições e construção de poderes sociais.

Os resultados eleitorais em Madrid obrigam-nos a distinguir entre o que é específico desta Comunidade e o que está realmente a acontecer no conjunto do Estado. Um primeiro dado tem a ver com algo que já era conhecido, o esgotamento definitivo da dinâmica de mudança que foi o 15M. A parábola de Pablo Iglesias mostra-nos muito sobre este movimento dez anos mais tarde. Um segundo dado está relacionado com o Covid-19 e as suas consequências. Mais de um ano de confinamento modificou profundamente os comportamentos e os humores sociais; a relação direta com a morte, com a doença, revalorizou a importância da saúde pública e do Estado, mas alterou o nosso horizonte de sentido, problematizou radicalmente a nossa visão do futuro e o medo, a insegurança e a incerteza tornaram-se uma segunda pele que a direita foi capaz de interpretar muito melhor do que a esquerda.

Durante anos, Madrid viveu uma rebelião das elites contra o desejo de mudança de uma juventude indignada que questionava o poder omnipotente dos grandes grupos económicos, capital financeiro e fundos de investimento descritos como abutres. Democratizar a democracia, defender os direitos sociais e o controlo dos oligopólios foi organizando um imaginário coletivo que hoje está esgotado. A pandemia definiu uma rotura sobre um mal social que não tem culpados e que é visto como se fosse um fenómeno geológico. Não se fez uma leitura política de como a pandemia foi gerida e nem mesmo a distribuição de vacinas, pagas com dinheiro público, que se tornaram um instrumento de poder (geo)político e de controlo das grandes corporações sobre o mercado, está a ser questionada.

Fala-se muito de um fim de ciclo e de um novo ciclo. O que temos vivido durante meses é a reação sistemática e dura dos poderes fácticos (económicos, políticos, mediáticos) que procuram encerrar uma etapa histórica - representada em toda a sua contraditória complexidade pela Unidas Podemos - e iniciar outra baseada em princípios e valores liberais-conservadores, neoliberais. Nisto não há diferença entre o VOX e o PP. O partido de Abascal é o programa oculto, o núcleo duro político-cultural do partido de Casado. Ayuso sintetizou-o em Madrid. O seu discurso sobre a liberdade parece ser retirado de um manual de microeconomia neoclássica da Escola de Chicago. A liberdade de que fala a presidente da Comunidade de Madrid é a do mercado, das preferências apoiadas por símbolos monetários e das ordens de consumo orientadas mercantilmente. Esta liberdade tem sido experimentada como tal por milhares de jovens; alguns já estão a falar de que a próxima estação pós-Covid-19 será uns novos "anos 20" de folia e alegria, de consumo desenfreado e um distanciamento de qualquer projeto real para a transformação da sociedade. Pasolini chamaria a isto "roturas antropológicas" provocadas por estruturas de consumo que modificam e reestruturam o sentimento comum nacional-popular.

É preciso insistir. O PP da Ayuso organizou politicamente um bloco social que tem vindo a construir-se há décadas, que tem gerado cultura e valores, que se cristaliza em alianças sociais e que tem um projeto claro, nítido, comunicável e com vontade de maioria. Não admira que chamem a tudo isto a "batalha cultural" que, como disse Esperanza Aguirre, é a diferença substancial entre Ayuso e Casado. Quando o desejo de mudança de uma sociedade é frustrado, neutralizado e impedido - como aconteceu em Espanha - a relação de forças e os seus imaginários sociais não voltam à etapa anterior à crise; estas, a articulação concreta e precisa de forças, muda, interioriza a derrota e transforma-a numa cola para uma (contra)ofensiva das forças dominantes. Por outras palavras: a derrota das forças renovadoras da esquerda vira todo o país mais para a direita e torna possível o reforço da direita e dos seus projetos político-culturais.

O PSOE foi o peso morto que tem impedido o triunfo da esquerda. Se compararmos Ayuso com Gabilondo, percebemos até que ponto o social liberalismo é incapaz de competir seriamente com umas direitas que estão na ofensiva. As contínuas declarações das velhas glórias (González, Guerra, Leguina, Redondo Terreros) contra Pablo Iglesias e especialmente críticas ao governo espanhol - amplamente difundidas pelos meios de comunicação de direita - desmobilizaram parte do eleitorado e contribuíram para a votação de uma candidata radicalmente oposta a Pedro Sánchez. O PSOE já não é o que era. A sua conversão num partido-cartel, a sua rígida dependência do aparelho da Moncloa e a sua perda acelerada de laços sociais e enraizamento territorial tornam-no pouco eficaz para competir a sério contra um bloco político-social e cultural cujo porta-estandarte é o PP. O Vox é instrumental: move organizações, valores e slogans complementares de um projeto comum da direita.

