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Eleições em Andorra: Governo perde maioria absoluta

Nas eleições ontem realizadas no pequeno estado pirenaico, os Democratas de Andorra, formação liberal-conservadora no poder desde 2011, perderam a maioria absoluta que detinham desde então, embora devam continuar à frente do governo. Por Jorge Martins.
Foto de G Travels/Flickr

Andorra possui um regime político muito peculiar, tendo o estatuto de coprincipado. A chefia do Estado é compartilhada pelo bispo catalão da diocese de Seo d’Urgel e pelo presidente da República francesa. Estamos em presença de um “estado fóssil”, uma entidade política medieval, independente do reino de Aragão desde 1278, que sobreviveu à emergência dos estados nacionais que caracterizou a modernidade. Antes da Revolução Francesa, o conde de Foix era o segundo copríncipe. Com a abolição dos títulos nobiliárquicos, o posto foi herdado pelo chefe de Estado francês.

Uma curiosidade sobre Andorra é o facto de ser o único país do mundo que tem como língua oficial o catalão, embora o francês, o castelhano e o português sejam amplamente falados. A importância da nossa língua resulta da emigração, já que os portugueses constituem quase 15% da população residente, sendo os espanhóis quase 25% e os franceses 3%. Na realidade, só metade dos cerca de 80 mil habitantes possui a nacionalidade andorrenha.

Possui uma economia bastante próspera, assente no seu estatuto de “paraíso fiscal”, a que se junta o turismo, sendo uma importante estância de inverno. A sua moeda é o euro, a que aderiu automaticamente após o fim do franco francês e da peseta espanhola.

O regime constitucional de 1993

Até 1993, o país não possuía um verdadeiro regime democrático, não havendo uma separação nítida de poderes entre o executivo, o legislativo e o judicial. Por outro lado, os seus dois grandes vizinhos (Espanha e França) dispunham aí de poderes de intervenção que punham em causa a independência do pequeno estado.

A pretensão de Andorra de se aproximar de várias instituições europeias e internacionais levou o Conselho da Europa (instituição intergovernamental que se dedica à defesa dos direitos humanos no continente e onde estão representados todos os países europeus, à exceção da Bielorrússia e do Vaticano, embora este último tenho o estatuto de observador), em 1990, a condicionar a adesão plena do país ao estabelecimento de uma Constituição democrática. Esta foi aprovada por referendo em 1993, o que lhe permitiu aderir à organização no ano seguinte, data, igualmente, da sua entrada na ONU.

O texto constitucional reduziu o poder dos dois copríncipes a um papel meramente cerimonial. Assim, retirou-lhes o poder de vetar legislação do governo, embora, na prática, tenham a possibilidade de exercer “veto de bolso”, já que não têm prazo para assinar a legislação e, para entrar em vigor, esta necessita das assinaturas de ambos.

Estabeleceu, então, um regime parlamentarista, em que o chefe do executivo (cap de govern) é eleito pela maioria absoluta do Parlamento, mas não pode exercer o cargo por mais de dois mandatos consecutivos.

O Parlamento, designado por Conselho Geral (Consell General), é composto por 28 membros. Estes são eleitos através de um sistema misto de voto paralelo, igualmente peculiar. Assim, 14 são escolhidos através de um sistema maioritário de lista binominal nas sete paróquias em que se divide administrativamente o país. Em cada paróquia, são eleitos os dois candidatos da lista mais votada. A eleição dos restantes 14 é feita a nível nacional, através do sistema de representação proporcional do quociente eleitoral simples. Os lugares remanescentes são atribuídos aos maiores restos, mas apenas às listas que tenham obtido um mandato na primeira distribuição. Ou seja, na prática, existe uma cláusula-barreira de 1/14, o que corresponde, aproximadamente, a 7,14% dos votos válidos.

Os resultados eleitorais e respetiva análise

Nas eleições de ontem, os Dèmocrates per Andorra (DA), formação liberal-conservadora do chefe de governo Antoni Marti, foram a força política mais votada, mas perderam a maioria absoluta de que dispunham desde 2011. O partido obteve 35,1% dos votos, o que lhe permitiu eleger 11 deputados, contra os 37,0% e 15 eleitos de há quatro anos. O facto de Marti não poder recandidatar-se, devido à limitação constitucional dos mandatos, terá contribuído para a quebra, mas foi a aliança da oposição em algumas paróquias o fator decisivo para a perda de quatro lugares e, consequentemente, da maioria parlamentar. Neste ato eleitoral, a sua lista nacional foi liderada por Xavier Zamora.

Em segundo lugar, ficou o Partit Socialdemòcrata (PS), a principal força da oposição, de centro-esquerda, que obteve 30,7% dos votos e a eleição de sete parlamentares, uma subida face aos 23,5% e três eleitos de 2015, quando concorreu numa coligação com os Verdes e outra pequena formação local.

Nos círculos paroquiais, o PS concorreu numa coligação, denominada D’acord, com a terceira força política, os Liberals d’Andorra (LA), partido da direita liberal, que obteve 12,5% dos votos e quatro deputados, uma quebra acentuada face às anteriores eleições, em que conseguira 27,7% dos sufrágios e oito eleitos. Para tal, contribuiu a cisão que sofreram no decorrer da legislatura, que levou à saída do seu líder parlamentar e de vários deputados e dirigentes da ala direita do partido.

Estes formaram a Tercera Via (TV), de orientação conservadora, que concorreu em coligação com a Unió Laurediana, um pequeno partido local, da paróquia de Sant Julià de Lória, obtendo 10,4% dos votos, que lhes valeram, igualmente, a conquista de quatro lugares.

Os restantes dois assentos na assembleia parlamentar foram para os Ciutadans Compromesos (CC), uma lista liderada pelo presidente da paróquia de la Massana, de orientação social-liberal.

Fora do Parlamento ficou o partido Socialdemocràcia e Progrés d’Andorra (SDP), força política social-liberal resultante de uma cisão no PS, que se ficou pelos 5,9% e perdeu os dois lugares que conquistara em 2015, quando obtivera 11,7% dos votos. Terá sido vítima do “voto útil” nos socialistas.

Também a Andorra Sobirana (AS), da direita populista e eurocética, não conseguiu representação parlamentar, ao quedar-se pelos 4,6% dos sufrágios. Pior ainda a igualmente eurocética Unió pel Progrés d’Andorra (UPA), que defendia a saída do euro, não foi além de uns modestos 0,8%.

Os votos brancos e nulos somaram 4,6% do total de votantes, bem menos que os 8,5% das últimas eleições.

No escrutínio paroquial, os DA e seus aliados locais venceram em três paróquias: Canillo (com ampla maioria), Encamp e Ordino (por curtas margens). Os CC ganharam facilmente em La Massana e a TV-UL em Sant Julià de Lòria, onde a UL tem a sua base, como referimos acima. Por fim, a coligação PS-LA arrebatou a capital, Andorra la Vella, e a de Escaldes-Engordany, mais urbanas, ambas tangencialmente.

Entretanto, a participação eleitoral foi de 68,3%, acima dos 65,6% de 2015.

Aborto e acordo com a UE: os principais pontos de divergência

Entre os temas da campanha para as eleições de ontem, avultam a despenalização da interrupção voluntária da gravidez e as negociações para a assinatura de um acordo de associação com a União Europeia.

O primeiro é bastante melindroso no principado, já que o bispo de Seo d’Urgel é um dos copríncipes e a sua aprovação colocará em risco o coprincipado, dada a intransigência da Igreja Católica na questão. As posições partidárias das forças concorrentes são divergentes: o PS apoia a despenalização por motivos económicos, o SDP apenas é favorável nos três casos mais gritantes (perigo de vida da mãe, malformação do feto e violação), enquanto os LA, embora tendencialmente favoráveis a esta última posição, mas defensores da manutenção do regime de coprincipado, propunham a realização de um referendo. Já os DA, fervorosos adeptos do coprincipado, eram contra a despenalização no país, mas favoráveis à organização de transportes das mulheres para França e Espanha, onde a IVG é legal. Totalmente contrárias a qualquer dessas hipóteses eram as formações direitistas: TV-UL, AS e UPA.

Quanto ao acordo de associação assinado entre o governo andorrenho e a UE, era apoiado pelas principais formações (DA, LA, PS e SDP), apesar de os três partidos oposicionistas criticarem a falta de transparência das negociações. Já as formações da direita conservadora eram contrárias ao acordo, em especial a AS, que fez da questão o principal tema da sua campanha. A principal crítica era a possibilidade de o acordo prever a introdução do IVA no país, uma questão muito sensível num pequeno país cuja economia assenta no seu estatuto de “paraíso fiscal”.

Outras questões também importantes são a imigração e a lei da nacionalidade andorrenha, cuja concessão se mantém bastante rígida, apesar de alguns avanços ocorridos relativamente à naturalização de espanhóis, franceses e portugueses; a habitação, em especial o combate à especulação imobiliária, que tem feito disparar os preços nos últimos anos, e o turismo, grande fonte de receitas, mas que tem vindo a perder qualidade, devido à massificação, pelo que há quem defenda a introdução de uma taxa turística.

Que solução governativa?

Para formar governo, os DA são incontornáveis, apesar da perda da maioria absoluta, já que será muito improvável um acordo entre as várias formações oposicionistas. Tudo indica, assim, que o novo executivo venha a ser liderado por Xavier Zamora. Entre os eventuais parceiros de coligação, os LA são os que estão ideologicamente mais próximos, mas o facto de estes se terem apresentado aliados aos socialistas não circunscrições paroquiais podem ser um fator impeditivo. A outra alternativa será um acordo com a TV, embora as diferenças face à questão europeia possam dificultar uma eventual aliança. Há, ainda, a hipótese de estabelecer apenas um acordo de incidência parlamentar com qualquer um deles. Recorde-se que, para ser investido como cap de govern, o candidato tem de obter o voto da maioria absoluta dos parlamentares (ou seja, 15 votos), o que inviabiliza, teoricamente, a formação de um governo minoritário. Contudo, é possível uma força política votar a nomeação de uma dada personalidade (em geral, o líder do partido mais votado) sem se comprometer com um apoio parlamentar sistemático.

Sobre o/a autor(a)

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra
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