Mónica García, com o seu já conhecido "efeito", colheu os frutos de um trabalho bem feito e da sua defesa permanente dos serviços públicos e dos direitos sociais. Foi capaz de construir o espaço político de uma esquerda simpática e profissional entre a não oposição do PSOE e o "radicalismo" da UP. O aparecimento de Pablo Iglesias facilitou a delimitação desse espaço, favorecendo a chegada de novos eleitores que foram recentemente mobilizados e que, tal como as coisas estavam, dificilmente teriam votado no ex-vice-presidente. A sua apresentação como alternativa à Ayuso dar-lhe-á créditos e colocá-la-á no centro do espaço público. O desafio agora é também evidente: uma força regionalista madrilenista? uma força que faz parte de um espaço plurinacional verde-feminista? um partido de massas ou um partido profissional-eleitoral centralizado por cargos públicos e financiado com dinheiro do Estado?

A UP salvou mais uma vez a mobília, mas precisou da presença ativa de Pablo Iglesias. A sua retirada da política diz muitas coisas. Algumas exigem tempo; outras são muito óbvias. A demonização e a criminalização marcaram uma figura política que tirou o sono às classes dirigentes ferozmente defendidas por um bipartidarismo mais ou menos imperfeito e solidamente entrincheiradas no seu controlo dos meios de comunicação social. Neste momento, devemos colocar-nos pelo menos duas questões: a gestão da pandemia e aquilo a que os ministros da UP chamaram "o escudo social" ajudou a esquerda em Madrid?; porquê uma oposição tão radical e desproporcionada a um governo tão moderado e reformista como o de Pedro Sánchez? As duas estão relacionadas e requerem um debate coletivo e aberto, sobretudo aberto aos movimentos sociais, sindicatos e associações. Ouvir; ouvir para além dos conflitos no governo.

À primeira pergunta, pode responder-se com verdade: as políticas progressistas não chegaram ou chegaram muito pouco aos bairros da classe trabalhadora, aos jovens, às mulheres. Não é apenas a questão do arrendamento da habitação, é a sensação de que não existe correspondência entre as declarações e as medidas concretas que são implementadas. À notícia sobre a supressão dos benefícios fiscais para a declaração conjunta dos casais, juntaram-se as portagens nas auto-estradas e os recuos na reforma laboral acordada. Falando claro: não só parece que a dinâmica de mudança está a esgotar-se, mas também que está a surgir - devido às pressões da UE - um novo programa governamental diferente do acordado pelo PSOE/UP. A saída de Pablo Iglesias do governo diz muito sobre os problemas não resolvidos e os verdadeiros limites políticos.

A segunda questão é mais complicada. Os poderes económicos estão a atravessar um momento difícil de recomposição e definição. Eles precisam desesperadamente do Estado, de fundos públicos e de uma classe política alinhada com os seus interesses, de coerência entre o governo do capital e o governo de Espanha. A sua aposta era uma aliança Ciudadanos/PSOE. Não foi possível. Não é possível hoje. O dilema de Pedro Sánchez é como alinhar-se com os poderes económicos sem que o governo vá pelos ares? A questão central são os fundos europeus, a sua gestão e distribuição. Uma coisa é clara: as direitas económicas e políticas, com os seus instrumentos mediáticos, aproveitarão o momento para fazer uma oposição dura e implacável, enfraquecer o governo e forçá-lo a negociar.

Pablo Iglesias não tem e não terá um sucessor ou sucessora. Para o bem ou para o mal ele concentrou liderança e projeto; isso tinha limites políticos e temporais. Podemos e IU são obrigados a refundar-se, a começar de novo e a fazer política em grande. Não há outra forma. Além disso, tem de ser feito depressa e a bom ritmo. No centro, na minha opinião, seria necessário convocar uns estados gerais da esquerda para um novo projeto de país. No fundo, uma forma-partido que promova a auto-organização, a luta social, a elaboração programática e novas formas de gestão pública. Continuará.


Manolo Monereo é um advogado, cientista político e político espanhol. Foi militante do PCE e da IU e deputado da Unidas Podemos. Artigo publicado em Nortes. Tradução de Luís Branco para o Esquerda.net

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